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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.32 n.49 São Paulo dez. 2009

 

EM PAUTA - O SONHO E A PELE

 

Sons para sonhar: sonhos para ouvir - as radionovelas e a mágica da palavra falada no rádio1

 

Sounds to dream: dreams to hear - the soap operas and magic of the spoken word on the radio

 

 

Thays Renata Poletto*, I, II ; Márcio Fernandes**, III

I Faculdades Integradas do Brasil (UniBrasil). Curso de Comunicação
II Universidade Federal do Paraná (UFPR). Núcleo de Pesquisa em Educação e Saúde (Nupecs)
III Universidade Estadual do Centro- Oeste (Unicentro), Paraná. Curso de Comunicação Social

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Cego de nascimento, o rádio estimula a criação de representações mentais com a sensação da simultaneidade temporal, do que vivemos, sentimos e sonhamos agora, no momento presente. Sons radiofonizados carregam o sentido da presença e nos dão a impressão de que estamos acompanhados; eles sugerem imagens que, no rádio, não se limitam ao tamanho da tela. Este artigo discute essas características das transmissões radiofônicas a partir do momento da audição de radionovelas, as soap-operas, voltando-se especialmente para a que mais fez sucesso em toda a América Latina: O direito de nascer, do cubano Félix Caignet. Combinando voz, música, efeitos sonoros e silêncio (elementos que compõem as mensagens sonoras), as radionovelas foram um fenômeno de época, mas também emissões com a adaptação de A guerra dos mundos, por Orson Welles, episódios importantes que mostram a força da palavra falada, no caso, mediatizada pelo rádio. O texto também trata da audição das transmissões atuais, da identificação de ouvintes e personagens, da mágica presença da voz separada do corpo no ritual radiofônico e da possibilidade de vivenciar outros papéis e situações, além dos habituais, o que aproxima as emissões radiofônicas do onírico.

Palavras-chave: Rádio, Radionovelas, Escuta, Sonho.


ABSTRACT

Blind from birth, the radio encourages the creation of mental representations with the feeling of being in the same time of what we live, feel and dream now. Radio sounds carry the sense of presence and give us the impression that we are together, they suggest that pictures, radio, are not limited to the size of the screen. This article discusses radio transmissions characteristics from the time of the radio dramas, the soap operas, seeing especially the one that was a hit throughout Latin America: The right to be born, by Cuban Félix Caignet. Combining voice, music, sound effects and silence (the messages component sound), the soap operas were a phenomenon at the time. Also will be seen issues with the adaptation of The war of the worlds by Orson Welles, there were important episodes that show the strength of spoken word, in this case mediated by the radio. The text also deals with the hearing of the current broadcasts, identifying audience and characters, the magical presence of the voice separate from the body and the opportunity to experience other roles and situations, in addition to habituals, which brings the dream of radio emissions.

Keywords: Radio, Soap opera, Listen, Dream.


 

 

Quando Troia caiu, em 1250 a.C., Agamemnon resolveu contar o fato à sua mulher, Clitemnestra, fazendo fogueiras no alto de montes vizinhos. Este é o registro mais antigo do uso da comunicação sem fio, à distância. Romper e encurtar distâncias, aproximar-se, comunicar-se e se fazer entender são desejos e sonhos que o homem acalenta desde seus tempos mais primitivos. E para isso tem trabalhado muito, com uma intensidade absurda nos últimos 150 anos, desde o aparecimento dos desenhos, da escrita, do livro e da imprensa, da telegrafia e da telefonia, do rádio e da televisão, até a transmissão a cabo e por satélite, e, agora, pela internet. A maior parte desse desenvolvimento dos meios de comunicação se deu no último século, mas as inovações não param de nos surpreender e encantar. Há períodos em que esse encantamento parece ganhar a sociedade e torna-se um fenômeno de época. Se abrimos a boca ao saber que hoje o Twitter serve para enviar até sentenças judiciais, imagine o que era para os primeiros ouvintes de rádio ter a voz do outro separada do corpo, mas, ao mesmo tempo, presente ali na sala. Caixa mágica? Tempo e espaço: noções que começaram a ganhar novas dimensões e a estimular todos os sentidos apenas com a audição de um aparelho de rádio.

