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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.32 n.49 São Paulo dez. 2009

 

EM PAUTA - O SONHO E A PELE

 

Psicanálise e mistério: o sonho de Nick Bantock

 

Psychoanalysis and mystery: the dream of Nick Bantock

 

 

Heloisa de Moraes Ramos* ; Mirian Malzyner**

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir do livro ilustrado Griffin & Sabine &– uma correspondência extraordinária, o artigo apresenta aspectos da clínica psicanalítica relacionados ao lugar do sonho, ao espaço potencial e às formas de linguagem discursiva e evocativa. Mostra as afinidades entre o sonho e todas as tentativas de apreensão do fenômeno humano, pelas formas artísticas e místicas de expressão. É abordada a questão da privacidade do self, da ideia de mistério e dos paradoxos.

Palavras-chave: Sonho, Símbolos apresentativos, Espaço potencial, Mistério.


ABSTRACT

This article is based on the book Griffin & Sabine &– an extraordinary correspondence. It presents some aspects of psychoanalytical practice related to the place of dreams, to the potential space and to the evocative and discursive forms of language. It also shows the affinities between dreams and all the other attempts to apprehend human phenomena through the artistic and mystic forms of expression. This article also approaches the question of the privacy of the self, the idea of mystery and of paradoxes.

Keywords: Dream, Presentational symbols, Potential space, Mystery.


 

 

Introdução

Enquanto psicanalistas, não podemos prescindir da experiência de mistério. Tentamos nos aproximar, descrever fenômenos cuja natureza não permite apreensão pelas formas tradicionais do conhecimento. Para abordar a questão do mistério e de suas formas de expressão, tomamos como estímulo um “sonho publicado”, o livro ilustrado Griffin & Sabine, de Nick Bantock. “Falar sobre” um livro é um risco assumido que corremos, já que é muito difícil comunicar a experiência da leitura. Descrever e reproduzir alguns trechos é um “pecado” que cometemos, conscientes de que estamos interferindo na inteireza de uma obra de arte. Por outro lado, uma obra de arte estática e intocável talvez não cumpra sua verdadeira função, a de permitir múltiplas apropriações, sendo transformada a cada encontro.

 

Griffin & Sabine: uma correspondência extraordinária

Nick Bantock (1994) é um artista gráfico e ilustrador inglês, nascido em 1949. Em 1991 publica Griffin & Sabine: uma correspondência extraordinária, um livro ilustrado que chamaremos de “livro-sonho”. O livro reproduz em imagem e texto a correspondência entre duas pessoas que não se conhecem pessoalmente; apenas trocam cartas e cartões-postais. São elas: Griffin Moss, um artista plástico que desenha e tem uma empresa de cartões-postais em Londres, e Sabine Strohen, uma ilustradora que desenha selos postais e que mora em uma ilha do Pacífico.

A forma do livro, ao reproduzir os cartões-postais e cartas trocadas pelos personagens, leva o leitor a saborear a experiência de penetrar na intimidade dessa troca, por exemplo, abrindo os envelopes para ter acesso ao conteúdo das cartas. Algumas são manuscritas &– as de Sabine, outras, datilografadas &– as de Griffin. Todas são magnificamente ilustradas com imagens oníricas, isto é, que não procuram traduzir ou imitar o “real”, mas sim apresentar uma natureza fantástica, “extra-ordinária”. Abrir o envelope e retirar a carta introduz um tempo e um ritmo à leitura. A leitura de um livro ocorre sempre em um tempo subjetivo, criando uma relação particular do leitor com o objetolivro. (figuras 1 e 2)1.

 

 

 

A trama que envolve os dois personagens tem como nó central um mistério. Embora nunca tenham se encontrado, Sabine “vê” o que Griffin desenha. Ela vive esse contato íntimo e único há 13 anos sem saber quem é a pessoa que faz os desenhos, até que um dia, por acaso2, encontra um artigo sobre uma firma de cartões-postais de um homem só. A partir dessa descoberta, Sabine resolve entrar em contato com Griffin e compartilhar o enigma, revelando-se &– uma desconhecida íntima. Vamos transcrever algumas citações literais do livro, que, por sua própria natureza, não apresenta numeração de páginas.

