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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.32 n.49 São Paulo dez. 2009

 

EM PAUTA - O SONHO E A PELE

 

Sonhação: o sonho sem pele

 

Dreamery: the skinless dream

 

 

Eliana Rache*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Associação Psicanalítica Argentina (APA)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora tem como questionamento a diferença entre pacientes que sonham e outros que não sabem que sonham. Freud, o trabalho do sonho, o psiquismo pelas lentes do século XIX servem de contraponto para iluminar os tempos de hoje, de indigência simbólica, de pacientes com escassas representações prontos a substituí-las por apresentações presentes nos atos do corpo e do comportamento. É a clínica da atualidade pautada em perdas da referências, perdas de elaborações, perdas de representações, perdas dos sonhos... Através de vinheta clínica a autora mostra um paciente no início de seu processo de simbolização.

Palavras-chave: Narcísico-identitária, Representação, Apresentação, Símbolo, Sonho.


ABSTRACT

The author tries to establish some differences between patients that dream and patients that do not know they dream. Freud, the work of dream, psychic work seen through the view of the XIX century is used as a counterpoint to show the patient typical of our times who lacks the capacity to symbolize. Instead, of representations, they use presentations which are detected through body-use either somatizations or behaviour. The author gives a sketch of posmodern society putting forward endless transformations which results into a different patient, a different clinic. Clinical material is used to illustrate the beginning of symbolization in a severely disturbed patient.

Keywords: Narcisistic-identities, Representation, Presentation, Symbol, Dream.


 

 

“A psicanálise vai ajudá-la.” Era um momento em que os conceitos de ideias psicanalíticas se inseriram em todas as camadas sociais. Os anos referidos acima são 1948-1949, o lugar, Buenos Aires, e a frase pertence a Grete Stern, artista que ofereceu imagem às palavras que descreviam os sonhos que, redigidos em forma de cartas, foram enviadas à revista pelas leitoras1.

O que restaria hoje do convite feito às leitoras da revista Idilio &– de comunicarem seus sonhos embelezados por fotos criadas por uma artista?

Se apenas saíamos do crepúsculo da guerra, esses anos de 1948-1949 prometiam um sonho de vida formatado em um rosto, em uma imagem. O homem podia e queria que seus sonhos se transformassem em novas imagens. Não só os sonhos como esperança, mas também os sonhos que se apoderam de nossa mente adormecida. Ainda restara um refúgio neste ser que ao se entregar às trevas da noite podia ser atraído pela psicanálise para desvendar seus enigmas.

E hoje?

Qual a ressonância de apelos sugestivos para um encontro com os próprios sonhos? As ofertas para a realização de tal empreitada são sedutoras e múltiplas. Desde sempre, o que era oculto fascinou o homem colocando-se como um chamariz a ser desvendado. Se lembrarmos, nos albores da humanidade, em tempos bíblicos, José com seus sonhos proféticos atingiu poder e fama, enquanto os bardos, tomados por seus sonhos, faziam-se intérpretes do destino de reis, reinos e deuses.

Freud alcança um projeto temerário: retira os sonhos de suas capas místicas, de seu envoltório suspeito, legado de leituras pagãs/ sagradas. Sem fazer o livro da análise dos sonhos, nem o livro do sonho, concebe uma obra que, pela mediação das leis do logos do sonho, leva à descoberta das leis que regem todo discurso do inconsciente e assim funda a psicanálise. A interpretação dos sonhos ganha o estatuto de via régia para atingir o inconsciente. Mas o interesse de Freud foi perceber, em seu estudo, as transformações, os mecanismos e leis do próprio sonho, transformando-o no modelo de funcionamento do aparelho psíquico.

Pelo viés de imagens artísticas confeccionadas (as fotos de Grete Stern) para singularizar a produção do sonhador, poderíamos ocasionar uma provocação instigante de volta à psicanálise?

Hoje, os tempos são outros: destruição de tradições, mudanças de valores, nadificação de nossas categorias morais...

Definem-se novas subjetividades em um horizonte cinzento, sendo o eu guindado a uma posição privilegiada no cume do autocentramento do sujeito.

No começo da modernidade, a subjetividade estava construída ao redor dos eixos constitutivos das noções de interioridade e reflexão sobre si mesmo: “penso, logo existo”.