Talvez não tenham existido emissões que mais estimulassem os sentidos que as radionovelas, os seriados e os radiodramas. Música, efeitos sonoros, vozes com alto desempenho teatral e silêncios muito bem pontuados: da escuta coletiva na sala de visitas iam todos os radiouvintes (esse era o termo) para o local onde dois jovens que se encontravam ao amanhecer, se o som era o de passarinhos ou do galo, ao anoitecer, se o som era o de grilos ou de uma coruja, em um momento romântico ou de fuga, se assim o fundo musical sugeria, dentro ou fora de casa, em uma floresta, em um parque de diversões. Hoje, amanhã ou no próximo século &– mas, ao mesmo tempo, agora. Tudo pode ser “visto” apesar de apenas ouvido: e aí está a mágica do rádio, pois a linguagem2 radiofônica oferece muitos recursos: a voz humana, a música, os efeitos sonoros e o silêncio. A voz, no rádio, busca o nível consciente, enquanto outros elementos (música, efeitos sonoros e silêncio) se voltam para o inconsciente. Juntos, esses quatro elementos compõem a linguagem radiofônica, que está muito longe de ser apenas verbal, mais ainda quando se trata de peça dramatizada.

A voz é fundamental no rádio porque a palavra ocupa o lugar primordial na transmissão de mensagens: é a partir dela que passam a existir os mocinhos, os bandidos, os advogados, as cozinheiras, as crianças, as moças chorosas, as velhas rezando na igreja. Nas peças dramáticas, a inflexão, o tom, a modulação e o timbre dão a credibilidade adequada a cada personagem e a cada situação. Ganham a confiança do ouvinte, abrem caminho para que floresça em seu coração os sentimentos de atração e de repulsa em cada cena.

No caso da música, a função está na ambientação. Tornou-se comum usar música clássica como som de fundo, dando o clima desejado a uma cena: o “Estudo n.º 17” e o “Prelúdio n. 15” de Chopin, por exemplo, para ambientar a dor; para a alegria, o “Concerto n. 3 para Piano” de Beethoven; para o sonho, ou mesmo para ocasiões que inspiravam renúncia, Handel; para o lamento pela separação de amantes, piano e violino em “Tristesse”, de Chopin. A música, em trechos muito curtos, podia dividir as cenas nas radionovelas, marcar a entrada de um personagem (normalmente com redução do volume no início e na saída da música), ou servir de motivo para mudança de assunto.

Os ruídos ou efeitos sonoros criavam as paisagens sonoras em que as histórias aconteciam, eles atuavam como índices das imagens que se desejava criar para cada “cenário”. Os efeitos podiam representar animais, sons e fenômenos da natureza, ações (como abrir uma porta ou disparar uma arma) e dependiam do contexto da narrativa para que fossem compreendidos corretamente pelo ouvinte.

O silêncio completava a mensagem sonora por ser uma pausa significativa: era a emoção ao receber o anel de noivado, o susto ao saber que a filha solteira estava grávida, o suspense antes da revelação do assassino, o intervalo entre uma gota e outra da chuva mansa, o espaçamento militar dos passos de uma tropa. Mesmo sendo não sonoro, o silêncio adquiria valor importante na emissão e na compreensão das narrativas radiofônicas.

Na emissão de radionovelas, o teletransporte de cada ouvinte já estava roteirizado com voz, música, efeitos e silêncio desde a emissora de rádio, mas ninguém parecia se importar em ter suas sentimentalidades programadas, uma a uma, em ordem já prevista: o prazer de ir ouvindo e descobrindo na audição cada nova situação não deixava ninguém desligar os aparelhos até que o capítulo terminasse. Ou que a bateria falhasse.