Assim escreve Sabine para um atônito Griffin, que começa a perceber o estranho fenômeno:

Griffin, você tem razão. Estou sendo misteriosa, mas é por um bom motivo. O que vou lhe dizer é inquietante e não quero que você se angustie. Eu partilho da sua visão. Quando você desenha e pinta, eu vejo o que está fazendo no momento em que o faz. Conheço o seu trabalho quase tão bem quanto o meu. Naturalmente não espero que você acredite nisso sem uma prova: outro dia, enquanto desenhava uma cabeça com giz, você parou e fez o esboço de um pássaro no canto inferior do papel. Em seguida o apagou e borrou todos os vestígios com um preto carregado. Não fique assustado &– só lhe desejo bem.

Sabine “vê” o que Griffin desenha; ela não lê os seus pensamentos verbais e não vê o que ele escreve. Trata-se de uma comunicação direta e por imagens.

Como começou esse fenômeno? Passeando com o pai na praia, Sabine, então com 15 anos, deixa cair um enorme caramujo no pé, o que a faz berrar de dor. Ao mesmo tempo, “houve uma explosão de araras-azuis e amarelas”. O pai de Sabine observa e diz: “Dor e beleza, nossas fiéis companheiras”.

E Sabine continua:

... estava deitada naquele estado meio dormindo, meio acordada, quando a imagem de uma flor semidesenhada apareceu na minha cabeça... foi tão real e claro... Eu podia ver o desenho, mas não a mão que o criava. Até que um barulho que veio de fora quebrou minha concentração e a imagem evaporou...

Um fato da vida, um momento de dor levando a novas percepções, uma experiência estética, que envolve a retomada da experiência de ilusão e onipotência fundantes do Ser. É um momento de comunhão com o mundo, em que se renova o paradoxo do encontro daquilo que está lá para ser encontrado.

A história continua, com duas pessoas interessadas no conhecimento mútuo, ávidas e apaixonadas, desejosas de mais e mais contato. Com maestria, o autor mantém a ambiguidade e o leitor vive a experiência da dúvida: sonho ou realidade? Sabine existe ou é uma criação alucinada de Griffin?

Claro está que não vamos resolver o mistério e, para nossos propósitos nesse momento do texto, já temos o suficiente: delimitar um campo de experiência, um lugar.

Um lugar que no caso de Griffin e Sabine está suspenso entre Londres e uma ilha do Pacífico; ou entre Nick Bantock e seus leitores; entre a mente do analista e do analisando. O lugar do sonho e da criação. É o espaço potencial, fundamental para a expressão do self.

 

Enigmas

Os enigmas ou o mistério, como escreve Gilberto Safra (2004), colocam-se em frente ao homem ao longo da vida com as questões “do nascer, do outro, do convívio com os outros, do convívio entre os outros, da geração, da precariedade da vida e da morte” (2004, p. 36). São perguntas que não se esgotam e a curiosidade que vai se expandindo diante delas se transforma em riqueza do viver. Poderíamos dizer que Griffin e Sabine não temem (pelo menos aparentemente) os riscos desse encontro tão inusual e misterioso e, movidos pela curiosidade, falam de suas origens:

Não sei nada sobre meus verdadeiros pais. Fui entregue a meu pai e minha mãe de criação por um velho que me encontrou nas encostas da montanha Pillow, “berrando no meio de metais negros e quentes e vidro quebrado”. ... Mais tarde, ele (o pai adotivo) tentou em vão procurar algum registro de queda de avião &– mas parece que eu tinha surgido do nada.

