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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.32 no.49 São Paulo Dec. 2009

 

RESENHAS

 

A quimera de Monomotapa1

 

The Monomotapa´s dream

 

 

Any Trajber Waisbich*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

Pontalis, J.-B. Le songe de Monomotapa. Paris: Éditions Gallimard, 2009. 166 p.

 

“A amizade, no entanto, ocupou um lugar de destaque na vida de Freud, a começar por aquela que manteve por vários anos com Fliess antes de seu rompimento; depois, com tantos outros ao longo de sua existência ...”2

De saída, Pontalis salienta a importância que a relação entre duas ou mais pessoas tinha para Freud. Afirma ser este um motivo suficiente para que psicanalistas se debrucem sobre o tema da amizade. Continua ele que, para isso, bastaria lembrar as longas cartas trocadas entre Freud e seus interlocutores; ora afetos, ora desafetos. E vai além, alude aos poetas, aos escritores e aos muitos livros publicados sobre o assunto, embora poucas dessas linhas tenham sido produzidas por psicanalistas. Pontalis cogita mesmo desconhecer a existência de alguma publicação especializada a esse respeito.

De fato, toca a ele, um psicanalista e teórico da psicanálise, escrever esse pequeno livro para, por assim dizer, um público leigo. A meu ver, essa qualidade torna a sua leitura ainda mais interessante. Um especialista nessa área contribui com sua visão a respeito de um tema intrincado.

Logo no primeiro capítulo, com o sugestivo título “O obstáculo”, o autor nos coloca a par das dificuldades relativas à confecção do livro. Começa por identificar as várias peripécias pelas quais passou esta empreitada. A ideia, relata ele, não era nova e muito menos original; há anos insistia nesse tema na editoria da Nouvelle Revue de Psychanalyse. Luta vã, já que sempre recusada. Sob esse prisma, inicia o leitor nas ideias e emoções apresentadas nos capítulos subsequentes.

Esse é um livro difícil de ser definido. Ora se parece com um ensaio, portanto uma reflexão a respeito de um conhecimento adquirido através de um estudo detalhado do tema. Outras vezes lembra um romance memorialista, em que ficção e realidade convivem lado a lado com uma narrativa repleta de histórias de amizade. Ao longo da escrita entrelaça os capítulos e tece as memórias daqueles encontros significativos com todo tipo de amigo. Faz-se acompanhar da literatura e de seus autores. Em outro momento traz seus personagens, as criaturas retiradas de seus livros preferidos ou produzidas por sua imaginação. Tanto faz se as relações foram longevas ou passageiras, já que se presentificam a cada recordação. Em outra passagem escreve a respeito dos encontros e de seus inevitáveis afastamentos. Muitas vezes fala de lugares amigos e, por que não, amigos ursos de pelúcia guardados ao longo dos anos. O que importa é a qualidade do encontro. Contudo, não se pode deixar de mencionar as teorias que perpassam e se misturam em um texto fluido e nem por isso fácil. Seu conteúdo faz o leitor trabalhar e se divertir.

O lugar privilegiado da psicanálise como encontro se explicita na passagem que cito a seguir:

Qual é, de fato, essa fonte secreta da cura analítica, desse encontro entre dois seres humanos que não têm a mesma história, não conhecem as mesmas dores e não dividem os mesmos fantasmas? Às vezes nem falam a mesma língua materna ou são de sexos diferentes. Isso pode parecer uma loucura; uma análise, e ela é. Essa longa travessia, na qual dois desconhecidos embarcam rumo ao desconhecido. É preciso para um dos passageiros que exista um outro único, um alter que seja, ao mesmo tempo, o mais estrangeiro e o mais íntimo das pessoas, a fim de que possa aceder à sua própria alteridade. Aquilo que ele ignora de si mesmo e aquilo ao que é submetido, mesmo crendo ser senhor de si. Nenhuma versão moderna de “conheça-te a ti mesmo”, nenhuma introspecção, mesmo a mais acurada, permite acesso a essa alteridade: aquele outro em nós chamado de inconsciente, ou qualquer nome que damos a ele, pouco importa ... O outro único, que é o analista, pode, nisso também, encarnar alternadamente todos os nossos “outros” &– pai, mãe, irmão, irmã, amigo. E, para além dessas figuras reais e imaginárias, encarnar um pai e uma mãe míticos ...3

O autor domina a arte do psicanalista e a do escritor ao falar comedidamente de sua intimidade: como quem estivesse apenas a conversar, conduz uma narrativa densa, intimista e tantas vezes comovente desses encontros. E vai além, aponta esse sentimento que une duas pessoas, na maior parte das vezes do mesmo sexo, e que pode se parecer muito e diferir tanto do sentimento de amor. Desconfia das respostas fáceis e mostra, através de inúmeros exemplos, as diversas faces dessa relação.

Ao final de sua narrativa, Pontalis nos diz continuar a sonhar essa ligação com alguém ou com qualquer coisa. Sabe ser esta uma ilusão, embora chegue a vivê-la por um momento. Aquela em que dois verdadeiros amigos partilhem tudo, o que um possui pertence também ao outro, como no conto “Os dois amigos” de La Fontaine. Essa ideia aparece na epígrafe e também no final desse livro, agora redimensionada.

 

 

Endereço para correspondência
Any Trajber Waisbich
Rua Bela Cintra, 968/112
01315-000 &– São Paulo &– SP
Tel.: 11 3256-9866
E-mail: anytw@uol.com.br

Recebido: 29/09/2009
Aceito: 02/10/2009

 

 

* Psicanalista, membro associado da SBPSP.
1 Tradução livre do título e isso implica, inexoravelmente, leitura e interpretação pessoais da obra analisada.
2 Tradução livre, p. 13.
3 Tradução livre, pp. 147-148.