Agora o que está em discussão é uma leitura de novas subjetivações em que o autocentramento se conjuga de maneira paradoxal com o valor da exterioridade: o olhar do outro no campo social passa a ocupar uma posição estratégica na economia psíquica do sujeito. O autocentramento aliado à inexistência da história e ao desaparecimento da alteridade como valor foi considerado por Lasch o traço fundamental da cultura do narcisismo, denominação dada por ele aos tempos atuais. Inicialmente o autocentramento se apresenta sob a forma de estetização da existência: o que importa para a individualidade é a exaltação gloriosa do próprio eu. O enaltecimento de si mesmo é uma tarefa interminável porque, pelo cuidado excessivo com o próprio eu, este se transforma em objeto permanente de admiração de si mesmo e dos outros. A cultura da imagem é o correlato essencial da estetização do eu, na medida em que a produção do brilho social se impõe para a constituição da imagem individual. Assim fica estabelecida a hegemonia da aparência, que define, com seu brilho evanescente, o critério fundamental do ser e da existência. Na cultura da estetização do eu, o sujeito vale pelo que parece ser, de acordo com as imagens produzidas para apresentar-se no cenário social.

Quando falo de subjetivações construídas de maneira paradoxal, refiro-me ao narcisista de nossos tempos, que se apresenta vazio de interioridade, repleto de exterioridade. Quero explicar isto melhor: apesar de representar o ápice do autocentramento, o máximo do individualismo, este narciso apenas exala quimeras fosfóricas, destinadas à captura e ao uso do outro. Por outro lado, como narciso continua no regime especular, o outro não é o outro; é nada mais que sua própria extensão, que poderá ser descartada a qualquer momento.

Nesse caldo de cultura, a homogeneidade das individualidades que assim o são, por não apresentarem nenhuma singularidade em seu ser, nem um estilo próprio de existência, são chamadas de individualidades como se. Reproduzem-se e se autoproduzem compondo a macrofigura de uma única individualidade totalitária. Por isso, essas individualidades caracterizam-se pela pobreza erótica e pela mediocridade simbólica.

Enformadas em um tempo no qual a história do tempo não conta, a velocidade, atributo implacável desse novo mundo, imprime uma vivência de tempo real às comunicações que acontecem e que invadem o sujeito: todas, de todos os lugares, ao mesmo tempo reduzindo o ciclo da vida ao tempo presente. Esta recepção feita de forma imediata leva a uma apresentação intempestiva dos acontecimentos por meio dos fugazes instrumentos da comunicação de massa, em detrimento da tessitura do discurso, arcabouço próprio da representação. Onde deveria nascer um símbolo, impõe-se um ato &– apresentado no corpo ou no comportamento com implicações decisivas na constituição desse tipo de subjetividade que marca a clínica atual. Surgem os chamados psicóticos e narcisistas; operam por meio da recusa (verleugnung) e nos obrigam a considerar a conveniência de trabalhar em outro território: aquele onde a via di porre terá lugar, em uma tentativa de oferecer representação àquilo que nunca foi recalcado, porque nem sequer chegou a ser representado.

Se pensarmos nas representações sendo trabalhadas na vida noturna pelos sonhos, e na vida de vigília usadas simbolicamente para fantasiar e pensar, encontramo-nos com o paciente de Freud: sua histérica “sofria de reminiscências”; nosso paciente hoje “sofre de indigência simbólica”.

Os sonhos tornaram-se produto de luxo. As pessoas não sonham, ou não lembram que sonham. Falta a tela para o sonho; o pincel e as tintas não estão mais no mercado; não se representa, se apresenta. Representar leva tempo, restaurar a marca de uma dor cuja sutura só será verdadeira se sair das mãos do próprio artesão. Um poeta já dissera: “Sonhação &– acho que eu tinha de aprender a estar alegre e triste juntamente...” (Rosa, 1976, p. 86).

Mas o tempo é também o mestre sem cerimônias que invade, induzindo à facilidade e brevidade: fazer, não perder tempo. E ele corre, esse tempo, apagando o que passou, agarrando-se no agora. O resultado: aborto das representações, imposição das apresentações em que o atuar ocupa um lugar destacado, lugar este caracterizado por uma operação na qual se dá uma espécie de curto-circuito entre impulso e ação, o que deixa de fora o processo psíquico. Nessa operação são convocados tanto o corpo, através de somatizações, como os atos, através do comportamento.

A paisagem humana que assim se apresenta corre o risco de ser transformada em um deserto bidimensional, achatado pelos processos de perda apenas esboçados, sem condições para ser elaborados. Bia é uma filha desta época. Tantas outras Bias entram e saem de nossos consultórios. Com seus 9 anos até agora transtornados pela incapacidade de atingir a perfeição ditada pela mãe, Bia não cria símbolos: não lhe foi desenrolado o espaço potencial. Ao contrário, em face à desesperança, ausência, rompe-se a promessa da feitura do símbolo e um ato toma seu lugar.

