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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.32 n.49 São Paulo dez. 2009

 

EM PAUTA - O SONHO E A PELE

 

O sonho da mulher do pescador

 

The dream of the fisherman’s wife

 

 

Orlando Hardt Junior*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor parte de uma linguagem icônica e trechos da carta-convite desta revista para tratar especificamente de algumas funções da pele e do sonho, que julga serem semelhantes.

Palavras-chave: Pele, Sonho, Bloco Mágico, Barreira de contato, Simbiose.


ABSTRACT

The author utilizes an iconic language and segments from the invitation of this publication to deal with functions of the skin and the dreams thought to be analogous.

Keywords: Skin, Dream, Magical Block, Contact-barrier, Symbiosis.


 

 

 

Assim como há muitos anos fez a revista Idilio, convidando os leitores a enviar seus sonhos, a ide o faz agora, convidando, porém, os leitores a pensar sobre sonhos. Vários leitores responderam ao convite e remeteram suas contribuições à Idilio, e eu caí na tentação de pensar e responder à carta-convite da ide. Envolvi-me no tema “O sonho e a pele”, pois ambos são películas, sutis membranas que envolvem e protegem um organismo animal, ou uma líquida superfície, ou o sono.

São finas camadas, mas complexas.

Se a pele é funcional em ambos os sentidos, recebendo projeções internas/externas e protegendo o organismo do meio exterior, o sonho, identicamente, constitui uma paraexcitação envolvendo o psiquismo adormecido, e cuidando de proteger o sono das sensações exteriores como luz, som, sensações térmicas, restos diurnos, guardando o sono. O sonho também é uma frágil e efêmera membrana, que prontamente pode dissipar, romper-se, embora o sonhador suponha que essa película o tranquilize, mantendo a beatitude do narcisismo ou o prazer da ausência das tensões.

“... como a observação das fotografias criadas a partir do sonho, uma obra de arte nos deu o que pensar” ... e esta gravura acima (Calza, p. 207), também criada a partir de um sonho, deu-me muito a pensar.

Seu autor, Hokusai (1760-1848), foi um conhecido artista japonês do período Edo, época em que o Japão se modernizou. Filho adotivo de um fabricante de espelhos, dedicou-se durante anos ao estudo da perspectiva e foi um grande gravurista que se envolveu a fundo em sua arte. Mas, quando o Japão saiu de seu longo isolamento perante o Ocidente, sua obra foi proscrita e esquecida. Suas gravuras foram utilizadas para outros fins: embalaram finas porcelanas, serviços de chá que eram enviados para a França. Foi dessa maneira que muitos artistas ocidentais tomaram conhecimento de um exímio desenhista, cujas gravuras eróticas, proibidas no Japão, acabaram influenciando artistas como Van Gogh, Degas, Lautrec e outros.

Supus que essa gravura conteria em si o tema proposto pela IDE. Chama-se O sonho da mulher do pescador, e imaginei que pudesse ser apreciada pelos leitores, pois “sonhamos com imagens fluidas, nebulosas, por vezes intimidativas e angustiantes, essencialmente insólitas, sempre enigmáticas ...”.

Anos mais tarde, Freud (1900/1976) trabalhava espreitando os sonhos e interpretou-os como realizações imaginárias de desejos. Mais tarde, elabora que o sonho realiza os desejos do id, desejos sexuais autoeróticos, agressivos, autodestrutivos, de acordo com o princípio do prazer, ao qual responde o funcionamento do id. O sonho realiza o desejo do eu, que seria o de dormir profundamente, e realiza também o desejo de restabelecer uma fusão primitiva do eu com o objeto, um reencontro da simbiose intrauterina.

Na gravura de Hokusai, o contato da pele feminina com as ventosas do polvo, segue esta ideia da simbiose. Essas duas superfícies formam um conjunto, uma dupla membrana, intuída por Freud em 1925 e chamada de “Bloco Mágico”. Neste, uma superfície tem a finalidade da para-excitação e a outra, a de inscrição, criando um universo tátil, tal como acontece com as sensações cutâneas do bebê, que se iniciam ainda antes do nascimento. Talvez somente o universo onírico forneça essas possibilidades imensas, só nesse rico espaço se desenvolveria esse específico contato delicado do processo sensorial entre a pele da jovem e um ser marinho, um espaço de inclusões mútuas, como ocorre com mãe/filho no universo intrauterino.

O fundo da gravura é a descrição do sonho em Kenji, e dele emerge e se destaca um par, figuras simbióticas repetindo talvez alguma experiência inicial do bebê, quando transitam e ocorrem movimentos de incorporação e expulsão em seus orifícios, ou a ilusão amorosa que advém de uma solução em abolir as faces interna e externa das películas e criar apenas uma parede dupla, constituída de uma fusão eu/outro, uma solução imaginária ou onírica de uma só pele para ambos, perfurada por órgãos dos sentidos, ventosas do polvo, mamilos e vulva da mulher. A sensibilidade desses orifícios orientados para o interior de um e o interior do outro.

Bion (1987) preconizou a ideia de barreira de contato, que se desenvolve quando impressões sensoriais são transformadas em elementos capazes de se prestar a pensamentos oníricos ou pensamentos inconscientes de vigília. Essas distinções terão grande importância, tanto que Bick (1967/1981) cria a noção de “pele psíquica” a partir do conceito de continente psíquico, e Anzieu (1989) propõe a noção ego/pele partindo de outros caminhos.

Pele/sonho, mulher/polvo... A partir desse contato podemos supor um fantástico espaço de mútua inclusão, aquela entidade neurofisiológica que Freud um dia descreveu e que mais tarde foi denominada sinapse. Anos depois Bion (1987) a retomará para dizer que, se a barreira de contato se manifesta clinicamente, o faz sob a forma de sonhos, ou aquilo que no período Edo, no Japão, era denominado “prazeres do mundo flutuante” (Hashimoto, 2002).

Segundo Anzieu (1989, p. 294), tanto a palavra falada como a escrita têm poder de pele.

 

Referências

Anzieu, D. (1989). A noção do eu-pele. In D. Anzieu, O eu-pele (pp. 57-67). São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

Bick, E. (1981). A experiência da pele em relações de objeto arcaicas. In E. P. Spillius, Melanie Klein hoje, Vol. 1. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1967).        [ Links ]

Bion, W. R. (1987). Aprendiendo de la experiência (Cap. 3, pp. 37-39). México: Paidós.        [ Links ]

Calza, G. C. (2003). Hokusai. London: Phaidon Press.        [ Links ]

Freud, S. (1976). A interpretação dos sonhos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 5). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900).        [ Links ]

Freud, S. (1976). Uma nota sobre o Bloco Mágico. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 19, pp. 283-293). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1925).        [ Links ]

Hashimoto, M. (2002). Pintura e escritura do mundo flutuante: Hishikawa Moronobu e ukyo-e e Saikaku Ihara e ukyio zôshi. São Paulo: Hedra.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Orlando Hardt Junior
Av. São João, 660/40
12242-840 &– São José dos Campos &– SP
Tel.: 12 3922-7931
E-mail: silvanarea@uol.com.br

Recebido: 30/09/2009
Aceito: 08/10/2009

 

 

* Psicanalista, membro associado da SBPSP.