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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.32 n.49 São Paulo dez. 2009

 

RESENHAS

 

Quando o envelhecer é um desdobramento de si mesmo

 

When aging is an unfolding of one’s self

 

 

Alessandra Ricciardi Gordon*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

Quinodoz, Danielle. Growing old. A journey of self-discovery. London: Routledge, 2009. 218 p.

 

Como escrever sobre velhice e envelhecimento em um mundo que cultua a juventude, a novidade, o prazer? Afinal, o envelhecer é muitas vezes um assunto se não proibido, cerimoniosamente evitado. Certamente conservamos dentro de nós uma concepção de imortalidade, e nisso somos fartamente auxiliados pela mídia e pelas concepções que pairam em nossa cultura e que associam a velhice ao sofrimento, à dor e à morte. Nessa perspectiva, diria que esse livro de Danielle Quinodoz vem como uma iniciativa bem-vinda e muito útil que pode ajudar cada um de nós, leigos ou profissionais da psicanálise, a considerar essas questões.

Ela escreve esse livro não apenas enquanto psicanalista e profissional de saúde mental que trabalha há décadas em um serviço de atendimento à terceira idade, mas também como alguém que está vivendo essa fase da vida e que pode, portanto, considerar essa perspectiva desde o ponto de vista da própria experiência. Aliás, essa é uma ressalva que faz no início de seu livro, a de que há muito tinha vontade de escrever sobre esse tema, uma vez que vem se ocupando disso em seu universo profissional, mas quis esperar que ela própria estivesse vivendo intensamente esse período para que sua avaliação fosse mais plena e incluísse mais que sua experiência com pacientes que envelhecem.

Um primeiro sinal dessa abordagem vem já do próprio nome dado ao livro, que na excelente tradução para o inglês de David Alcorn fica ainda mais enfatizado &– “Growing old”. O sentido desse terno não é facilmente traduzível para o português, pois “growing old”, que poderia ser “envelhecendo”, traz em si a concepção de que se cresce até essa condição. Assim, de imediato, tomamos contato com sua ideia de que o envelhecer é uma condição fruto de um crescimento e pode, portanto, ser um estado a ser construído e colhido com o tempo. É preciso que as experiências possam ser vividas, guardadas e decantadas, e todo um conhecimento útil ao sujeito, e generalizável para outros indivíduos, vá sendo gerado a partir desse processo. Assim, sem desconsiderar as perdas inerentes a essa fase, como a de pessoas queridas, atividade profissional, funções corporais ou psíquicas, ela nos mostra como esse processo pode ser menos uma contabilização de perdas que um inventário de ganhos.

Percebemos ao longo da leitura que ela resgata, no processo de envelhecimento, o desenvolvimento emocional que se desenrola ao longo da vida. A autora pinça momentos significativos do desenvolvimento emocional e, através de exemplos clínicos, discute questões importantes para o desenvolvimento de uma mente ativa e uma vida mental rica. Ela fala, por exemplo, da reintegração de lembranças perdidas ou cindidas e da expansão da vida mental proveniente de tais integrações que compõem um envelhecer que é vivido de forma ativa, com a consciência da finitude e a apreciação do momento presente como único e transitório.

Enfoca as fases da vida pelas quais uma pessoa passa e que a transformam no que é no momento presente. Quando uma pessoa rejeita uma porção de sua vida, fica privada de uma parte de si e, ao recuperá-la, os aspectos integrados a enriquecem e, em certo sentido, a rejuvenescem. Nessa perspectiva envelhecer é se desenvolver! Lembro de um belo sonho de uma paciente de Quinodoz que traduz essa síntese que é aos poucos construída: ela vestia um traje feito de um lindo tecido, tramado por lãs de várias cores e texturas que correspondiam a roupas que de fato usou em momentos significativos de sua vida, da lã rosa dos macacões de bebê às roupas da maturidade. No seu sonho ela fazia uma composição de cores claras e escuras, de tecidos macios e mais ásperos, todas as fases da sua vida estavam representadas e compunham aquele tecido.