Nos anos 1940 e 1950, no Brasil e no mundo, o rádio ganha a sociedade: há emissoras e aparelhos receptores suficientes para criar uma audiência, o mercado que possibilitou toda uma indústria eletrônica e fez nascer um excelente canal para as agências de publicidade e seus clientes. A publicidade é determinante no aparecimento e na manutenção das radionovelas3, que de tanto terem empresas da área de higiene como patrocinadoras ganharam nos Estados Unidos o nome de soap opera, literalmente “óperas de sabão”. Também na América Latina elas eram as principais financiadoras dos dramas no rádio.

Desde os anos 1930, os locutores brasileiros já contavam e dramatizavam histórias no ar. A maioria delas era ao vivo e somente com o passar do tempo foram sendo incluídos os efeitos sonoros nessas locuções &– usar músicas de fundo era o mais comum. Nesse tempo, as rádios Nacional, Mayrink Veiga e Record já tinham horários especiais para os programas de radioteatro. As radionovelas foram sendo produzidas a partir do sucesso desses programas e da publicidade que permitia pagar radioatores, músicos, produtores, roteiristas, sonoplastas, diretores e todos os profissionais necessários para levar as histórias de amor ao ar. O sucesso dos programas parece estar na conjunção de temas e imagens do inconsciente coletivo na representação simbólica de histórias verossímeis e da riqueza da linguagem radiofônica, que através da audição estimula(va) todos os outros sentidos.

As radionovelas eram programas feitos para emocionar: sonhos para ouvir, sonhos para viver. Cada palavra dita, cada som ou música emitidos tinham um só objetivo: dar aos radiouvintes o prazer da imaginação &– e, com isso, garantir a audiência e as verbas publicitárias, claro. As emissoras eram verdadeiras fábricas de ilusões, tendo mais de dez radionovelas no ar e mesmo orquestras inteiras: eram um fenômeno de audiência no mundo ocidental, de América a América. Em todas as emissoras, os radioatores iam de estúdio em estúdio: em um se casavam, no outro, se divorciavam; em todos eles, viviam amores açucarados e tremendos desenganos. Se pediam aumento ao diretor, morriam no próximo capítulo &– para ressuscitar no outro, se regressassem, pedindo trabalho (López Vigil, 2000, p. 139).

O público visado para esses programas era o feminino. Isso não ficava apenas nas entrelinhas, mas era dito claramente pelos locutores na abertura das novelas:

Senhoras e senhoritas, a Rádio Nacional, do Rio de Janeiro, apresenta Em busca da felicidade, emocionante novela de Leandro Blanco (BBC, 1988/2001).

Senhoras e senhoritas, o famoso creme dental Colgate, criador dos mais belos sorrisos, e Palmolive, o sabonete embelezador da mais alta qualidade que existe, apresentam: Radioteatro Colgate Palmolive, com mais um capítulo da emocionante novela de Félix Caignet, tradução de Eurico Silva, O direito de nascer (BBC, 1988/2001).

Em busca da felicidade foi a primeira radionovela transmitida no Brasil a alcançar sucesso. Seu primeiro capítulo foi ao ar em 1o de junho de 1941, às 9h30. Com dois anos de duração, a trama, romântica, chorosa ao estilo mexicano que as novas gerações conhecem mais pelas telenovelas, Em busca da felicidade foi escrita pelo cubano Leandro Blanco, com adaptação e tradução de Gilberto Martins (Ferraretto, 2001, p. 119). A história era marcada pela infelicidade de seus personagens, que sempre estavam a ver a felicidade escapar-lhes entre os dedos.