Assim Sabine fala de suas origens e parece aludir a um momento que precede o existir e ainda, em um plano mais amplo, às questões que acompanham os seres humanos. Não fossem as indagações, não haveria a busca. A curiosidade é o estímulo maior. Em análise contamos com o dom investigativo do paciente que, mesmo que procure respostas e soluções, pode descobrir-se capaz de reinventar a si mesmo num eterno vir a ser, aberto a novas possibilidades.

Agora é Griffin quem conta suas memórias:

Minha mãe era ítalo-irlandesa, meu pai, húngaroescocês. Nasci em Dublin e, quando tinha um ano, mudamos para a Inglaterra. Como você pode imaginar, eu não reconheceria minha nacionalidade nem se ela aparecesse e me mordesse...

Se para Sabine o nascimento é um enigma, Griffin fala de uma confusão de línguas, um estado desenraizado.

E continua:

... nossa casa era um templo ao livro. Tínhamos milhares, ou melhor, milhões de livros ... os livros dirigiam nossa vida. Eram nossos semideuses ... Meus pais, como dois enlouquecidos aviões de caça, investiam um contra o outro gritando e cuspindo veneno ...

Parece que os livros eram fonte de palavras vazias e não condiziam com a experiência.

... Meu pai usava seu uniforme tradicional, de meias curtas e roupão roído pelas traças, e minha mãe, suas pantufas e roupão amarelo. Minha entrada não alterava em nada esse embate, mas quando um deles acidentalmente derrubava uma pilha de livros, eles instantaneamente paravam para examinar o tamanho do estrago.

A cena da infância é rememorada com uma linguagem evocativa, impregnada de formas sensoriais, que transmite o clima de violência e de sentir-se um estrangeiro dentro de casa. Nos sonhos, assim como na escrita, existe uma capacidade de elaboração, o que Bollas chama de “esse instinto de se elaborar”, de libertar-se, deixar de ser prisioneiro da concepção de mundo de outra pessoa. No caso de Griffin, do destino de não existir.

 

Imagens evocativas

Sabine e Griffin contam suas experiências usando uma linguagem poética, entremeada de imagens evocativas, garantindo uma permeabilidade que estimula áreas desconhecidas do leitor:

... houve uma explosão de araras-azuis e amarelas
... meias curtas e roupão roído pelas traças
... pantufas e roupão amarelo

Essas imagens, mais do que descrever a experiência, são expressões que tocam diretamente os sentidos, através de formas icônicas. Não é um meio alternativo de expressar emoção, mas um meio de revelar suas formas de modo concreto, ainda que quase abstrato.

Quando a Psicanálise se voltou para a comunicação não verbal, deparou-se com outra dimensão do símbolo. Paralelamente, Susanne Langer escrevia sobre outras possibilidades de simbolização. Seu trabalho começou a ser considerado pelos psicanalistas.

Para Langer (1989), a obra de arte é uma interpretação simbólica complexa da vida emocional em uma forma que possibilita a apreensão do “ser”, mais do que a compreensão do seu significado. Os símbolos não verbais articulam as formas e texturas da experiência vivida, mais do que sua definição racional, e, como mostram a similaridade em forma analógica, ela os chama de “símbolos apresentativos”. A arte não descreve a experiência, mas a oferece diretamente aos sentidos através de formas icônicas.

Langer contrasta os símbolos apresentativos com as formas de linguagem que constroem o sentido através de sequências discursivas de símbolos representativos, cujo significado é consensual por convenção. As palavras nos permitem compreender a experiência, a referir-se e falar sobre ela, mas só podem nos mostrar como ela é quando a linguagem muda para uma forma poética. O ofício do poeta envolve “prender o céu e a terra na gaiola da forma”, nas palavras do poeta chinês Lu Chi.

