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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.50 São Paulo jul. 2010

 

EM PAUTA - CARTAS

 

Cartas da juventude: uma chave mestra?1

 

Letters of youth: a master key?

 

 

Marta Úrsula Lambrecht*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora resgata, através de um passeio a um pequeno município ao leste da Morávia, Príbor, o casarão em que transcorreram os três primeiros anos da vida de Sigmund Freud e sua família. Uma chave pendurada na fachada da casa é, para a escritora do texto, um paradigma da vida futura de quem foi o mestre da psicanálise. A infância do pequeno Sigmund deixa marcas nas cartas trocadas com um amigo íntimo, Eduard Silberstein, entre os anos 1871 e 1875. Lê-se, nas entrelinhas, o leque de sentimentos, inquietações e vicissitudes que o acompanham ao longo da puberdade. Conjecturas são tecidas pela autora, em relação à paixão e à renúncia do primeiro grande amor.

Palavras-chave: Primeira infância, Sigmund Freud, Cartas da juventude, Primeiro grande amor de Freud, 117 Schlossergasse.


ABSTRACT

The author rescues, with a ride to a small town in eastern Mhoravia, Príbor, the house where Sigmund Freud and his family passed the first three years of his life. To the writer of the text, a key hanging on the façade of the house is a paradigm of the future life of who was the master of psychoanalysis. The childhood of little Sigmund leaves marks on the letters exchanged with a close friend, Eduard Silberstein, from 1871 to 1875. We read between the lines the range of feelings, concerns and events that accompany throughout puberty. Conjectures are woven by the author in relation to the passion and the resignation of the first great love.

Keywords: Early childhood, Sigmund Freud, Letters of youth, First great love of Freud, 117 Schlossergasse.


 

 

“Con cada nuevo invento el mundo se vuelve más prosaico, finalmente las cartas caerán en desuso y las sustituirán los telegramas. Se podrá tener durante una década una correspondencia con un amigo sin ver jamás su letra manuscrita […]”

Sigmund Freud, Viena, 31 de dezembro de 18742

 

Freiberg, Morávia.3

 

O perambular, taciturno, por um pequeno povoado tcheco, saltitando com o olhar por entre as florestas e ruínas das muralhas medievais, demarcam as silhuetas de um pequeno município do leste da Morávia. Príbor brota entre os olhos, majestoso. Ganha a cena.

Príbor, Freiberg, então parte do Império Austro-Húngaro, embalara o andar titubeante dos primeiros passos de uma criatura peculiar que, sussurrando em um idioma reparador, atinge até hoje o nosso âmago.

Entre duas janelas semiabertas, na parte superior de uma antiga residência da Zámecnicka Ulice, insinuante e enigmático, um suporte antigo abraça uma chave e a captura com firmeza, nada desprovido de sentido singular e aviva ainda mais a curiosidade do viajante, agora deslumbrado, quando o convida a entrar rumo à imaginação daquele semiaberto mundo interior. Fortuitamente, ao deslizar o olhar, lemos: “J. Zajic”.

 

 

Na procura por esclarecimentos, descobre-se que “J. Zajic”, proprietário daquele antigo casarão, arrendara-o para um casal de comerciantes, manufatureiros de tecidos de lã, Jakob, de 41 anos, e Amalie, com somente vinte anos.

 

A casa de Sigmund Freud em Freiberg, Morávia.4

 

Um parente próximo de J. Zajic, Monika Zajic, apelidada de “Nannie” (de idade próxima à de Jakob), velha odienta, segundo testemunhas (Freud, 1900/1994b, p. 258), fervorosa católica romana, zelara, com presteza e deslealdade, por trás daquelas janelas, por uma criança recém-nascida, um menino judeu, filho de Amalie e Jakob, Sigismund.

Zámecnicka Ulice, outrora 117 Schlossergasse – “beco do chaveiro” ou, na língua de Cervantes, “callejón del cerrajero” –, leva-nos a uma simpática homenagem metafórica, fonte inesgotável de sentidos.

Ao longo de três anos no “callejón del cerrajero”, teceu-se o destino do pequeno, não por acaso gerenciado por artesãos das lãs que, preferindo as que acalentam, nem sempre afastam as que espicaçam. E, assim, banhado por um leque das mais variadas sensações, no número 117 da Zámecnicka Ulice, as cartas foram lançadas tal como o menino adverte, quando era já um homem: na mais precoce infância jaz a pedra fundante da vida futura.

