SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.32 número49O sonho da mulher do pescadorO corpo do sonho índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.32 n.49 São Paulo dez. 2009

 

EM PAUTA - O SONHO E A PELE

 

Experiência, imagem, o pensamento-sonho

 

Experience, image, the dream-though

 

 

Claudio Castelo Filho*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor descreve a condição que seria necessária para um trabalho criativo em psicanálise (e também nas demais ciências e artes). Relata estados que se aproximariam daquilo experimentado por visionários e alucinados, mas que, diferentemente dos últimos, são percebidos no espaço mental na forma de pensamentos-sonho ou sonhos. Para esclarecer seus pontos de vista, vale-se de observações feitas por Bion, Longman e Proust.

Palavras-chave: Sonho, Pensamento-sonho, Imagens visuais.


ABSTRACT

The author describes what he believes is the condition required to do a creative work in psychoanalysis (and also in other sciences and in arts). He describes mental states that are keen to ones lived by visionary and hallucinated people, but perceived as happening in the mental space in the form of dream-thoughts and dreams. The works by Bion, Longman and Proust are used by the author to make his point clear.

Keywords: Dream, Dreamthoughts, Visual images.


 

 

Em seu artigo “Além da agressividade na teoria das neuroses” José Longman (1989/2008a) expõe uma situação pessoal que usa de modelo para o estado de mente que seria necessário para um analista trabalhar em psicanálise. A situação descrita (aquilo que Bion (1970/1977d), chamaria de uma evolução) não ocorreu em uma sessão analítica, mas ele a usa para evidenciar a qualidade e a intensidade de experiência que um analista precisaria estar disposto a viver para perceber algo de relevante da realidade psíquica, a despeito de ela ser impactante.

Longman havia viajado para dar um curso em outra cidade exatamente na época em que sua filha estava para dar à luz. Depois de uma noite de expectativas e sem notícias, recebeu um telefonema que o informou do nascimento de sua neta. Mais tarde sua esposa confirmou que tudo ocorrera como esperado e que a filha e a bebê passavam bem. Reproduzo em seguida o texto dele:

Algumas horas depois, quando fazia um pequeno passeio, me dei conta de estar deprimido, um sentimento próximo à tristeza, em contradição com a realidade aparente da situação que me deixara satisfeito. Nesse voltar para mim, sou invadido por um pensamentosonho: vejo aparecer no espaço mental, como num vídeo, caminhando e se desvanecendo ao longe, sucessivamente, figuras humanas não muito distintas, fantasmagóricas, que sabia serem meus antepassados ... até que surgiram meus pais, meus irmãos, meus filhos, minha neta. Aos quais se seguiram outros que sabia serem meus descendentes. Um imenso e longo desfile de uma longa duração de segundos. Sentia-me invadido pelo sentimento da minha insignificância nesta dimensão da existência humana, uma despersonalização integrada na família, envolvido no mistério da criação; criatura, não um criador. ... A experiência, como toda experiência vivida, foi inefável. ... Acontece que seu aparecimento inesperado e não refletido, a sua qualidade de estar totalmente presente, envolvendo toda a personalidade com força de convicção do real... É um entremeio entre o sonho e a vigília, a experiência transformada em imagem visualizada. (Longman,1989/2008a, pp. 48-49)

 

 

Esta experiência transformada em imagem visualizada o teria permitido:

... Ver operando silenciosamente os instintos de vida e de morte e os elementos do mito edípico, que reestruturam e organizam civilizadamente as relações do observador com a filha e os familiares; a afirmação individual como função do instinto de vida e do desejo de viver, enquanto a falência da individualidade serve à sobrevivência da espécie; a expressão positiva do instinto de morte na tendência conservadora a manter-se integrado na família, na aparente segurança do familiar, do habitual; a alternativa entre o narcisismo ameaçado da afirmação pessoal e o amor objetal; a integração e a desintegração do ego na continuidade dinâmica da qual se tinha destacado; o casamento e o nascimento tomados narcisisticamente como fatores construtivos de autoafirmação ligados ao crescimento do ego, numa união e organização mais elevada da continuidade da espécie. O nascimento da neta desfazendo em parte esta idealização, com o consequente sofrimento de dor que acompanha toda limitação da expansividade onipotente do ego, caracterizam o alcance da posição depressiva (Klein). ... A “aparição” não tem, tampouco, o caráter de uma introspecção, não se passa na subjetividade do indivíduo &– ela fala de coisas que estão acontecendo “agora”.