Os símbolos não verbais revelam as formas da experiência e a retratam de forma similar à sintonia da resposta materna aos estados emocionais do bebê, e portanto remetem às primeiras experiências. (Wright, 2009)

 

Entre o dito e o indizível

O trabalho de Langer ilumina o processo analítico, concebido como o analista procurando formas continentes para elementos não realizados da vida emocional do paciente. O engajamento do analista com o paciente pode ser similar ao do artista com a paisagem, ou da mãe com o bebê.

Desse ponto de vista, a análise, assim como a arte, pode ser vista como um processo de encontrar formas para expressar o sentimento humano, formas que ressoem com a experiência do paciente, permitindo que ela seja contida e posteriormente apropriada, buscando sua expansão.

Susanne Langer faz uma análise detalhada dos símbolos não verbais e como eles diferem da linguagem, dos símbolos convencionais e das referências socialmente aceitas. Assim, enquanto as palavras referem-se a “algo” específico e aceito por consenso, os símbolos da arte, assim como nos sonhos, não tem um significado único. As representações não verbais dos sentimentos são multiformes. Na música, por exemplo, uma linha emocional específica pode gerar apreensões musicais infinitas, ligadas frouxamente através da similaridade formal. Para Langer, essa conexão pela forma entre o conteúdo emocional e os símbolos artísticos é a chave para entender o potencial expressivo da arte.

Posteriormente, Winnicott (1951/1978) apresenta sua concepção sobre o objeto transicional e fenômenos transicionais, contribuições importantes para a compreensão desse tema. O objeto transicional poderia ser chamado de um protossímbolo, ligado a um saber pré-verbal, pré-representacional. Como os símbolos descritos por Susanne Langer, não pode ser decodificado, reduzido a um significado único, e tem função de articulação simbólica da experiência sensorial. Sua função vai além da articulação e da representação do objeto ausente (a mãe) e da concepção de um não eu. É, também, um meio para a constituição da relação do bebê com o mundo, que de certa forma veicula seu estilo de ser. É um símbolo do Self, um símbolo apresentativo, que habita um espaço que não é interno nem externo, mas é o lugar da criação e dos sonhos. Lado a lado com a aquisição da linguagem, a criança vai criando e mapeando o mundo. O que é objetivamente percebido, anteriormente foi subjetivamente concebido.

O objeto transicional evoca sensorialmente o tom afetivo da experiência com a mãe. Posteriormente ele é abandonado como tal e encontra seu lugar na experiência cultural.

... mas, quando nada subsiste de um passado antigo, ... o aroma e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas ... levando sem se submeterem, sobre suas gotículas quase impalpáveis, o imenso edifício das recordações...3

Estas são palavras de Proust referindo-se às famosas madeleines oferecidas por sua mãe com uma xícara de chá, que evocaram, com imensa emoção, as recordações da infância em Combray. Esta é uma experiência de encanto e sensibilidade apresentada pelas madeleines.

Muito antes da aquisição verbal, a memória é contida nos objetos. É uma memória baseada em cheiros, sabores, texturas e sons. Com o desenvolvimento e o conhecimento da separação “eu-não eu”, a criança alcança a dimensão simbólica e torna-se possível conter a experiência em objetos imateriais ou, em outras palavras, na mente. No entanto, embora alcance um nível abstrato de pensamento, a evocação da experiência nunca pode dispensar completamente a continência das formas sensoriais.

Bollas (2009) expande o conceito de objeto transicional e do seu uso. Para ele, o indivíduo move-se no mundo e escolhe para si os objetos de que necessita para expressar aspectos do self, assim como para ter experiências fundamentais ao seu desenvolvimento. Essa escolha marca um estilo de ser e seria como uma “assinatura estética” da pessoa.

Neste texto escolhemos um livro-objeto para apresentar aspectos da clínica psicanalítica, na nossa particular apreensão.