Vivenciara o pequeno, nesse curto espaço de tempo, o nascimento de três irmãos, além da perda irreparável de um deles, de poucos meses, a quem hostilizara e cuja morte deixou-lhe por herança espinhosas autorrecriminações. Próximo ao seu terceiro ano, com pesar, outra irmãzinha chega para subtrair-lhe o pouco que lhe restara. Com John, um sobrinho e companheiro inseparável, neto do Jakob, seu próprio pai, rivalizava nas brigas e brincadeiras infantis.

 

Sigmund Freud, 1867. Sigmund ao fundo, junto a Anna. No canto direito, Rosa; ao lado, Mitzi; as duas fotografias do mesmo tamanho correspondem a Paula (à esquerda) e Dolfi (à direita). Todas elas irmãs de Freud. E, finalmente, o pequenininho é seu irmão menor, Alexander.5

 

Amigo íntimo e odiado inimigo, sempre indispensável à minha vida afetiva. Era ele que triunfava e eu precocemente tive de aprender a me defender; éramos inseparáveis, amávamo-nos, no entanto, segundo sei pelas testemunhas de pessoas mais velhas, brigávamos e nos acusávamos. Todos os meus amigos são, em certo sentido, encarnações desta primeira figura que “outrora mostrou-se a meus opacos olhos...” (Freud, 1900/1994c, p. 479)

Os frondosos bosques e a farta vegetação de P íbor também foram cenários de profusas cogitações ao relacionar o amor infantil e o amor à paisagem, colinas e montanhas. Quando os bosques são evocados na memória, uma nova simbologia se configura. Ouçamos:

Vejo um prado quadrangular, algo empinado, verde e densa vegetação. Dentro do verde, muitas flores amarelas, evidentemente são “dentes-de-leão”. No alto do prado, uma casa campesina. Na porta, duas mulheres em pé conversam animadamente entre si. No prado, três crianças brincam. Uma delas sou eu (entre dois e três anos), as outras duas, meu primo, um ano e meio a mais do que eu, e minha prima, da minha idade. Colhemos flores amarelas e cada um de nós tem na mão um buquê. O mais charmoso é o da menina. Nós, meninos, como obedecendo a uma consigna, caímos sobre ela e lhe arrancamos as flores. Ela corre ladeira acima pelo prado e recebe como consolo da campesina um grande pedaço de pão negro. Assim que vemos isso, jogamos as flores, precipitamo-nos e também pedimos pão. Recebemos o pão. A campesina corta-o com grande facão. Este pão desperta uma lembrança gostosa... (Freud, 1899/1994d, pp. 304-305)

Tive a impressão de gostosas lembranças, sensuais, pletóricas, perfumadas e ornadas com a cor e o calor da usurpadora violência e paixão. Paixão que o incita a voltar e encontrar em P íbor suas chaves, as travas e os entraves, seu segredo junto à menina em flor fundida na imagem de Gisela Fluss (de doze anos) e sua mãe, o primeiro e grande amor: ... nunca me abandonou a nostalgia dos charmosos bosques do solar natal e o efeito sobre mim da cor amarela do vestido do primeiro encontro. Toda vez tornava a ver a mesma cor, o hipernítido amarelo das flores nas cenas da infância (Freud, 1899/1994d, pp. 306-307).

A desaparição abrupta da Nannie (Monika Zajic), antes dos três anos, de modo algum passou despercebida pelo pequeno e foi a determinante primordial, suponho eu, de cruciais experiências infantis, gérmen do pensamento psicanalítico. A sombra dessas experiências primitivas rendeu inspiração para as elucubrações sobre a origem das crianças e as fantasias incestuosas entre seu meio-irmão Philipp, filho do primeiro casamento, com 21 anos e rival do pai, e a sua própria mãe, Amalie. À época, Amalie carregava dentro de sua “canastra” (kastelt), o ventre materno, um bebê. Nannie, também fora “encanastrada” – prisioneira – por ter cometido um ato ilegal no velho casarão. Philipp tivera participação ativa ao denunciá-la. Ele era o responsável por estar colocando as pessoas dentro da canastra e Sig fantasiou que seu meio-irmão e sua mãe, Amalie, que tinham a mesma idade, participaram da fabricação de sua intrusa irmãzinha (Jones, 1961, p. 44).