Em outro artigo, “O objeto psicanalítico: uma aproximação a partir da experiência”, Longman (1997/2008b) diz que o objeto psicanalítico, que é diferente do objeto sensorial, tem a mesma qualidade dos objetos oníricos de se fazerem conscientes e que devemos estar atentos à sua emergência em plena consciência. Percebê-lo dependeria da capacidade para cegar-se artificialmente no trabalho, com o fim de concentrar toda a luz na única passagem obscura, como escreveu Freud a Lou Salomé. Obedecida esta disciplina, diz Longman: “Vamos poder percebê-lo como os poetas, os sonhadores, os artistas, os delirantes e alucinados, embora o concebendo como psicanalista” (p. 69).

 

Bion e Freud: o sonhar

Houve uma grande modificação no modo de considerar a função do sonhar no pensamento proposto por Bion em relação ao proposto por Freud.

A atividade de sonhar está associada à função alfa (Bion, 1962/1977b), que transforma dados sensoriais em elementos alfa. Os elementos alfa são utilizados na formação de sonhos e pensamentos- sonho. São, em geral, equivalentes a imagens visuais. São os cenários e figurinos que foram abstraídos de experiências de vida e perderam a característica de concretude (ou coisa em si), portanto possuem qualidade simbólica tal como os elementos cenográficos de uma peça de teatro, de um filme ou de um quadro.

Antes do sonhar, não existe diferença entre consciente e inconsciente, entre mundo interno e mundo externo, entre realidade psíquica não sensorial e realidade sensorial. Na ausência da função alfa, o indivíduo se depara com uma tela de elementos beta que, por sua vez, só se prestam a ser evacuados por meio de identificações projetivas.

A função alfa e o sonhar são condições sem as quais qualquer processo criativo está impossibilitado de ocorrer.

Bion fez uma inversão do pensamento de Freud sobre a função dos sonhos e como eles se constituem. Para ele, o sonho não é o resultado de um processo de idéias latentes. É o próprio ato de sonhar que vai constituir o que é consciente e o que é inconsciente, o manifesto e o latente. O indivíduo incapaz de sonhar não é capaz de constituir, de separar consciente de inconsciente. Não há dentro nem fora, tampouco há distinção entre realidade psíquica e realidade externa. Desse modo, também não é capaz de dormir nem de acordar. Ele diz em “Desenvolvimento do pensamento esquizofrênico” (1967/1988, p. 42): “O paciente ... se move não num mundo de sonhos, mas num mundo de objetos que comumente são o conteúdo dos sonhos”. É através da atividade da função alfa que os elementos sensoriais podem ser processados, digeridos, tornando-se elementos alfa, capazes de ser reunidos para produzirem sonhos e pensamentos. Os elementos alfa correspondem a imagens visuais1.

O sonho, para Bion, seja durante a vigília ou durante o sono, organiza em imagens visuais um insight. Primeiro, este insight se apresenta de forma visual (uma conjunção constante). Só podemos ter acesso ao que percebemos através dessa captação imagética proporcionada pelo sonho. A partir daquilo que vemos em uma imagem onírica é que se poderá organizar um discurso, uma ideia que dá sentido àquilo visto na imagem, não o contrário. O sonho, neste sentido, não é uma deformação de sentidos latentes reprimidos; sua configuração em imagens visuais é o primeiro processo de sintetização das experiências sensoriais e emocionais sofridas por uma pessoa. É “olhando” para essa organização que se poderá atribuir palavras àquilo que se vê pela primeira vez. Portanto, o sonho, invertendo aquilo que propôs Freud, faz com que surjam palavras para que se possa falar o que nele se mostrou e não é uma deformação de palavras tendo em vista um recalque. As palavras, que surgem para se falar do que se vê, são, por sua vez, outro tipo de transformação que se refere a um “O” ou realidade última. O “O” propriamente é inexprimível, e dele, quando possível, conseguimos nos expressar somente através das transformações possíveis (em imagem, em palavras, em música &– uma coisa não se torna outra, todas essas maneiras buscam expressar O, são transformações de2 O, que, por sua vez, não foi transmutado em nenhuma dessas expressões).

Cito Bion em Learning from experience:

O “sonho” tem muitas das funções da censura e da resistência. Estas funções não são o produto do inconsciente, mas instrumentos através dos quais o “sonho” cria e diferencia consciente de inconsciente.