A interação do par analítico, protegido pelo setting, instaura as condições para uma forma de comunicação (associação livre-atenção flutuante) aberta ao desdobramento dos sentidos. As inibições e os sintomas são sinal de um estreitamento, um lugar marcado pelo trauma, um estancamento da circulação das ideias, uma impossibilidade de brincar. O resgate de uma condição criativa torna-se possível a partir da experiência da Ilusão e da confiabilidade. Quem sabe uma das funções do analista não seja a de ajudar o paciente a liberar seu potencial de escolha para encontrar os objetos de que necessita para se expressar.

 

O não localizável

Um diálogo entre Griffin e Sabine faz alusão a diferentes planos de apreensão do mundo:

Griffin
É fácil para você considerar objetivamente essa ligação telepática entre nós. Você teve anos para se acostumar com ela. E sua sociedade ensina a paciência e a aceitação. A minha ensina a pesquisa lógica e obsessiva. Estou agindo como fui programado.

Sabine
Você provavelmente nunca ouviu falar de nossas ilhas &– elas são partículas de poeira num atlaspadrão...

Mapeando áreas geograficamente distintas e distantes, são representadas duas formas de funcionamento psíquico: a racional e a intuitiva. Se Londres é um lugar que podemos reconhecer no mapa, as ilhas aparecem como “partículas de poeira não localizáveis”. O modo feminino &– Sabine &– aceita a ausência de lógica, em oposição ao modo masculino e lógico, de Griffin. É esse modo feminino de apreensão que se aproxima do mistério, que convive com o vago, o inarticulado, “as partículas de poeira”. Uma condição interna que permite a oscilação entre essas duas formas de funcionamento psíquico é o que promove o pensamento criativo e evita a esterilidade psíquica.

 

Entre o ocultar e o revelar

Dizem os surrealistas que todo homem pode se tornar um poeta: é apenas uma questão de saber se abandonar à escrita automática.

Mircea Eliade (1952/1994) descreve o inconsciente como mais poético que a vida consciente. Apresenta-o como a morada dos deuses e dos heróis míticos e não apenas como um lugar assombrado por terrores. Refere-se ao inconsciente rico em conteúdos não reprimidos, que jamais foram conscientes, onde habitam as mais secretas modalidades do Ser. Os símbolos seriam sua via de expressão.

Masud Khan (1972/1977) nos lembra que todo sonho carrega em si uma demanda por privacidade e não por comunicação. Essa concepção é importante para que a ideia de sonho se amplie muito além do “texto”, muitas vezes entendido como algo a ser decodificado ou apenas como a expressão de um compromisso entre o desejo reprimido e mecanismos de defesa do Ego.

Khan diferencia os processos oníricos daquilo que ele denomina “espaço do sonho”. Ele considera o processo onírico como um “dom biológico” do psiquismo humano, “enquanto o espaço- sonho é uma aquisição do processo de desenvolvimento da pessoa, facilitado pelo cuidado recebido quando esta era ainda bebê e pelo holding ambiental” (Khan, 1972/1977, p. 379).

A experiência do sonhar só se dá no espaço onírico e é essa experiência que nos possibilita sentir o sonho como pertencente ao nosso Ser, como expressão de um estado de Self, ou mesmo uma tentativa de simbolizar. É uma face do espelho que reflete aspectos do self.

O sonhar pode ser vivido como algo estranho ao indivíduo que busca “entender”, mas, com a conquista do “espaço do sonho” e o reconhecimento dos aspectos não integrados de si mesmo, abre-se um caminho para a integração.

Marion Milner (1956/1987), na busca de apreender algo mais sobre a natureza dos sonhos, procura dialogar com outras áreas do conhecimento. Um dos seus interlocutores é Ehrenzweig, que, após estudar longamente tanto a arte como os escritos de Freud, chegou à conclusão de que a estrutura inarticulada do que ele denominou “mente profunda” é totalmente impossível de ser alcançada pela mente “de superfície”, não em função de conteúdos reprimidos, mas por sua própria estrutura, que é capaz de executar tarefas de integração que estão muito além da mente superficial consciente. Milner enfatiza essas duas formas de pensamento que coexistem. Os processos criativos relacionam-se à capacidade de transitar entre os dois modos de funcionamento psíquico. “Não há progresso sem contrários” (William Blake, The marriage of heaven and hell, 1790).