No Brasil e na América Latina, o maior sucesso foi o da radionovela O direito de nascer4, do cubano Félix Benjamín Caignet. As lágrimas cubanas foram consideradas excessivas para o público brasileiro e a novela foi traduzida e adaptada para o gosto nacional por Eurico Silva. A história de uma mãe solteira e seu o filho totalizou 260 capítulos, de 8 de janeiro de 1951 a 17 de setembro de 1952. Sua transmissão mudou a rotina dos ouvintes que precisavam estar ao lado dos aparelhos (que ainda não eram portáteis) para acompanhar o desenrolar da trama. Essa alteração na rotina da sociedade refletia-se em outras atividades:

Quando da apresentação dos capítulos de O direito de nascer, a Rádio Nacional, do Rio de Janeiro, era absoluta em termos de audiência e, naquele horário, os cinemas, os teatros e outros meios de entretenimento ficavam vazios, as ruas como por encanto silenciavam e ninguém perambulava por elas... Era um horário religioso, uma imensa reunião emudecida e atenta que comungava, junto aos receptores, todas aquelas emoções vividas por Albertinho Limonta e os demais personagens inventados por Félix Caignet. (Tavares, 1997, p. 203)

Albertinho era o protagonista da história, filho de Maria Helena de Juncal e Alfredo Martins, que decidiu não se casar quando a moça contou sobre a gravidez. Os personagens viviam em uma sociedade moralista e a pressão sobre ela tornouse imensa quando se viu sozinha, grávida, obrigada a revelar sua condição ao seu poderoso pai, Dom Rafael, que não concordava desde o início com o romance. Mesmo assim, Maria Helena dá ao filho o direito de nascer &– daí o nome da novela.

Maria Helena carregava em sua voz e em seus diálogos toda a culpa por ter mantido relações sexuais antes do casamento: ela se sentia enganada, mas se via como uma pecadora por ser uma mãe solteira. Chorava Maria Helena lá no estúdio e choravam todas as moças que ouviam a história em casa. Pode-se imaginar quantas delas se identificavam com Maria Helena e quantos filhos se viam na pele de Albertinho? Sofrer na pele do outro não parece ser a melhor opção racional, mas talvez seja uma das melhores formas de experimentar vivências, resolver conflitos internos, dialogar sobre certos assuntos consigo mesmo e participar de histórias de dor sem se comprometer com elas &– tendo horário certo para começar e terminar, é possível certo controle sobre o sofrimento, a ansiedade. Há um fenômeno de aproximação entre atores e ouvintes se levarmos em consideração que a ficção nessa radionovela retratava bem a realidade vivida por tantos radiouvintes. Embora nada rara, a gravidez antes do casamento era um problema moral grave, um pesadelo para muitas moças e suas famílias. Mas também a questão da culpa, do arrependimento, da expiação e até da punição por qualquer erro cometido na vida pode gerar identificação entre os discursos de O direito de nascer e o cotidiano de cada mortal ouvinte. É especialmente oportuno pensar em nossa formação judaico-cristã e também na situação sociopolítica vivida durante os anos 1930 e 1940 no Brasil.

Dom Rafael, o avô, passa a odiar a filha e amaldiçoa a criança. Não são poucas as falas em que se percebe o sentimento negativo desse avô. Marcadamente forte ou ainda como reclamação em tom menos grave, a voz de Dom Rafael assusta todos, mantém seu poder, sua irritação sobre a situação, e deixa Maria Helena encarcerada em sua tristeza, em uma posição de inferioridade assinalada por músicas que ambientavam, davam o clima sobre as relações com o pai e com sua própria condição.

As vozes dos personagens criavam suas imagens, o que Cooper chama de “imagem vocal”, ou seja, para ele, a fala dá ao ouvinte uma imagem da pessoa que fala. “Não há como ficar impassível diante do som da voz de uma pessoa. Você a ouve e ela influencia seu julgamento. Algo nela tanto atrai como repele você” (Cooper, 1991, p. 61). Assim, associado a este signo ícone, está uma imagem que cria o vínculo com a voz.

