SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.32 número49A cultura para psicanálise índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.32 n.49 São Paulo dez. 2009

 

CARTA DO LEITOR

 

Verba volant, scripta manent: uma carta aberta a Norberto Gaudêncio Junior

 

 

São Paulo, 12 de outubro de 2009.

Quis o acaso, caro Norberto, que nossos caminhos se cruzassem: não é uma maneira simpática de nos conhecermos? Há muito tempo tenho me interessado por aquilo que, para uso pessoal, vinha denominando de “expressividade plástica da experiência emocional” e que me aproximou do acervo do Museu do Inconsciente de Nise da Silveira, me levou a comparar as obras de Joseph Beuys com a de Arthur Bispo do Rosário, a estudar a evolução da fisiognomonia de Leonardo da Vinci até Freud, e assim por diante.

Só mais recentemente dei-me conta de que aquilo que me atraía de maneira invisível, mas intensa, era o encanto e a funcionalidade da forma. Acho que este envolvimento ocorreu primeiramente através do impacto da representação artística e, depois, em função de minha experiência clínica e conceitual como psicanalista. Para esta segunda vertente, contribuíram de forma significativa os esforços metapsicológicos de Freud e a obra do psicanalista inglês Wilfred Bion (1897-1979), a quem conheci pessoalmente, por ocasião das visitas que fez ao Brasil.

Em Freud, a metapsicologia representa, por assim dizer, a psicologia psicanalítica por excelência. Hoje estou convencido de que os trabalhos que melhor ilustram a essência de sua metapsicologia são “A sagacidade e sua relação com o inconsciente” (1905) e “O Estranho” (1919). Em ambos Freud privilegia como elementos essenciais do funcionamento psíquico os fatores econômicos e estéticos, o que me leva a entender atualmente a metapsicologia como “o conjunto dos esforços econômicos empreendidos pelo psiquismo visando representar a experiência emocional através de artimanhas estéticas”. Devo alertá-lo de que esta é uma formulação pessoal que tem suscitado polêmica entre meus colegas.

Quanto a Bion, seu livro Transformações (1965), além de tentar rastrear as origens biológicas da matemática e da geometria, ainda nos permite deduzir que o funcionamento psíquico neurótico apoia-se nas vivências de interioridade e exterioridade, características do espaço tridimensional, enquanto o funcionamento psicótico se estende a um espaço pluridimensional, cuja vastidão engole tudo que é ali projetado. Ao longo de sua obra, Bion desenvolveu uma original teoria do pensar, propondo, em resumo, que os pensamentos surgem quando se consegue conferir forma às emoções: isto aconteceria, em última análise, através da construção de ideogramas. A vantagem aqui seria articular com um mínimo de esforço um número limitado de formas básicas de modo a poder representar o universo quase infinito das vivências emocionais humanas.

O que Bion está propondo é um tipo de transformação do sensorial em psíquico que já era utilizado nos hieróglifos egípcios e nos ideogramas chineses. Eisenstein (a cuja montagem você se refere ao falar de Marinetti), em seu famoso artigo de 1929 “O princípio cinematográfico e o ideograma”, nos ensina que a junção de dois hieróglifos copulativos produz algo novo, um conceito. Esta foi a origem do ideograma: a combinação de dois elementos passíveis de serem “pintados” permite a representação de algo que não pode ser graficamente retratado &– uma faca + um coração = tristeza.

Em função disso tudo, meu interesse estético tem se concentrado em áreas correlatas a estes pressupostos, como a dança, a elaboração de figurinos, a cenografia, a fotografia, a escultura e o design gráfico. Foi assim que, por ter tido um livro publicado pela Editora Rosari, descobri que ela tem se especializado em títulos sobre design gráfico, dentre os quais me chamou a atenção um deles, com o sugestivo nome A herança escultórica da tipografia. Quando soube da proposta da Cintia de publicar na ide um número sobre “O corpo da palavra”, o acaso transformou-se em caso com a publicação de seu artigo “A tipografia sem tipografia”, que é um resumo de seu excelente livro sobre a herança escultórica da tipografia que carregamos hoje, e que recomendo vivamente aos interessados. Acho que, agora, podemos começar a conversar.