A autora discute as ansiedades relacionadas à morte e o trabalho mental necessário para enfocá-las. Ao se aproximar da velhice experimenta-se a necessidade de colocar certa ordem no mundo interno e essa ordem inclui principalmente a reconciliação com pessoas importantes para cada um. Em alguns momentos é possível uma reconciliação de fato, mas, quando as pessoas em questão não estão mais presentes, a reconciliação se dá a nível simbólico, através da reparação dos objetos internos. A obtenção do perdão para si e para os objetos internos dá aos anos de vida vindouros outra qualidade, e mesmo a morte pode passar a ser mais facilmente aceitável. Afinal, brinca Quinodoz, a vida é uma aventura da qual não se sai vivo...

Outro capítulo interessante é o que trata da deterioração física e mental. A autora aborda as vicissitudes das doenças degenerativas, mas trata dialeticamente a ocorrência de perdas funcionais e questões emocionais. Mostra como alguns distúrbios típicos dessa idade podem ser consequência da perda de pessoas e/ou funções; ou ainda como o empobrecimento mental pode ser uma defesa contra a inveja diante dos mais jovens. Discute um possível significado psíquico para a demência e relata casos em que um trabalho emocional tem eficácia considerável na reversão ou atenuação dos sintomas.

A autora dedica dois capítulos para tratar de psicoterapia psicanalítica e psicanálise, em parte porque entende que os analistas têm muitas restrições quanto a praticar psicanálise com pacientes idosos. Ela nos mostra que muitas vezes toma-se por distúrbios da idade o que, com frequência, é resultado de problemas emocionais. Outras vezes a idade camufla um sentimento de menos-valia, a ideia de que não se terá tempo para aproveitar os benefícios de um processo psicoterapêutico ou psicanalítico. Mas estudos têm mostrado que a prática da psicoterapia para esses pacientes coincide com uma redução de cuidados físicos, incluindo hospitalizações, um aumento da autonomia e da possibilidade de gozar a vida. As razões mais frequentes para a indicação de um trabalho se ligam a dificuldades com processos de luto e a falta de um sentimento firme de identidade e coesão de self. Analisa algumas das vicissitudes do processo peculiares a essa fase da vida como a duração, o enquadre, os temas que ocorrem com mais frequência, particularidades do processo com pacientes internados. Discute a afirmação de Freud com relação a um limite de idade para a prática da psicanálise não só com argumentos, mas com casos clínicos em que mudanças psíquicas são observadas, resultando em substancial melhora na qualidade de vida dos pacientes acompanhados. Quinodoz nos lembra que, embora Freud tenha nos alertado quanto à diminuição na elasticidade mental com a idade, a possibilidade de acesso a um rico mundo interno no qual temos a liberdade de tomar contato e brincar com nossas fantasias, sem atuá-las, expande a flexibilidade mental e nos leva a considerar a utilidade da psicanálise para pacientes mais velhos.

Quinodoz nos lembra também que quando se pode preservar na mente o que se perdeu na realidade externa &– bem-estar, pessoas queridas, profissão etc. &–, a vida mental pode ser muito rica de forma a compensar as perdas físicas. O sentimento de solidão é muito presente, a pessoa sente-se sozinha e pode de fato estar só em meio a perdas reais, mas, ao manter uma boa relação com os objetos internos, a perda dos objetos externos pode ser mitigada.

Penso que esse conjunto de ideias e experiências se constitui em um repertório precioso para a reflexão sobre o processo de envelhecimento/amadurecimento de cada um de nós. Esse livro, fruto da maturidade da autora, é um daquelas obras que, embora foquem um tema específico, nos põem em contato com a inestimável riqueza existencial de toda uma vida dedicada à psicanálise, mas, sobretudo, à arte de viver.

 

 

Endereço para correspondência
Alessandra Ricciardi Gordon
Rua Pedroso Alvarenga, 1245/103 &– Itaim
04531-012 &– São Paulo &– SP
Tel.: 11 3071-3757
E-mail: argordon@uol.com.br

Recebido: 30/09/2009
Aceito: 05/10/2009

 

 

* Psicanalista, membro associado da SBPSP.