A voz humana é, com efeito, o lugar privilegiado (eidético) da diferença: um lugar que escapa a toda ciência, pois não há nenhuma ciência que esgote a voz: classifiquem, comentem historicamente, sociologicamente, esteticamente, tecnicamente a música, haverá sempre um resto, um suplemento, um lapsus, um não dito que se designa ele próprio: a voz. Este objeto, sempre “diferente”, é colocado pela psicanálise na prateleira dos objetos do desejo enquanto faltam, a saber, objetos: não há nenhuma voz humana no mundo que não seja objeto de desejo &– ou de repulsa: não há voz neutra &– e se por vezes esse neutro, esse branco da voz acontece, é para nós um mundo petrificado, onde o desejo estaria morto. Toda a relação com uma voz é forçosamente amorosa... (Barthes, 1982, p. 226)

Todos os radiouvintes da radionovela O direito de nascer percebiam a situação e se perguntavam se apenas a decisão de Maria Helena de manter a gravidez era suficiente para garantir o direito de nascer para o bebê que ela esperava. Ah, quanta ansiedade! Ninguém protegeria Maria Helena e seu filho do ódio de Dom Rafael? Essa pergunta ficou no ar por muitos capítulos. Maria Helena manteve a gravidez “longe da sociedade”, em uma das fazendas do pai, apenas acompanhada da criada Dolores, até que a criança nasceu.

A resposta às dúvidas dos ouvintes veio da empregada Dolores, que como todos os radiouvintes também sofria com o drama de Maria Helena. Em seu papel de quase espectadora, Dolores resolveu fugir com a criança, dando a ela o nome de Alberto, depois apelidado de Albertinho. Ela sabia que o avô mandara matar a criança.

Mamãe Dolores exala bondade em cada fala, encarnando em seus diálogos e na sua voz os sentimentos positivos de proteção, segurança e amor. Quando ela decide roubar o bebê, uma questão visual se impõe: Dolores é negra; Maria Helena e Alfredo são brancos. Nessa sociedade moralista que não aceita uma jovem solteira grávida, haveria espaço para uma mulher negra e pobre com um nenenzinho branco?

Depois de um período de depressão e de um novo namorado, Jorge Luiz, que também a abandona, Maria Helena torna-se uma irmã de caridade, com o nome de Sóror Helena. Mamãe Dolores passa todo o período de crescimento de Albertinho tentando esconder-se da família do menino. Mas ele acaba conhecendo Jorge Luiz e ganha dele apoio para estudar medicina. Formado, Limonta apaixona-se pela prima Isabel Cristina5 e acaba salvando a vida do avô, retornando, assim, ao convívio de sua família original. O curioso é que Albertinho salva Dom Rafael fazendo uma doação de sangue, depois de ter ouvido um apelo no rádio... Mamãe Dolores é a peça essencial para que o protagonista conheça suas origens e para aquele que precisa pedir perdão possa fazê-lo. É um momento de redenção &– em capítulos, claro.

Além de O direito de nascer muitas outras radionovelas fizeram sucesso, mas nenhuma chegou ao mesmo patamar desta. As fórmulas para garantir a audiência estavam baseadas em gerar conflito através de três verbos: querer, poder e dever (a maçã da discórdia vinha em situações como quando se quer, não se pode; quando se pode, não se quer; quando se deve, não se pode; quando se quer, não se deve... e assim por diante). López Vigil, que revela os mecanismos acima para as radionovelas (2000, 143), diz que o fenômeno do interesse por elas é o mesmo que o interesse pelas telenovelas:

O que ocorria nos anos 1950 ainda está acontecendo hoje, apenas as andorinhas estão em outro ninho: as telenovelas despertam o interesse das multidões tanto em Tóquio e Madri como em Moscou. Por que o dramático é tão cativante? É que os seres humanos são assim, madeixas de emoções. Sejamos honestos: com o que nós ocupamos nossas mentes na maior parte do tempo? Pensando em nossos corações. O aluno está na sala de aula, pensando em sua namorada. A dona de casa está cozinhando, pensando em seus filhos. E seu marido, pensando em outra panela. Utilizamos nosso tempo livre &– e muito que não é &– na revisão de nossas conjecturas sobre amores reais e possíveis. Nós sonhamos mais quando estamos acordados do que quando estamos dormindo6. (López Vigil, 2000, p. 140)

