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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.32 n.49 São Paulo dez. 2009

 

EM PAUTA - O SONHO E A PELE

 

Imagens oníricas e suas representações

 

Dream images and its representations

 

 

Marisa Pelella Melega*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo a autora trabalha com imagens oníricas partindo de dois contextos: o contexto apresentado pelas fotomontagens de Grete Stern e o contexto analítico. Neste último, a autora situa o leitor primeiramente na teorização acerca dos sonhos, do processo onírico e dos símbolos oníricos. A seguir usa um sonho para ilustrar os movimentos do sonhador e do analista em busca de significados por meio das imagens oníricas que aparecem na sessão, e aproxima estas imagens às fotomontagens de Grete Stern.

Palavras-chave: Imagens oníricas, Processo onírico, Símbolos oníricos, Contexto analítico, Fotomontagens.


ABSTRACT

The author of this paper investigates dream images based on two different contexts: that presented by Grete Stern’s photomontages, and the analytic context. For this latter, the author situates the reader in the theory of dreams, the dreaming process and dream symbols. Then uses a dream to illustrate the movements of the dreamer and analyst in search of meanings through the dream images that arise in the session, and compares these images with Grete Stern’s photomontages.

Keywords: Dream images, Dreaming process, Dream symbols, Analytic context, Phothomontages.


 

 

Os sonhos noturnos sempre despertaram curiosidade, desejo de desvendar essa função mental que está em atividade enquanto dormimos, de conhecer seus significados, suas premonições e assim por diante. Aqueles que mantêm uma atitude reflexiva e investigativa acerca de si mesmos procuram se aprofundar nesse tema estudando-o sistematicamente.

Por meio de um grande amigo, dr. Di Loreto, tomei conhecimento de um tratado sobre sonhos de 1591, de autoria do religioso italiano Battista Segni Bolognesi. Também chegou às minhas mãos, doado por Fernanda Colucci, o livro I Sogni-Studi psicologici e clinici (1899), de Sante di Santis, docente da Universidade de Roma. Curioso é que ele desconhecia os estudos de Freud acerca dos sonhos, publicados nessa mesma época, pois não consta de sua bibliografia.

Sem dúvida muito se tem escrito sobre sonhos, tema abordado dos mais diversos ângulos por acadêmicos de medicina, por artistas, por escritores e por psicanalistas.

Interpretar os sonhos penso ser das atividades mais difíceis do trabalho analítico. Freud deu luz aos sonhos sistematizando sobre eles uma abordagem e uma origem. Ele percebeu, ao seguir as associações de seus pacientes, buscando reminiscências que pudessem explicar o significado de um sintoma, que entre as associações aparecia um sonho. A partir daí se sentiu obrigado a dar atenção ao mundo onírico. A experiência de analisar seus próprios sonhos levou-o a compreender que estes, além de guardarem um fragmento do significado relativo aos sintomas, eram também depositários de emoções: sonhos de angústia, de perseguição, de vergonha etc. Com a análise dos sonhos de Dora, Freud buscou o sentido mas não se fez a pergunta de por que Dora os teria sonhado naquele momento. Tal pergunta agora é obrigatória: o analista necessita acompanhar o sentido transferencial do sonho no processo analítico, pois sonhos durante a análise são tentativas de elaboração das experiências emocionais que acontecem durante a relação analítica.

Nas décadas de 1940 e 1950, as interpretações dos sonhos seguiam os ensinamentos do fundador da Psicanálise, época, penso eu, em que havia forte tendência em divulgar a Psicanálise como método terapêutico. Foi nesse contexto que aconteceu uma experiência que se tornou singular pela participação de uma artista, Grete Stern.