Olhar para dentro das “canastras” adquire, então, do meu ponto de vista, um valor polissêmico que encadeia teorias sedimentadas em coloridas, e não menos dramáticas lembranças infantis. A ferida da qual emana sua profunda dor não seria acaso fruto da constatação de que ele não era o centro do universo materno nessa constelação familiar, senão um elo a mais no meio de uma interminável corrente de crianças? Esta ferida narcísica nos remeteria, assim, à sua adolescente propensão (ou fanatismo) pelo darwinismo, um de seus santos contemporâneos?

Uma catástrofe no ramo industrial de tecido destrói as esperanças da família que, perdendo sua fortuna, tenta deixar para trás Freiberg. Ali onde o pequeno Sig fincou arraigadas raízes, criando dentro de si futuras teorias de amplo alcance, é para onde sempre retorna à procura daquela chave mestra que abriria os cofres das reminiscências da infância. As mesmas chaves que vaticinam as sagas e os mitos da humanidade.

Schlossergasse apontava para a sede e a base essencial do caráter que, segundo ele, se estrutura, por volta dos três primeiros anos, e acontecimentos posteriores possam modificá-lo, embora não alterando as características consolidadas. Institui-se, então, nas marcas evolutivas desta criança, uma primeira volta de chave que permanece soterrada por trás de suas teorias.

As marcas indeléveis de sua meninice saltam à vista em uma carta ao burgomestre da cidade de Príbor. Conta quão difícil era se trasladar àqueles tempos de cujo rico conteúdo somente conservava na lembrança uns poucos resquícios. De algo, no entanto, podia-se estar seguro: nas profundezas, sob tantos estratos, continuava vivendo nele o feliz garotinho de Freiberg, o primogênito de sua jovem mãe, menino que desse ar e desse solo recebeu as primeiras impressões (Freud, 1929-1931/1994a, p. 258).

Vestígios das âncoras da infância também se vislumbram nas genuínas cartas de juventude, quando contava com apenas quinze anos, em 1871, trocadas com seu primeiro grande amigo e colega romeno, filho de judeus ortodoxos, sete meses mais novo, Eduard Silberstein. Além de mães amigas “estou contente de reconhecer o denso tecido de fios de conexão com os que o acaso e o destino têm-nos entrelaçados”6, ambos compartilhavam prazeres, ideais e estudos secretos que os “uniam com um novo laço”. Uma entre tantas aspirações em comum era o fascínio do estudo das línguas. A castelhana – de maneira autodidática –, cuja principal finalidade era a leitura na escrita original de um dos clássicos da literatura universal: Miguel de Cervantes Saavedra. Entre amigos, lavraram um pacto secreto como únicos fundadores da Nobre Academia Espanhola ou Spanische Sprach-Schule. O jovem Sigismund remetia as cartas para Eduard com o pseudônimo de um cachorro, Cipión. O destinatário e cofundador, Eduard, de codinome Berganza, era o outro dos personagens caninos da novela de Cervantes: “Colóquio de los perros”.

Coincidentemente, aos quinze anos, ocorre a mudança – extraoficial e alternada – da sua assinatura. Poder-se-ia indagar indefinidamente, sem se importar até com as respostas, que mudança íntima estaria vivenciando o jovem Sig para querer se despojar do dígrafo “IS”, de Sigismund Schlomo, nome escolhido pelo pai, ou que estranho interesse o levaria a encarnar na pele do cão de Valladolid, Cipión, e assim capturar o cerne da identidade do personagem de Cervantes?

A união dos eruditos, que juntos formaram a Nobre Academia Castelhana, redigiu toda uma cômica literatura sob a égide de uma inteligência refinada. O hospital da comédia de Cervantes situa-se em Valladolid – linguagem manifesta –, no entanto esse mesmo hospital nas cartas de juventude está localizado em Sevilla – linguagem latente –, em que Sevilla alude à Alemanha.

Na mente desses púberes, fazia-se preciso construir um código próprio com a finalidade de despistar os olhares de soslaio ou leitores imaginários. Em uma das primeiras correspondências, Cipión, ao mesmo tempo alertando e ameaçando, diz a Berganza: “Toca-lhe o dever de não deixar minhas cartas em mãos de ninguém, caso queira que continue a falar de meus sentimentos”7.

No estatuto da mitologia privada dos únicos membros da Academia Espanhola ou Castelhana, o significado das palavras não era aleatório, como, por exemplo: “Jamais digam de alguém “ter morrido”, senão digam: saiu de Sevilla. Jamais digam de alguém “ter viajado pela Alemanha, de Viena a Berlim”, senão digam: mudaram de cerro”8. Viena, assim como Berlim, recebe outro nome. Cerro na comédia de Cervantes, é uma íngreme ladeira denominada Cerro Gordo, local em que os escravos cristãos chamam de “perros” (cães) aos rapazes mouros. Assim, “perros” pode nomear tanto aos “mouros” como aos “judeus”, identidade compartilhada com Eduard Silberstein.