Resumindo: o “sonho” junto com a função alfa, a qual torna o sonho possível, é central para a operação da consciência e da inconsciência, do que depende o pensamento ordenado. A teoria da função alfa do “sonho” tem os elementos do ponto de vista representado pela teoria clássica da psicanálise, isto é, censura e resistência estão representadas nela. Mas na teoria da função alfa, os poderes da censura e da resistência são essenciais para a diferenciação do consciente e do inconsciente e ajudam a manter a discriminação entre os dois. Esta discriminação deriva da operação do “sonho”, o qual é uma combinação em forma narrativa dos pensamentos oníricos, cujos pensamentos, por sua vez, derivam da combinação de elementos alfa. Nesta teoria a habilidade para “sonhar” preserva a personalidade daquilo que é virtualmente um estado psicótico. Ela, portanto, ajuda a explicar a tenacidade com a qual o sonho, tal como representado na teoria clássica, defende-se contra a tentativa de tornar o inconsciente consciente. Tal tentativa parece ser indistinguível da destruição da capacidade de sonhar até o ponto em que esta capacidade está relacionada à diferenciação do consciente do inconsciente e à manutenção da diferença estabilizada. (Bion, 1962/1977b, p. 16)

Cito ainda Cogitations:

O cerne do sonho não é o conteúdo manifesto, mas a experiência emocional; os dados sensoriais, pertinentes à experiência emocional, são trabalhados pela função de maneira que sejam transformados em material adequado para o pensamento inconsciente de vigília ... (Bion, 1992, p. 233)

Bion propõe que a condição para se intuir, ver o inefável, a realidade psíquica não sensorial, é necessária a disciplina de afastamento de memórias e desejos. O analista precisa estar no seu trabalho sem expectativas do que encontrará, do que poderá se desenvolver, acontecer, e muito menos resolver e se resolver. Somente assim poderá, eventualmente, captar algo que evolui do infinito e sem forma, tal como relata Longman, ou conforme o que teria proposto Charcot a Freud: que ele observasse até que o que ele estivesse observando dissesse a ele, observador, Freud, o que era, e não o contrário.

 

Proust

Em À la recherche du temps perdu, Proust, na pele do narrador Marcel, relata a experiência do chá com a madeleine. Enquanto mergulha esse bolinho no chá, experimenta, como que emergindo do perfume da bebida misturada com o gosto do doce, todo um mundo supostamente ligado a seu passado. Emerge uma vivência onírica, intensa e total. De repente, aquilo tudo que ele parecia captar parece se esvanecer, escapar-lhe. Aflito, mergulha repetidamente, de modo intencional, a madeleine no chá, procurando reter, capturar a vivência inefável que acabara de ter. Percebe, contudo, que quanto mais tenta segurar, não deixar fugir aquilo que vivera instantes antes, mais se distancia da qualidade da vivência intensa que experimentara. Verifica, quando força a situação, a presença de memórias, mas essas carecem da verdade daquilo que vislumbrara no primeiro instante. Quanto mais tenta correr atrás da vivência inefável, quanto mais tenta relembrar o que vira, mais ela lhe escapa, sendo substituída por algo que sente como sendo artificial, racionalmente organizado, mas sem a “vida” da primeira impressão que sumira. Finalmente desiste de perseguir a vivência e se conforma com o desaparecimento dela. Quando não tem mais expectativas de encontrá-la, quando não força mais a situação na sua mente, surpreende-se por ser novamente invadido, de maneira inesperada, por aquilo que lhe escapara no primeiro momento. Como que emergindo, de forma involuntária e intensamente envolto por uma qualidade emocional inequívoca, aparece todo um mundo onírico de onde surgem os personagens que vão habitar todo o imenso romance. Eles, aparentemente, estão relacionados às memórias do autor, mas, na verdade, são criações do autor que organizam suas experiências de vida e sintetizam (como ocorre nos sonhos) o cerne das diversas situações humanas com as quais “aprendeu”.

Como nos sonhos, Oriane de Guermantes, a duquesa, não é a memória de uma pessoa real, ela é o amálgama de muitas pessoas, ela é uma imagem-sonho que reúne características comuns que sintetizam experiências do autor. Os biógrafos de Proust costumam associá-la a figuras da sociedade francesa do fim do século xix e do início do xx, como a Condessa Grefühe, a Condessa de Chévigné, ou a Duquesa de Gramont. Certamente a duquesa de Guermantes retém algo de todas elas, mas não é nenhuma delas. Ela é uma imagem-sonho uma representante onírica de experiências humanas. Ela sintetiza coisas que foram percebidas nessas mulheres reais e em muitas outras, mas ela é uma representação, como as imagens-sonho são, e não uma coisa em si. Só assim ela poderia se prestar ao sonho dos leitores, na medida em que é uma síntese de experiências humanas, uma representante de algo universal, reconhecível no íntimo dos demais seres humanos como algo que também tem a ver com eles, que ela também representa algo intrínseco e importante dos leitores. Isso é o que faria do trabalho de Proust uma obra de arte, e não apenas um relato tedioso de fatos não assimilados psiquicamente.