Aos leitores de uma revista feminina, Idilio, foi oferecida a oportunidade de enviarem os escritos de seus sonhos para serem “interpretados” por psicólogos associados à revista. Esta foi a matéria- prima para que Grete Stern, por meio de fotomontagens, desse visibilidade aos sonhos dos leitores. Entendo que houve o objetivo de demonstrar aos leitores que os sonhos podem ser “lidos” e compreendidos e que algumas de suas formas são universais, como o são os símbolos adquiridos e os signos de uma cultura. Por esse motivo, então, tais sonhos puderam ser agrupados por seu significado: conflitos ou emoções1. Trabalho inovador da fotógrafa, e ainda a serviço da divulgação da Psicanálise por meio dos sonhos.

Servindo-nos das novas contribuições à Psicanálise, sabemos que os sonhos são de fato “legíveis” durante a sessão analítica dentro do contexto transferência-contratransferência. Os sonhos noturnos são entendidos como parte de um processo onírico contínuo dia e noite na personalidade, processo este que se encarrega de transformar experiências sensoriais e emocionais em símbolos. Esta transformação foi descrita por W. Bion (1962/1991) em seu “Uma teoria do pensar”. Nesta teoria a transformação se dá por uma função da mente, a função Alpha, que, operando as experiências sensoriais e emocionais, produz elementos Alpha. Estes são principalmente imagens visuais, mas também auditivas e cenestésicas. Entendemos que a produção do sonho noturno se serve de vários flashes oníricos diurnos &– elementos Alpha &– que vão sendo armazenados para serem “representados”, “remontados”, formulando-se uma narrativa do sonho.

Vamos a um exemplo. Em uma segunda-feira, Louise chega na hora para a sessão e, satisfeita, entra na sala de análise: “Parece que faz tanto tempo que não venho aqui...”.

De fato, na quinta-feira anterior, sua última sessão na semana, não pude atendê-la, e ao avisá-la disso durante a sessão de quarta- feira, ela não conseguiu encontrar um horário de reposição. Embora sentisse uma hostilidade encoberta, não foi possível falarlhe sobre isso porque ela se “retirou” em um silêncio-apagamento que em sessões anteriores descreveu como “estado de sonolência”, em que ouve o que se diz mas se sente longe e não consegue responder. Em seguida conta um sonho que teve na noite de domingo, dizendo que notou que sonha em cores e que percebeu as cores do sonho como importantes:

Era um clima de guerra... parecia de alemães ou italianos... e uma fuga de guerra... muita gente... eu era jovem... e me lembro bem que meu pai estava lá, talvez toda a minha família... e chegamos num lugar como se fôssemos ficar... e um quarto que iria ser meu quarto, enfim, onde eu iria ficar... havia uma escrivaninha, lindíssima, cor de vinho, estilo meio inglês, grande, com duas gavetinhas que poderiam ser fechadas como cofre, com segredo. (Depois explicou que estavam abertas e tenta me descrever a escrivaninha, que estava tão nítida em sua mente que poderia desenhála... algo que ela sempre gostou e sempre quis ter...) Mas daí tínhamos que ir embora, entrando num trem, ou num ônibus, talvez um ‘trem-comboio’ grande... muita gente... Havia homens uniformizados... pareciam italianos, uniforme composé, assim, azul-marinho com listras brancas ou com bolinhas brancas, era talvez o bilheteiro... se juntaram com o manobrista, o condutor... para tirar uma foto, e eu vendo-os juntos para a foto, era engraçado, pareciam palhaços... o clima era italiano. Havia... em outro momento que não lembro, vinho Chianti, aquela garrafa com palha... Engraçado, eu falei vinho nas garrafas e escrivaninha cor de vinho... algo comum...

As associações de Louise foram: alemã ou italiana diz respeito à analista. Sentiu angústia no trecho do sonho no qual tinha de fugir. Sentiu ser bom e divertido o trecho da fotografia e do vinho Chianti...

Associo o sonho aos acontecimentos da sessão de quartafeira: o clima de guerra, o silêncio e o clima de fuga quando se “retirou” em sua sonolência-incomunicabilidade...