Em uma vinheta clínica, acompanhamos Bia como protagonista da impossibilidade de simbolizar sua baixa autoestima ligado à sua história de descaminhos traumáticos, de fracassos e de poder representá-los. Ao ser confrontada com uma discordância entre seus resultados e os meus, em contas de matemática, entra em forte agitação motora, levantando-se da mesa e andando sem parar, a dar socos na mesa e a xingar. Lanço uma ideia: por que não perguntar à sua mãe, que estava na sala de espera, já que era com quem costumava estudar, qual seria o resultado. Penso em sair da oposição entre mim e ela introduzindo um espaço mediatizado. Bia, ao voltar descendo as escadas, murmura: “Era um desastre horrível, muitos mortos, sangue, não tem jeito...”. Era a maneira de ela comunicar, através dessa narrativa desastrosa, seus afetos agressivos contra o mundo, contra si mesma. Repetia, além do mais, a frase “não tem jeito”, presente em outros momentos do tratamento. Bia transmite o estado de impotência, de desvalia que se apoderava dela cada vez que o mundo apresentava outras respostas diferentes das esperadas por ela. O tempo presente domina o cenário de sua vida por meio de apresentações repetitivas, resistentes em se transformar em símbolos. Essas expressões se apresentam hoje em uma linguagem não verbal: os murros na mesa, as atividades motoras compulsivas de andar para lá e para cá, cada vez que sua autoestima entra em xeque. Bia remete por meio desses atos o fato de não ser aceita, a vivências que datavam de um passado remoto quando ainda era dominante a linguagem não verbal. Restaram essas experiências primitivas tais como eram em seu estado original: desligadas, desprazerosas, orbitando fora da galáxia psíquica, sem sequer ser produto da clivagem. Transgressivas ao tempo cronológico, o seu modo é o da “apresentação”, seu tempo é o presente: o “não tem jeito” de Bia. Roussillon (2008, p. 28) nos conduz a uma melhor compreensão destas manifestações, presentes nas problemáticas narcísico-identitárias, assim denominadas por ele. Dirige nosso olhar para experiências primitivas na medida em que algumas particularidades específicas próprias daquele tempo arcaico vão se fazer presentes em modos mais tardios de expressão, tanto na linguagem do corpo quanto na do ato. É a oligarquia das sensações corporais, acompanhadas de movimentos motores que levam essas experiências submetidas ao prazer/desprazer a se organizarem sob a égide do prazer em formas rítmicas elementares, rudimentos de temporalidade. Quando não, se dominadas pelo desprazer, vagam à moda antiga no estado original, tampouco se prestando a ser recuperadas no après-coup. Perdidas, nos primórdios da vida, essa comunicação não verbal nos oferece brechas a serem penetradas: uma história, se assim pudermos chamá-las, em uma linguagem esquecida, em uma edição antiga amarelada pelo tempo que só a um restaurador essa arte se impõe.

Freud teve a arte de descobrir no sonho um mundo com linguagem própria a ser interpretada, por que não procurarmos decifrar outra linguagem desta vez no corpo e nos atos? Tantas sejam as interpretações, tantos serão o despertar de outros mundos para a vida. Um construir e destruir sem nenhuma prestação de contas de ordem moral, só há nesse mundo o jogo do artista e o da criança... e há quem diga do psicanalista.

O médico, que surgiu do curandeiro, feiticeiro, charlatão, e quem na melhor das hipóteses sempre manteve alguma coisa do artista, irá desenvolver cada vez mais conhecimento dos mecanismos mentais, e neste sentido provar o dito de que a medicina é a mais antiga das artes e a mais jovem das ciências. (Ferenczi & Rank, 1986, p. 68)2

 

Referências

Ferenczi, S. & Rank, O. (1986). The development of psychoanalysis. New York/Chicago: International Universities Press/The Chicago Institute for Psychoanalysis.        [ Links ]

Guimarães Rosa, J. (1976). Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio.        [ Links ]

Roussillon, R. (2008). Corps, acte et symbolisation. Bruxelles: Groupe De Boeck.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Eliana Rache
Rua Capitão Francisco Padilha, 31
0148070 &– São Paulo &– SP
Tel.: 11 3081-9366
E-mail: eliana.rache@terra.com.br

Recebido: 15/10/2009
Aceito: 27/10/2009

 

 

* Psicanalista, membro efetivo da SBPSP; membro associado da APA.
1 Grete Stern, Os sonhos de Grete Stern: fotomontagens (Wuppertal, 1904&–Buenos Aires, 1999).
2 Tradução livre da autora.