E mais, na conversa “entre os cães”, tudo poderia ser dito, co mo observamos no diálogo das cartas entre os dois amigos, des temidamente, à viva voz, de forma aberta e sincera. Ao fim das contas, somente eles podiam decifrar o sentido. Alguns dos escritos eram polêmicos, outros, românticos. Um deles, enfadonhamente belo e repreensivo, como de um pai que adverte o filho adolescente ousado:

Queria lhe falar daqueles assuntos que me parecem sérios, mas me perdoará por expressar a aflição e as preocupações que me causa ... e nossa velha amizade me dá o direito de julgar seus mais recentes assuntos ... e a mim causa uma profunda tristeza aceder à irrefletida simpatia com que lhe ameaça uma moça de dezesseis anos e se aproveitar dela, coisa que, em consequência, poderia suceder ... Aquilo que você iniciou com o propósito inocente pode ter o mesmo resultado que se houvesse se deixado levar de início por um pensamento injustificável ... Entendo que um homem, ainda que possa tentar provar muitas coisas, ainda que possa se justificar e causar sua própria desgraça, prejudica-se menos ainda que uma mulher ... O homem parece ser capaz de experimentar paixões, de se afundar em sentimentos violentos, inclusive de afrouxar as rédeas da moral porque o princípio de seus atos, a consciência de quanto são bons ou maus, descansa nele mesmo. O homem que pensa é seu próprio legislador, confessor e a instância que o absolve. A mulher, e mais ainda a moça, no entanto, não leva a medida da ética em si mesma, somente pode proceder bem quando respeita os limites dos costumes, quando observa aquilo que a sociedade reconheceu como correto. Uma sublevação contra os costumes não lhe perdoam nunca ... Por isso, não seja você o motivo para que uma moça, que apenas ultrapassou a infância, transgrida pela primeira vez a – justa – norma da moral, tendo encontros com você contra a vontade de seus pais e correspondendo-se com você, que é um estranho. ... Ficaria muito contente se no lugar de rir de meu tom de sermão – que não posso evitar, apesar de tudo – fizesse-me caso e não tivesse encontros nem correspondências secretas. E se não se considera forte o bastante, de verdade, volte para Viena. ... Mas você faz mal às coitadas das meninas se as acostuma com lisonjas e galanterias que logo serão para elas uma necessidade que exigirão, não como um bocado excepcional, mas como o pão de cada dia. ... Como pode se orgulhar tão pouco de não ser indiferente a uma menina de dezesseis anos? ... Até aqui esse tom seco. Compreenderá minhas súplicas e minha preocupação. Todo o resto posso deixá-lo a seu julgamento9.

Por vezes, a poética metafórica e a fala em códigos abstraídos do estudo de obras literárias refletiam os mínimos detalhes da vida quotidiana: diário de viagem exclusivo para seu amigo, cadernos de notícias, dramas dos adolescentes, paixões, poemas, apetites intelectuais e um turbilhão desordenado dos ecos afetivos do passado que impregnavam cada linha. Mas, vale recordar: os flertes e as intimidades jazem camuflados por sob a pelagem e o uivar dos cães em colóquio, redigidos no “miserable castellano”10.

Vemos, por vezes, o jovem Sig necessitado de afetos, faminto de notícias íntimas “Somente de má vontade lhe perdoo que escreva tão pouco de si mesmo”11. Notamos um jovem ávido e afoito pelas rápidas respostas das missivas que escrevia a Eduard:

Somente espero uma coisa: que me compensará na sua próxima carta pela secura que reinava na última e que responderá imediatamente, ainda sob a impressão desta minha escrita. Talvez assim se abra seu coração empedernido e sua boca endurecida, e me faça saber que ainda não está morto para mim12.

E não foi um mero engano da escrita o fato de ter mencionado no décimo primeiro parágrafo a expressão seu segredo junto a Gisela Fluss e sua mãe, o primeiro e grande amor. As últimas três linhas da carta de 17 de agosto de 1872 rezam: “finalizo esta carta, uma obra mestra do absurdo como nunca antes tenha produzido a Academia Espanhola”13, na qual Cipión conta a Berganza a respeito dos componentes dos membros da família de seus amigos, os Fluss, e escapa, por entre os dedos, a seguinte frase: “vamos agora às meninas. Quatro há e de três falaremos... E por que falaríamos de três se são quatro?”.