Havia uma ameaça no sonho da qual precisava fugir e que se transformou em algo bom e divertido no final do sonho, exatamente como fez no final da sessão de quarta-feira se despedindo com “até amanhã”, embora estivesse informada de que eu não poderia atendê-la.

As imagens visuais do sonho são: 1. guerra e fuga; 2. um novo lugar, escrivaninha cor de vinho e duas gavetinhas; 3. ter de ir embora; 4. “trem-comboio” com homens uniformizados; 5. homens- palhaços, um clima italiano, garrafa de vinho Chianti...; 6. a cor do vinho nos dois objetos: escrivaninha-gavetinhas, garrafa de vinho Chianti com palha.

No nível transferencial, a paciente parece ter tido uma experiência emocional (na sessão de quarta-feira, ao avisá-la da desmarcação) que não conseguiu elaborar: retirou-se do contato invocando sonolência, não respondendo às minhas intervenções e, ao terminar a sessão, despediu-se com um “até amanhã”, quando na verdade não iríamos ter a sessão do dia seguinte. É possível conjecturar que ela tenha se sentido “expulsa de seu lugar”, excluída pela analista que estaria ocupando “seu lugar” com “outra coisa”.

Este exemplo dá uma amostra da importância de abordar o sonho em seu nível transferencial. É claro que a resposta de Louise à desmarcação da sessão tem a ver com a estrutura de sua personalidade, mas não trataremos disso neste trabalho.

Voltando aos sonhos representados por Grete Stern, completados com as interpretações do prof. Richard Rest, detenho-me no “Os sonhos de formas”, que são entendidos como relacionados a desenvolvimentos do Eu e da Personalidade.

 

Os sonhos de formas2

Estes sonhos, que frequentemente têm um significado muito profundo, são de difícil interpretação em cada caso concreto. Relacionam-se em geral, mais do que com problemas contingentes da vida real ou psíquica do sonhador, com o desenvolvimento do ego, de sua própria personalidade. Quando se trata de figuras geométricas, por exemplo quadros (ou cubos) e círculos (ou esferas), e especialmente neste último caso (lembremos que ambas as figuras eram consideradas símbolos de perfeição na Antiguidade), tais imagens oníricas referem-se ao ideal de perfeição do ego que o sonhador hospeda no seu inconsciente. O cubo que apareceu neste sonho indicava o anelo da sonhadora em alcançar pleno equilíbrio de todas as funções psíquicas, e a presença das demais figuras geométricas &– com a significativa exclusão da esfera &– era indício de forte tendência ao ideal da predominância das faculdades intelectuais3.

 

 

Se entendemos o sonho como narrativas dos processos oníricos da mente, teremos de admitir que muitas vezes há também continuidade de significado e, com frequência, de formas simbólicas utilizadas pela personalidade do sonhador. Meltzer (1984) considera as imagens do sonho um teatro com vários personagens: bons, maus, velhos, jovens etc., que são partes do self e também dos objetos.

Voltando ao sonho de Louise, veremos personagens-self e personagens-objetos e a imagem garrafa de vinho Chianti como um fato selecionado, como a dicção poética do sonho. Ainda neste sonho, põem-se de manifesto as dificuldades emocionais inerentes à passagem de um espaço a outro. E a formação de um objeto que pertence à experiência inicial da paciente, que possa conter sua depressão.

Retomando nosso referencial teórico de processo onírico, das transformações de experiências emocionais pela função Alpha, dia e noite, em elementos Alpha, é preciso lembrar outro tipo de interação entre o verbal e o visual que ocorre em sonhos em que espaços, formas e cores têm a função, me parece, de ancorar estados sensoriais e emocionais que buscam um significado no sonhador.

É frequente observar, em minha experiência, a descrição de redemoinhos, de passagens rumo a uma saída que não pode ser ultrapassada, um obstáculo que impede chegar a outro lugar.