Já no Prefácio de seu livro você nos alerta que “Assim como a escrita, a tipografia traz, em seu modo de significação, tanto o verbal quando o visual”. Ora, esta conjunção expressiva é de suma importância para a Psicanálise, pois ela foi descrita por Freud como uma talking cure (assim em inglês no original), além de ter como obra fundante A interpretação dos sonhos que, como sabemos, são predominantemente vazados em termos visuais. Eu diria hoje que a Psicanálise é uma shaping research, uma investigação das formas que o psiquismo individual desenvolve para enfrentar a vida. Por isso, ela tem muito a aprender com os artistas.

Em 1992 fui a uma exposição em Los Angeles que me marcou profundamente desde o seu título: “Thinking is Form: The Drawings of Joseph Beuys”, onde seus desenhos eram a contraparte visual de uma concepção subjacente &– a estrutura do pensamento como princípio evolutivo. Em 1985, um ano antes de morrer, ele explicou esta concepção:

O conceito expandido da arte não é uma teoria, mas um modo de proceder que diz ser o olho interno muito mais crucial que as imagens externas que se desenvolvem. A precondição para quadros de boa qualidade exteriorizáveis, a ponto de poderem ser exibidos em museus, é que a imagem interna, a forma-pensamento, a estrutura do pensamento, a imaginação e o sentimento, possuam qualidades para compor um quadro. Remeto então o quadro de volta à sua origem, retomando a sentença: “No princípio era o verbo”. A palavra é uma forma. É este o princípio evolutivo por excelência: o princípio evolutivo precisa jorrar do homem.

Retornando agora a seu Prefácio, você ressalva a seguir que “a palavra escrita abstrai o significado do som e o traduz em um código visual arbitrário, uniforme e homogêneo, fixando a lei e instituindo a verdade como ordem”: é esta a realidade criada pela impressão tipográfica. Ou seja, a partir do momento em que o homem imobilizou a palavra falada em um suporte inerte, a visão do leitor transforma-se em uma crença de que aquilo possa estar representando o tal princípio evolutivo seminal do qual nos fala Beuys.

Isto nos remete a outra questão nodal: teria a tipografia contribuído para a criação do homo visualis, aquele que especializou a visão em tal forma e grau que comprometeu a sinestesia e o intercâmbio entre todos os sentidos? Você cita McLuhan, para quem a impressão de Gutenberg teria eliminado o caráter tátil encontrado na tradição oral e nos manuscritos medievais, entendendo-se por “tátil” a interação total entre os sentidos (afirmação questionável se pensarmos que os tipos móveis gutenberguianos fraturavam o papel, criando uma textura passível de ser sentida tanto pelos olhos quanto pelas mãos). Bion tem uma contribuição original a esta questão ao sugerir que há um predomínio da contraparte mental visual sobre todas as demais contrapartes mentais sensoriais: no seu entender, o vértice visual tem um poder superior para iluminar os problemas psíquicos (reconhecendo, na mesma frase, que o recurso à metáfora visual fora espontâneo).

Outro ponto em que a herança escultórica da tipografia se entrelaça com a Psicanálise é na condição da negatividade. De fato, a tipografia sempre esbarrou na negatividade, seja através do entalhamento dos tipos, seja quando o litogravador grava o desenho ao contrário sobre a pedra. Na sua teoria do pensar, Bion entende que o pensamento só acontece quando o psiquismo “sustenta” o vazio causado pela ausência do objeto ou da emoção; quando esta frustração não pode ser suportada, o vazio (que ele também chama de não-coisa) é evacuado, por ser preenchido por algo alucinado.