Perguntar-nos-emos: Que se esconde detrás da omissão da quarta das “meninas”? Seria Eleonore a quarta das Fluss? A admirada e respeitada mãe de Freiberg, a outra fase, desejada e oculta, quase que imperceptível de Amalie, despontando no solar natal de Eleonore, a almejada mãe com quem pode conversar sobre os clássicos, a mulher que o todo aprecia, em seu justo ponto. Nenhum de seus filhos tem uma amplitude de mira que seu olhar não possa abranger. A burguesa e rica, culta, liberal e moderna, com estilo próprio, para quem seus pensamentos retornam indomitamente ao reencontro do primeiro e grande amor que o acaso e o destino as enlaça na busca de encontrar uma saída, ainda que imaginária, da miséria material. Refere-se ainda àquela mãe de Freiberg, afirmando que “tal superioridade por sempre jamais encontrei. Nunca foi bela, no entanto, devia ter sempre, como agora, os olhos radiantes desse fogo do engenho e do atrevimento”14. Nessa mesma missiva, datada de agosto, confidencia por extenso e detalhadamente a seu amigo Eduard que as palavras brotam do coração e as letras da pluma. Transfere, diz, o respeito pela superioridade da mãe em forma de amizade à sua filha Gisela15. Sig vê Eleonore, acredito eu, com a lente da idolatria, com o carisma azul da fantasia e, com isso, é incerto imaginar que o objeto de amor recaia na beleza selvagem de Gisela, de quem sugerira demonstrar ser um secreto e não correspondido primeiro grande amor.

Soubemos de outras das insinuantes inclinações em satisfazer amores incestuosos. Jakob manteve a negativa de o filho viajar mais assiduamente a Príbor ou passar novamente as férias com a família de Emil, no balneário de Roznau, a “primeira terra prometida dessa amizade”16, a vinte quilômetros de distância de Freiberg, para evitar o flerte com as Fluss. Em seu precário castelhano, gravou em uma missiva o frescor e o sabor (materno-infantil?) da Roznau dizendo a Eduard “têm os passeios mais deleitosos, as selvas mais solitárias, uma montanha altíssima e os morangos mais saborosos”17. Jakob privou o filho dessas beldades com o objetivo de orquestrar o futuro matrimônio com a sobrinha inglesa, Paulina, a filha de seu meio-irmão Emmanuel, irmã de John. Dissuadiu Sig de seus sonhos científicos e o aconselhou, sem êxito, a ser um comerciante de sucesso como era o pai de Paulina. O jovem escreve em tom de queixa, em uma carta a Eduard:

Em vão desejemos nos encontrar em Roznau porque parece intenção fixada de meu pai não me permitir ir lá e não posso nem quero a ele me opor. O caminho a Roznau me está vedado para sempre, meu pai não quer e eu, ainda que o lembre com nostalgia a cada dia, não posso querer seriamente algo que meu pai não o deseje com boas razões18.

Pressuponho que junto com essa dócil renúncia também deixou para trás o mundo infantil da “Torre de Babel” construída com os Fluss, nas férias em P íbor. Embora tivesse mencionado o projeto de seguir a carreira de advocacia, com toda a família unida anuncia, correndo o risco de decepcionar o amigo Emil, quando ele levantasse o véu “decidi me converter em investigador da natureza e por tal devolvo-lhe a promessa de me permitir levar adiante todas as suas reclamações judiciais. Já não mais a necessito. Estudarei as atas milenares da natureza”19.

Apesar da insistência paterna, o jovem timidamente dá a entender que sua decisão com respeito a Paulina é inviável. Claramente replicando a um poema de Friedrich Schiller, “Renúncia”, sugere que a esperança se satisfaz a si mesma sem recompensas “minha satisfação tem um grande buraco e não há modos de remendar e, como costuma suceder com os buracos, a cada dia que passa se faz maior”20. Era eminente negar a dor da interdição a (Gisela-Amalie-Eleonore), seu primeiro amor, e para isso tentou destruir sua imagem, dando também fim a seus sonhos juvenis e à mitologia privada que, junto a Eduard, construiu.