Assim como o sonho noturno, habitualmente acontecido fora da sessão e contado ao analista em sessão seguinte, pensamos que também a produção gráfica, que ocorre entre sessões e geralmente em pacientes crianças e adolescentes, pode ser considerada parte do processo onírico como uma tentativa de transformação de experiências sensoriais e emocionais em imagens visuais, rumo à formação simbólica.

A paciente do sonho noturno contou-nos uma verdadeira narrativa de sua experiência emocional ocorrida durante a sessão, por meio de seus elementos visuais Alpha, produto de sua capacidade simbólica.

Voltando a Grete Stern, e a sua fotomontagem representando uma pessoa enclausurada em um caracol, talvez aí tenhamos uma aproximação com várias imagens que ouvimos descrever em nosso trabalho analítico.

 

 

Os sonhos de clausura4

“Sereia de água doce”5
As limitações que as forças psíquicas podem pôr ao desenvolvimento individual resultam às vezes tão eficientes como as correntes que, em épocas passadas, amarravam o prisioneiro às paredes da cela. Existem pessoas que se fecham em si mesmas, como um caramujo em sua concha. Às vezes ignoram que isso ocorre. Sentem tão somente uma vaga sensação de clausura, mas não sabem o porquê, nem mesmo que significado pode ter. Seu sofrimento nasce principalmente do fato de que, ao se limitarem, impedem o desenvolvimento pleno de suas potencialidades; dali surge o sentimento de frustração. Tal é o caso da jovem que acreditou encontrar paz e tranquilidade na renúncia, abandonando todo propósito de se afirmar em si mesma. Mas, com isso, renunciou também a uma vida plena e condenou-se a um estado de profunda depressão. O sonho indicou- lhe que devia “sair da concha”, para desenvolver cabalmente suas potencialidades anímicas6.

Tal abordagem sugeriria à leitora de Idilio que a explicação de seu sonho poderia ajudá-la a sair de sua carapaça. Mas dificilmente o conseguiria apenas com o significado que foi atribuído ao seu sonho.

Nos dias atuais, sabemos que mudanças psíquicas vão ocorrer durante um processo analítico pelo trabalho da transferência e contratransferência, inclusive dos sonhos relatados durante as sessões.

 

Referências

Bion, W. (1991). Uma teoria do pensar. In Spillius, E. B. (Org.), Melanie Klein hoje, desenvolvimentos da teoria e da técnica. Vol. 1: Artigos predominantemente teóricos (pp. 185-193). Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

Freud, S. (1953). The interpretation of dreams. In S. Freud, The standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud (James Strachey, trad., Vols. 4-5). London: Hogarth Press. (Trabalho original publicado em 1900).        [ Links ]

Meltzer, D. (1984). Dream-Life. Perthshire: Clunie Press/The Roland Harris Education Trust.        [ Links ]

Schwartz, J. (Org.) (2009). Os sonhos de Grete Stern. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Museu Lasar Segall.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Marisa Pelella Melega
Rua Barão do Triunfo, 1455
04602-005 &– São Paulo &– SP
Tel.| Fax: 11 5092-3883
E-mail: pmelega@uol.com.br
www.marisamelega.med.br

Recebido: 30/09/2009
Aceito: 20/10/2009

 

 

* Psicanalista, membro efetivo da SBPSP, autora de Pós-autismo: uma narrativa psicanalítica, Eugenio Montale: criatividade poética e psicanálise e O olhar e a escuta para compreender a primeira infância.
1 Cf. Jorge Schwartz (Org.), catálogo da exposição Os sonhos de Grete Stern: fotomontagens, São Paulo, 2009.
2 Idilio, Buenos Aires, n. 37, 2 de agosto de 1949.
3 Tradução livre por Marta Úrsula Lambrechet.
4 Agradecemos a Jorge Mara &— Galeria Jorge Mara La Ruche, Buenos Aires a autorização do uso das imagens nesta publicação.
5 Idilio, Buenos Aires, n. 72, 4 de abril de 1950.
6 Tradução livre de Marta Úrsula Lambrecht.