Você nos traça (inevitável metáfora) com clareza a evolução histórica da tecnologia de impressão segundo o meio por ela utilizado. Não há como não se emocionar ao nos defrontarmos com a artesania dos punchcutters, os talhadores de punções, que faziam o tipo metálico penetrar na “carne” do papel para aí depositar seu sêmen prenhe de dna (isto me levou a um livro que herdei de meu avô, uma edição do Paraíso perdido de Milton, traduzida pelo padre José Amaro da Silva e impressa em Lisboa em 1830, na TYPOGRAPHIA ROLLANDIANA, com licença da Mesa do Desembargo do Paço).

A seguir, acompanhamos a invenção da impressão litográfica em 1818, com a aparente liberação do desenho para uma superfície bidimensional (lembrei-me disso ontem ao visitar a magnífica exposição Virada russa, em que estavam expostas lindas cromolitogravuras tanto de propaganda política quanto de divulgação do florescente cinema soviético a partir de 1920). Esta “simplificação” evolui rapidamente na década de 1940 para a fotocomposição e depois para o ofsete: na primeira os tipos metálicos perdem sua materialidade ao serem fotografados, no segundo a matriz somente “beija” o papel. Foi assim que chegamos, na década de 1980, a uma completa desmaterialização da tipografia que, na informação digital, não passa de um elemento virtual na tela do computador.

Mas aí surge outro aspecto para o qual a Psicanálise tem algo a contribuir. Sabemos que a base do sistema digital é um processo binário de interação entre 0 e 1. A Psicanálise, desde os seus primórdios intuiu esta interação ao reconhecer a importância do prazer ou de sua ausência, do desejo ou de sua inexistência, da consciência ou de sua falta. Você cita Adrian Frutiger para quem “o material tipográfico é o preto, e é tarefa do designer, com a ajuda desse preto para capturar o espaço, criar brancos harmoniosos dentro das letras assim como entre elas”. De novo o mesmo processo binário, agora entre o preto e sua ausência (não foi isso que Maliévitch expressou tão bem em 1923, no seu famoso tríptico de Círculo Negro, Quadrado Negro e Cruz Negra?). Bion entra nessa discussão ao propor serem três os vínculos básicos entre os objetos, o Amor, o Ódio e o Conhecimento: ao considerar a negatividade desses vínculos, somos obrigados a reconhecer, por exemplo, que a ausência do amor não é o ódio, mas sim o narcisismo, como sugerem vários autores. Isso tem várias implicações como, por exemplo, a crença psicanalítica de que o dilema fundamental do psiquismo não é optar entre amor ou ódio, mas sim sustentar que o objeto total alberga em si amor e ódio.

Eu poderia, e gostaria, de continuar tratando dessas fascinantes intersecções entre design gráfico e Psicanálise, mas pararei por aqui, deixando presente a minha expectativa a respeito dos comentários que estas questões possam lhe suscitar. Como nossa correspondência deverá ser editada, creio que faremos jus ao provérbio latino que se fia mais na escrita do que na fala.

Um grande abraço,

Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho
(pelo visto, compartilhamos também a marca do nome do pai, prato cheio para muitos psicanalistas)

 

São Paulo, 29 de outubro de 2009

Prezado Luiz Carlos,

Quis o acaso que sua carta me encontrasse em um momento muito conturbado de meu cotidiano, e pelo qual, certamente, o senhor já passou diversas vezes: a reta final de conclusão de um trabalho acadêmico. Por isso, desde já, peço desculpas pela brevidade desta resposta, e afirmo meu desejo de reiniciar este diálogo em ocasião mais oportuna.

Foi com alegria que li sua carta. Alegria por descobrir que a modesta pesquisa que conduzo como designer gráfico (que ainda batalha o seu mestrado) dialogue tão profundamente com a psicanálise. Aliás, foi com certo espanto que recebi &– e aceitei &– o convite da Cintia para colaborar com esta belíssima revista. E com a certeza velada de que meu texto não teria muito a colaborar com esta publicação. Desconfiança e certeza, ao que parece, sem procedência, e desfeitas com a leitura da revista e de sua carta.