Percebe-se que o gênero dramático que nos encanta pode colocar o passado e o futuro juntos, no presente. No rádio, um episódio famoso que mostra essa força de representação do veículo é a transmissão de A guerra dos mundos, por Orson Welles, pela Rádio Columbia, nos Estados Unidos. Welles adaptou a história de um livro de ficção científica com o mesmo nome, escrito por Herbert George Wells. Transmitida no Dia das Bruxas de 1938, a adaptação provocou pânico na população: um bando de marcianos havia invadido a Terra, começando por Nova Jersey. A programação habitual da Columbia passou a ser interrompida por entrevistas, testemunhos, ruídos, falhas e muitas outras suspensões para que os ouvintes fossem informados sobre chuvas de meteoros, mortes de pessoas e outros danos causados pelos invasores extraterrestres. A população entrou em pânico e foram registrados suicídios por conta do desespero causado7. A farsa só foi revelada depois que Nova York também foi tomada e um gás marciano mortal matou até o locutor, que ressuscitou rapidamente para informar sobre a adaptação fictícia.

Neste exemplo, percebe-se a força da palavra falada, aqui transmitida por um veículo de comunicação, e também a força das histórias contadas. É um gênero que nos parece muito familiar porque imita nossa vida cotidiana, recria situações que vivemos ou poderíamos viver.

Seja com as máscaras africanas ou quando as crianças calçam os sapatos dos pais, o homem se descobre como um animal de imitação. Nós repetimos o que vemos: nos reinventamos, nos duplicamos, nos disfarçamos. A todos nós encanta atuar e ver atuações. O gênero dramático nos atrai como um espelho, tanto atores quanto espectadores, porque na vida alheia, na vida dos outros, reflete-se a nossa. Quem não se derreteu diante de um Albertinho Limonta? Quem não precisa chorar suas dores no ombro da mamãe Dolores? (López Vigil, 2000, p. 140)

É bem verdade que a narrativa de uma radionovela difere em muito do sonho. Mas se no primeiro caso há um planejamento externo, estamos acordados, conscientes, a audição da radionovela também se aproxima do onírico porque nos permite estar onde não estamos, ser quem não somos, com toda a liberdade do sonho. Há uma abertura ao delírio e também ao debate, já que a escuta das radionovelas era programa social, familiar.

No ritual radiofônico prevalece o diálogo, mas não há troca de papéis. A fórmula de comunicação no rádio segue um esquema unidirecional, vertical e hierárquico: emissor-meiomensagem. O diálogo radiofônico também é uma relação, mas aqui difere do diálogo não mediatizado entre duas pessoas, em que o emissor pode trocar de lugar com o destinatário; no rádio, o emissor produz significações e o destinatário interpreta e constrói sentidos. Ouvintes conscientes, sabemos que não haverá troca, mas mesmo assim trocamos. Estamos lá, no lugar da notícia, como estavam nossos avós nos lugares onde se davam as cenas das radionovelas; e vivendo os mesmos dramas, aproximando-se de todas as narrações. Há um condicionamento temporal na mensagem radiofônica: “Esta, ao ser realizada pelo ouvido, somente pode ser feita no presente, determinando assim a permanência da mensagem” (Prado, 1989, p. 19). Este condicionamento também contribui para a sugestão, que dá o sentido da participação. A capacidade de sugestão baseia-se na impossibilidade de ver e na obrigatoriedade de imaginar o que é dito. Assim, o texto radiofônico inaugura uma espécie de esquizofrenia, em que o ouvinte pode se sentir participante de tudo o que acontece: hoje, agora, neste instante.