Com Gisela naufragou também a Academia Espanhola, já que os únicos membros orientaram-se para aldeias maiores no mundo. Eduard emigrou para Viena no inverno de 1875, onde, mais tarde no tempo, doutorou-se em direito. O alto foro científico de Berlim abriria as portas para Sigmund, embora, como ele poeticamente escreva em suas cartas, “tudo isto ainda dorme no seio do futuro”21. “As coisas não terminam de repente, senão que se extinguem pouco a pouco com ‘suspiros de agonia’.”22

Penso que não resta sombra de dúvida que, dentre as atas milenares de sua natureza matricêntrica, constam, mediante ata lavrada, a renúncia ao primeiro amor, que dá entrada pelo pórtico da cultura, e o sacrifício em retornar a seu infantil manancial da paixão, cujo destino secreto foi flagrado para além da chave mestra do 117 Schlossergasse, Zámecnicka Ulice, em Príbor, Morávia, de onde verte, sem cessar, a genialidade de sua obra, do cerne de sua alma, que retumba no silêncio da nostalgia dos charmosos bosques do solar natal.

 

Colagem de fotografias de diferentes épocas da vida de Freud.23

 

Referências

Freud, S. (1992). Cartas de juventud: con correspondencia en español inédita. Barcelona: Gedisa.         [ Links ]

Freud, S. (1994a). Escritos breves. In S. Freud, Obras completas (Vol. 21, pp. 245-260). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1929-1931).         [ Links ]

Freud, S. (1994b). La interpretación de los sueños: primera parte. In S. Freud, Obras completas (Vol. 4). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1900).         [ Links ]

Freud, S. (1994c). La interpretación de los sueños: segunda parte. In S. Freud, Obras completas (Vol. 5). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1900-1901)        [ Links ]

Freud, S. (1994d). Sobre los recuerdos encubridores. In S. Freud, Obras completas (Vol. 3, pp. 291-315). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1899).         [ Links ]

Jones, E. (1961). Vida e obra de Sigmund Freud (3a ed.). Rio de Janeiro: Zahar Editores.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Marta Úrsula Lambrecht
Av. 9 de Julho, 1717/52
13208-056 – Jundiaí – SP
tel.: 11 4521-4361
E-mail: martaursula@gmail.com

Recebido: 12/03/2010
Aceito: 30/03/2010

 

 

* Membro associado da SBPSP.
1 As traduções para o português são de responsabilidade da autora.
2 Já em 1874 surgia o temor de as cartas serem substituídas por telegramas, caracterizando-se como uma perda inestimável em prol da tecnologia.
3 Direitos autorais da imagem adquiridos pela autora no Freud Museum of London, Reino Unido.
4 Direitos autorais da imagem adquiridos pela autora no Freud Museum of London, Reino Unido.
5 Direitos autorais da imagem adquiridos pela autora no Freud Museum of London, Reino Unido. Agradeço a Rita Apsan, da Library and Shop of Freud Museum of London, pela gentileza de identificar as pessoas retratadas e as demais imagens fotográficas.
6 Cartas a Emil Fluss (1872-1874). Viena, 7 de fevereiro de 1873 (Freud, 1992, pp. 294-296).
7 Freiberg, 17 de agosto de 1872 (Freud, 1992, p. 51).
8 Viena, 7 de março de 1875 (Freud, 1992, pp. 150-151).
9 Viena, 27 de fevereiro de 1875 (Freud, 1992, pp. 143-146).
10 Viena, 3 de agosto de 1972 (Freud, 1992, p. 46).
11 Freiberg , 4 de setembro de 1972 (Freud, 1992, p. 53).
12 Freiberg, 4 de setembro de 1972 (Freud, 1992, p. 57).
13 Freiberg, 17 de agosto de 1872 (Freud, 1992, p. 51).
14 Freiberg, 4 de setembro de 1872 (Freud, 1992, p. 57).
15 Freiberg, 4 de setembro de 1872 (Freud, 1992, p. 55).
16 Viena, 7 de março de 1875 (Freud, 1992, p. 148).
17 Viena, 11 de julho de 1873 (Freud, 1992, p. 61).
18 Viena, 2 de agosto de 1873 (Freud, 1992, p. 69).
19 Viena, 1º de maio de 1873 Freud, 1992, p. 302).
20 Viena, 16 de julho de 1873 (Freud, 1992, pp. 63-64).
21 Viena, 24 de janeiro de 1875 (Freud, 1992, p. 135).
22 Viena, 7 de março de 1875 (Freud, 1992, p. 147).
23 Direitos autorais das imagens adquiridos pela autora no Freud Museum of London, Reino Unido.

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