Confesso, também, certa timidez ante sua carta, pois o repertório que ela desfila é muito, mas muito mesmo, desconhecido para mim. Acredito que somente após a leitura atenta de alguns dos autores que o senhor elenca é que me sentiria confortável em tecer comentários sobre as “fascinantes intersecções entre design gráfico e a psicanálise”. Fica aqui o meu compromisso em enfrentar esta tarefa (prazeirosa, certamente) e o pedido de desculpas de, por hora, não fazer tanto jus ao provérbio latino que se fia mais na escrita do que na fala.

Com um abraço de sincera admiração,

Norberto Gaudêncio Junior

 

 

Luiz Carlos Uchoa Junqueira Filho
Rua Helena,170/123
04552-050 &– São Paulo &– SP
E-mail: mr.junqueira@ uol.com.br

Norberto Gaudêncio Junior
Rua Martim Francisco, 448/302
01226-002 &– São Paulo &– SP
E-mail: norberto@mackenzie.br

 

 

São Paulo, 20 de outubro de 2009

Cara Mariângela

E por falar em palavras... desejo cumprimentá-la pela bela linguagem de seu artigo, uma escrita composta de palavras poéticas que tornam mais suaves ao leitor a recepção da dor e do sofrimento que emanam dos pacientes que você nos apresenta, como representantes desse universo solitário, onde as letras internas muitas vezes se acumulam, sem possibilidades de combinações de sentido, permanecendo aprisionadas e impedidas de fluir rumo a novos significados.

Helio recostado na imagem da analista solta no ar sua imaginação, desta vez feita de gestos que ensaiam letras, que imitam palavras, que tentam sentidos, que buscam desesperadamente uma comunicação dos seus desenhos interiorizados? Reafirmando sua existência a partir da própria sombra, voa pelo ar em sua busca de solidez para pousar, passa pelos traços escuros no papel e alcança, a partir da clara presença da analista, a luz das feições do humano, podendo, então, ser capaz de nomear em dupla a “letra”.

Por sua vez, Marco, com suas letras de sangue, escancara no peito o corpo ferido, a experiência de afetos registrados na carne, avisando a analista que a experiência de cortar-se é solitária, escondida, e ao ser exposta é aviso da incontinência, do transbordamento perigoso e das dificuldades em restabelecer as fronteiras entre o ato e o símbolo, entre as ações e sensações de um lado e os símbolos e as emoções do outro.

Mariângela, dos ares à carne, ambos os meninos puderam tecer pele psíquica a partir de sua palavra-agulha que suturou várias fendas inconscientes...

Despeço-me, emprestando de Danon-Boileau estes dizeres: “Estamos sempre sozinhos ao pronunciar uma palavra, mas podemos ser dois a ouvi-la”.

Parabéns,

Marina

 

São Paulo, 30 de outubro de 2009

Muito grata, Marina, pela sensível escuta e estimulante interlocução. Evoco de novo a referência a Hélio, em estado gasoso em minha contribuição à IDE 48, para juntar-se a nós neste batebola (ou “bate-letra”).

Recentemente, após anos de escrita no ar, e de gradativos momentos de aproximação em meio a momentos de afastamento autístico, ele tem me pedido, ao ficar agitado, misturando falas que insistem em repetição com fragmentos vivos de nossas conversas: “Escreve! Escreve aí!” (Não no ar, mas no papel!).

Enquanto conversamos escrevendo, ele também encadeia letras, agora não tão aprisionadas, que correspondem ao seu nome.

Expandindo a bela imagem que nos sugere, Marina, neste contexto das dores ainda não nomeadas e às vezes ainda nem constituídas, também a escrita e a troca, em nossos veículos de contato, como registro e oportunidade de um compartilhar, são mesmo instrumentos de essencial costura. Agradeço a Marina e à IDE por essa possibilidade.

Abraços,

Mariângela

 

 

Marina Ramalho Miranda
Rua Guarará, 529/136
01425-001 &– São Paulo &– SP
Tel.: 11 38843210
E-mail: m.r.miranda@uol.com.br

Mariângela Mendes de Almeida
Rua Escobar Ortiz, 682
0452-051 &– São Paulo &– SP
E-mail: mamendesa@hotmail.com