Os ouvidos, diferentemente dos olhos, não têm pálpebras. E não só os ouvidos tomam parte na audição: todo o nosso corpo é uma caixa de ressonância e a vibração do som torna “tátil” o que vai em ondas. O som nos invade pela pele, pelos ossos. Chnaiderman (1989, p. 99) crê no “espaço sonoro como primeiro espaço psíquico”, já que para o bebê, ainda dentro da barriga de sua mãe, há um mundo sonoro possível. O prazer de ouvir talvez esteja ligado a essa nossa “gestação sonora”.

Escutamos até quando não estamos ouvindo... Escutamos até durante o sono! (De que forma detectaríamos a presença de um ladrão na casa?) O som é um intruso e a memória sonora é impressionante. Os neurologistas afirmam que o que entra pelos nossos ouvidos permanece em nossa mente por quase cinco segundos antes de desaparecer. Por outro lado, o que entra pelos olhos desaparece em menos de um segundo. (Williams, 2000, pp. 92-93)

Sobre isso, Nunes (1993, p. 25) afirma: “Entranhas abertas, somos prisioneiros, pois a emissão sonora liga-se à demanda de amor. As demandas são sempre tentativas de completude, da ordem do imaginário”. E da ordem do imaginário é o que a linguagem radiofônica provoca no ouvinte. Silva (1999, p. 42) afirma que:

diferentemente das sociedades arcaicas, cuja situação comunicativa se caracteriza pela ausência da escrita e, portanto, conta com a presença física do emissor, o rádio no seu processo comunicativo frequentemente reproduz uma voz sem corpo, ou seja, uma voz que, com o advento das tecnologias de transmissão e estocagem de sons, separa-se da fonte que a produziu.

Hoje, não temos mais radionovelas, mas os ouvintes continuam dispostos a criar imagens mentais e a realizar a troca de papéis porque a voz sem corpo, vinda de longe, continua nos levando a criar “as imagens mentais”. “O rádio &– escreveu McLuhan &– é um meio eminentemente visual. Isto é possível porque nós humanos não temos dois olhos. Temos três. O ouvido também vê” (López Vigil, 2000, p. 40). Assim, “as imagens [criadas pelo rádio] são emocionais, como a voz de uma mãe suplicando informações sobre sua filha adolescente desaparecida. São imagens que, no rádio, não se limitam ao tamanho da tela. Elas têm o tamanho que você quiser” (Chantler & Harris, 1998, p. 21). A visão dada pelos ouvidos cria as imagens mentais, fruto de um processo complexo que reúne lembranças fragmentadas de visões, sons, texturas, cores, cheiros, gostos... A palavra se materializa com a voz: “A voz torna sensível o sentido da palavra, que é personalizada pela cor, ritmo, fraseado, emoção, atmosfera e gesto vocal” (Silva, 1999, p. 54). É bom lembrar que o pensamento não se dá por palavras nem figuras, mas imagens mentais, que estão, até certo ponto, “ancoradas” no que já vimos, ouvimos e sentimos.

Cego de nascimento, o rádio nos dá oportunidades muito particulares de criarmos nossas próprias imagens, nossos próprios cenários. É um meio que sensibiliza porque dá liberdade para que as mensagens sejam completadas individualmente. Seja qual for a estação, em qualquer situação em que ligarmos o rádio ganharemos com os sons radiofonizados o sentido da presença, a sensação da companhia &– e a redução daquele sentimento incômodo de solidão. É como se o locutor nos desse as notícias, ali, dentro do carro, e pudéssemos ver toda a situação da história que ele nos conta. É como se a banda tocasse naquela hora, ao vivo, só para o casal que em minutos se perde na letra da música... No rádio, o som é o tempo presente, traz a sensação da simultaneidade temporal, do que vivemos, sentimos e sonhamos naquele momento. No rádio, os sons são para sonhar. Mesmo de olhos abertos.