O inarticulado pode aparecer para a consciência como “falha” ou “vazio”, mas o vazio pode ser a possibilidade de ir ao encontro de “O” (símbolo que Bion usou para referir-se à realidade última), do processo de vir a ser, ou ainda, nas palavras dessa autora, um “vazio grávido” de sentidos.

O relato do sonho, articulado pelos processos secundários, distancia-se da experiência do sonhar, assim como, no nosso processo de amadurecimento, formas de expressão se perdem com a aquisição da linguagem verbal. Ao sonhar recupera-se algo que Blake chamou do “gênio poético de cada homem”.

Para Winnicott (1963/1983), o desejo de comunicação é inseparável do desejo de não comunicação. Na medida em que escolhemos como objeto evocativo “uma correspondência extraordinária“ entre dois desconhecidos íntimos, esse paradoxo winnicottiano torna-se central.

Diz Winnicott: O self é por definição evasivo e brinca de esconde-esconde. O ser se constitui no paradoxo: é uma alegria estar escondido, mas um desastre não ser encontrado.

O respeito ao paradoxo e ao mistério faz parte da ética e do “cuidado” analítico. Ignorar o indizível, o enigmático e o inapreensível seria “coisificar” o ser humano e adoecê-lo.

Gilberto Safra (2004) refere-se a algumas patologias relacionadas a esse sofisticado paradoxo winnicottiano: a hiper-realidade na qual a compreensão da vida e do humano é feita através de “falsas realidades e simulacros”, levando a um desenraizamento e às agonias do “totalmente pensado”, o que faz pensar em um meio que não proporciona espaços vazios, permeáveis à troca, à produção e à transformação dos significados.

Por outro lado, a queda no “totalmente indizível” joga o indivíduo no escuro, nas agonias impensáveis.

Necessitamos do encontro tanto quanto de uma volta à solidão. Necessitamos da palavra para dizer e também do respeito ao segredo que nos é próprio. Pensamos que a linguagem que usamos é um elemento determinante para a efetividade da comunicação.

Bion apontou para o que chamou de linguagem “saturada”, o que entendemos como um tipo de linguagem carregada de preconceitos, uma linguagem que não respira, não transcende, não aponta para o “O”.

Em Griffin & Sabine, Nick Bantock utiliza planos diferentes de linguagem. No plano verbal, podemos ler o que está escrito nas cartas e nos cartões. Já no plano das imagens, elas não surgem como ilustrações do que é relatado, no sentido de uma tradução literal. As imagens constituem-se em uma narrativa paralela, evocativa, de um mundo cuja natureza é inapreensível. Acrescenta-se ainda o plano interativo que pede o gesto pessoal do leitor, que vai virar as páginas, abrir envelopes, desdobrar e dobrar cartas.

Na sala de análise também temos vários planos: um diálogo verbal, uma coreografia de gestos, movimentos, sons, cores, odores &– uma complexa rede de estímulos sensoriais evocando múltiplas emoções, atingindo diferentes níveis de experiência.

O processo analítico promove uma expansão das capacidades inconscientes com o acesso à linguagem do sonho e a interação em níveis mais profundos que ocorre entre analista e analisando. Durante o processo ocorre uma valorização e um uso maior da inteligência intuitiva, baseada na apreensão e na comunicação de aspectos do self. Bollas (2009) aponta para o fato de que os modos pelos quais a Psicanálise desenvolve a mente, e como se torna uma nova forma de criatividade do viver e seus efeitos na vida posterior do paciente, ainda estão para ser propriamente reconhecidos e entendidos.

 

Ainda o mistério...

Diante da possibilidade de um encontro “real”, Griffin recua:

... Esta história ficou intensa demais, Sabine, você não existe. Eu inventei você. Você, os postais, os selos, as ilhas, você é fruto da minha imaginação ... antes que isso acabe comigo, vou parar. Adeus.