 

O analista trabalhando

Para saber o que lhe interessa em análise, o analista precisaria fazer como o narrador da Recherche: afastar sua memória racional, seus desejos de ver e resolver qualquer coisa. Precisaria estar disponível, afastando memória e desejo, para ver o que poderia emergir de seu mundo onírico que mostrasse o que teria sintetizado de suas experiências com o paciente, que, a partir das impressões sensoriais, tivessem sido elaboradas pela função alfa, tornadas elementos alfa. Estes, por sua vez, reunidos em uma trama de tecido onírico que expressasse a essência do que estaria sendo vivido pela dupla analisando-analista, sintetizando, como na Recherche, ou na apreensão feita pelo Dr. Longman, a alma da experiência.

Para trabalhar propriamente em análise, um analista não deve ter nenhum a priori sobre seu paciente, nem sequer um plano ou um modelo de como ele deveria ser. Estar disponível para encontrar e mostrar aquilo que o analisando se revelar é a posição que caberia ao analista. É desse modo que a análise se tornará um trabalho criativo.

 

Referências

Bion, W. R. (1977a). Elements of psychoanalysis. In W. R. Bion, Seven servants: Four works by Wilfred R. Bion. New York: J. Aronson. (Trabalho original publicado em 1963).        [ Links ]

Bion, W. R. (1977b). Learning from experience. In W. R. Bion, Seven servants: Four works by Wilfred R. Bion. New York: J. Aronson. (Trabalho original publicado em 1962).        [ Links ]

Bion, W. R. (1977c). Transformations. In W. R. Bion, Seven servants: Four works by Wilfred R. Bion. New York: J. Aronson. (Trabalho original publicado em 1965).        [ Links ]

Bion, W. R. (1977d). Attention and interpretation. In W. R. Bion, Seven servants: Four works by Wilfred R. Bion. New York: J. Aronson. (Trabalho original publicado em 1970).        [ Links ]

Bion, W. R. (1988). Estudos psicanalíticos revisados (Second thoughts). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1967).        [ Links ]

Bion, W. R. (1992). Cogitations. London: Karnac Books.        [ Links ]

Bion, W. R. (2005). The Tavistock Seminars. London: Karnac Books.        [ Links ]

Castelo Filho, C. (2004). O processo criativo: transformação e ruptura. São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

Longman, J. (2008a). Além da agressividade das neuroses. In Signorini, J., Ziskind, A. M. S., & Longman, E. (Orgs.). José Longman: psicanálise viva (pp. 42-53). Rio de Janeiro: Corifeu. (Trabalho original publicado em 1989).        [ Links ]

Longman, J. (2008b). O objeto psicanalítico: uma aproximação a partir da experiência. In Signorini, J., Ziskind, A. M. S., & Longman, E. (Orgs.). José Longman: psicanálise viva (pp. 68-74). Rio de Janeiro: Corifeu. (Trabalho original publicado em 1997).        [ Links ]

Klein, M. (1980). Notes on some schizoid mechanisms. In M. Klein, Envy and gratitude and other works (pp. 1-24). London: Hogarth. (Trabalho original publicado em 1946).        [ Links ]

Miller, A. I. (2000). Insights of genius. Cambridge and London: The MIT Press. (Trabalho original publicado em 1996).        [ Links ]

Proust, M. (1954). À la recherche du temps perdu. Paris: Gallimard.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Claudio Castelo Filho
Rua Carlos Sampaio, 304/72
01333-020 &– São Paulo &– SP
Tel.: 11 3284-0424
E-mail: claudio.castelo@uol.com.br

Recebido: 18/08/2009
Aceito: 08/08/2009

 

 

* Analista didata da SBPSP, Doutor em Psicologia Social e Livre Docente em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo.
1 Uma pessoa em transformações em alucinose não tem qualquer dúvida. O que ela percebe É o que existe. Suas percepções não são representações, mas coisas em si. Os elementos alfa podem constituir imagens e pensamentos que representam, mas não são. Os elementos alfa e os sonhos e pensamentos por eles constituídos não são coisas em si, mas abstrações. Em “Common sense and scientific intuition”, A. I. Miller (1996/2000, p. 15) escreve: “Representar fenômenos significa literalmente re-(a)presentá-los [re-presenting] seja através de um texto, imaginação visual, ou combinação de ambos”.
2 Saliento a diferença de transformações de O com transformações em O. As transformações em O são vivênciasíntimas e intransponíveis correspondentes a sentir-se em comunhão (at-onement) com a coisa em si. Para se falar das vivências de transformações em O é preciso apelar para as diferentes representações dela, ou seja, transformações de O, que podem ser em mitos, sonhos, equação matemática, teoria científica, música e assim por diante.