 

Referências

Barthes, R. (1982). O óbvio e o obtuso. Lisboa: Edições 70.        [ Links ]

BBC. (2001). O rádio no Brasil. London, British Broadcasting Corporation, 1988. 4o programa. In Ferraretto, L. A. Rádio: o veículo, a história e a técnica (2a ed., pp. 119, 200). Porto Alegre: Sagra Luzzatto.        [ Links ]

Chantler, P. & Harris, S. (1998). Radiojornalismo. São Paulo: Summus.        [ Links ]

Chnaiderman, M. (1989). Ensaios de psicanálise e semiótica. São Paulo: Escuta.        [ Links ]

Cooper, M. (1991). Vencendo com sua voz. São Paulo: Manole.        [ Links ]

Ferraretto, L. A. (2001). Rádio: o veículo, a história e a técnica (2a ed.). Porto Alegre: Sagra Luzzatto.        [ Links ]

Kazeniac, Andy. (2009). Top 25 social networks re-rank. Disponível em: http://blog.compete.com/2009/02/09/facebook-myspacetwitter-social-network. Acesso em: 1o mar. 2009.        [ Links ]

López Vigil, J. I. (2000). Manual urgente para radialistas apasionados. Quito Equador: Artes Gráficas Silva.        [ Links ]

Nunes, M. R. F. (1993). O mito no rádio: a voz e os signos de renovação periódica. São Paulo: Annablume.        [ Links ]

Poletto, T. R. (2003). O rádio em tempos de crise: o discurso radiofônico e as relações entre locutores e ouvintes. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens, Universidade Tuiuti do Paraná, Curitiba.        [ Links ]

Prado, E.. (1989). Estrutura da informação radiofônica (2a ed.). São Paulo: Summus.        [ Links ]

Schafer, M. (1991). O ouvido pensante (M. Fonterrada et al., trads.). São Paulo: UNESP.        [ Links ]

Silva, J. L. de O. A. (1999). Rádio: oralidade mediatizada. São Paulo: Annablume.        [ Links ]

Tavares, R. (1997). Histórias que o rádio não contou. São Paulo: Negócio.        [ Links ]

Williams, R. H. (2000). Fórmulas secretas do mago da publicidade. São Paulo: Futura.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Thays Renata Poletto
Rua Francisco Nunes, 187/101
80215-000 &– Curitiba &– PR
Tel.: 41 3334-3570 | 41 8893-6759
E-mail: tpoletto@gmail.com

Márcio Fernandes
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Recebido: 05/10/2009
Aceito: 20/10/2009

 

 

* Jornalista, mestre em Comunicação e Linguagens pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP), professora do Curso de Comunicação Social das Faculdades Integradas do Brasil (UniBrasil), e também pesquisadora convidada do Núcleo de Pesquisa em Educação e Saúde (Nupecs) da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
** Jornalista diplomado, com 14 anos de carreira dentro e fora do Brasil, professor do Curso de Comunicação Social na Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), Paraná.
1 Parte deste texto está baseada nos estudos sobre transmissão e recepção radiofônica e linguagem radiofônica da dissertação de mestrado O rádio em tempos de crise &– o discurso radiofônico e as relações entre locutores e ouvintes (Poletto, 2003).
2 Murray Schafer (1991, p. 239) usa a definição “linguagem é som como sentido” e aqui adotamos seu pensamento.
3 Este é o motivo principal apontado para o desaparecimento do gênero dramático no rádio a partir dos anos 1970, quando a publicidade já migrara para a televisão e para as emissões musicais de rádio (cuja produção é infinitamente mais barata que a das radionovelas).
4 A novela foi transmitida por outras emissoras de rádio e também foi adaptada para a televisão.
5 Albertinho Limonta era interpretado por Paulo Gracindo; Isabel Cristina, por Ísis de Oliveira.
6 As citações de López Vigil são traduções livres dos autores.
7 Orson Welles só não foi condenado nos processos que sofreu por causa dessa transmissão porque havia informado, no início, que faria a transmissão de uma adaptação de obra literária. No entanto, a maioria dos ouvintes não tinha conhecimento deste “prefácio”, pois no mesmo horário (às 20 horas) outra emissora é que tinha o programa mais ouvido.