Um último cartão de Sabine diz:

Griffin, seu tolo. Você não pode me transformar num fantasma porque está com medo. Não se dispensa uma musa por capricho. Se você não vier me encontrar, então irei até você.

E o sonho termina:

Estes postais e cartas foram encontrados pregados no teto do estúdio vazio de Griffin Moss. Griffin Moss está desaparecido.

 

“Não se dispensa uma musa por capricho”

O encontro é potencialmente tão poderoso que assusta, na medida em que veicula a possibilidade da mudança. Depois do encontro não se é mais o mesmo. Este texto também é fruto do encontro entre duas psicanalistas, entre nós e a Psicanálise, entre nós e a literatura aqui representada pelo “livro-sonho”. São encontros que promovem experiência estética. Abre-se um diálogo de infinitos caminhos, interagindo múltiplos planos do sonhar.

Em crônica na Folha de São Paulo (13 de agosto de 2009), Contardo Calligaris lembra Oscar Wilde dizendo que antes de William Turner (pintor romântico inglês) o crepúsculo não existia, e comenta: “É um paradoxo, mas nem tanto. É desde Turner que a gente começou a espreitar o pôr do sol como se fosse uma espécie de obra de arte da natureza”. É admirável poder pensar que a expressão do olhar do artista, ou, em outras palavras, uma interpretação que seja produto de uma subjetividade plena, pode movimentar novas formas de apreensão do si mesmo, da vida e do mundo.

 

Referências

Bantock, N. (1994). Griffin & Sabine: uma correspondência extraordinária. São Paulo: Marco Zero.        [ Links ]

Bollas, C. (2009). The evocative object world. New York: Routledge.        [ Links ]

Eliade, M. (1994). Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1952).        [ Links ]

Khan, M. Masud R. (1977). Uso e abuso do sonho na experiência psíquica. In M. Masud R. Khan, Psicanálise: teoria, técnica e casos clínicos (pp. 369-379). Rio de Janeiro: Francisco Alves. (Trabalho original publicado em 1972).        [ Links ]

Langer, S. (1989). Formas discursivas e apresentativas. In S. Langer, Filosofia em nova chave (pp. 87-109). São Paulo: Perspectiva.        [ Links ]

Milner, M. (1987). Psicanálise e arte. In M. Milner, A loucura suprimida do homem são (pp. 193-215). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1956).        [ Links ]

Safra, G. (2004). A po-ética na clínica contemporânea. São Paulo: Ideias e Letras.        [ Links ]

Winnicott, D. W. (1978). Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In D. W. Winnicott, Da pediatria à psicanálise (pp. 389-408). Rio de Janeiro: Francisco Alves. (Trabalho original publicado em 1951).        [ Links ]

Winnicott, D. W. (1983). Comunicação e falta de comunicação levando ao estudo de certos opostos. In D. W. Winnicott, O ambiente e os processos de maturação (pp. 163-174). Porto Alegre: Artmed. (Trabalho original publicado em 1963).        [ Links ]

Wright, Kenneth (2009). Mirroring and attunement: Selfrealization in psychoanalysis and art. New York: Routledge.        [ Links ]

 

 

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Recebido: 30/09/2009
Aceito: 20/10/2009

 

 

* Psicanalista, membro associado da SBPSP.
** Psicanalista, membro efetivo da SBPSP.
1 Agradecemos ao autor a autorização da publicação das imagens.
2 A questão da contingência é pouco abordada pela Psicanálise, que privilegia o determinismo psíquico. No entanto, a inclusão do acaso acrescenta um elemento importante que preserva o“desconhecido” sempre presente.
3 Álbum Proust. Iconografia reunida e comentada por Pierre Clarac e André Ferré. Clarac, P. (ed.) (1965). Álbum Proust: iconographie réunie et comentée. Paris: Gallimard.