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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.50 São Paulo jul. 2010

 

EM PAUTA - CARTAS

 

A carta-relatório de Pero Vaz de Caminha1

 

Pero Vaz de Caminha’s report-letter

 

 

Maria Beatriz Nizza da Silva*

Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal D. Manuel I constitui uma narrativa minuciosa daquilo que ele observara em Porto Seguro durante os dias de permanência da frota que se dirigia para a Índia. A ênfase incide sobre os habitantes da terra descoberta, seus costumes, seu modo de vida, acentuando a impossibilidade de comunicação verbal e a necessidade de ali deixar degredados que, vivendo com os nativos, pudessem aprender sua língua. Como não conseguiu descobrir se ali haveria ouro ou prata, Caminha aponta ao rei a agricultura como a forma de aproveitar aquele território, que seria útil também como porto de abrigo na viagem para o Oriente.

Palavras-chave: Descobrimento do Brasil, Índios, Linguagem gestual, Modo de vida dos nativos.


ABSTRACT

The letter written by Pero Vaz de Caminha and addressed to the Portuguese king Manuel the 1st is a detailed narrative of his observations during the days the Portuguese fleet was harbored in Porto Seguro on the way to India. Emphasis is laid on the inhabitants of the newfound land, their manners and way of life, stressing at the same time the difficulty of verbal communication and the need to leave ashore some exiles who could learn how to speak the native language living with the aborigines. As Caminha could not find out whether there was some gold or silver in the hinterland, he pointed out agriculture as the main resource in a land that was also a safe harbor on the way to the East.

Keywords: The discovery of Brazil, Indians, The language of gestures, The aborigines’ way of life.


 

 

Em uma correspondência, o remetente sempre tem em mente a individualidade do destinatário, a fim de adaptar seu texto aos interesses e gostos de quem irá receber a missiva. Em primeiro de maio de 1500, ancorado em Porto Seguro, o escrivão Pero Vaz de Caminha dirigiu ao monarca de Portugal, D. Manuel I, um relato de tudo o que vira na terra recém-descoberta, logo denominada pelos navegadores Vera Cruz. Trata-se de uma correspondência em um só sentido, uma vez que o destinatário não iria responder ao escrivão, e também de uma carta muito especial, na medida em que tinha igualmente como objetivo requerer mercê ao rei, em retribuição ou graça pelo serviço prestado de narrar tão minuciosamente suas observações na terra desconhecida. Pedia Caminha a D. Manuel I que fizesse sair seu genro da ilha de São Tomé, onde este certamente se encontrava a contragosto. A carta-relatório era, portanto, encarada pelo emissor como um serviço que possibilitaria a concessão de uma mercê.

Não estamos perante um simples relato de viagem, semelhante àqueles que tinham resultado da navegação dos portugueses para a África e para a Índia, e que geralmente eram redigidos pelos pilotos ou pelo capitão da armada. A especificidade do texto de Caminha reside no tipo de observações feitas e nos comentários pouco habituais nos escrivães das naus quatrocentistas. Seus dotes literários eram superiores aos de seus congêneres e ele despreza em seu texto epistolar os aspectos mais técnicos da viagem até a Terra de Vera Cruz, que todos supunham então ser apenas uma ilha como tantas outras já descobertas no Atlântico. Ele próprio previne o rei de que não irá falar “da marinhagem e das singraduras do caminho” porque não o saberia fazer. Deixa esses pormenores para os pilotos. Limita-se a dizer que em 21 de abril começaram os navegadores a ver “alguns sinais de terra”.

Resta saber se o rei de Portugal apreciou devidamente a narrativa enviada, ou se teria preferido um texto mais enxuto. Será que ele se interessou pelas características dos habitantes das novas paragens, ou gostaria mais de ser simplesmente informado se ali havia ou não ouro e outros metais preciosos como na Índia?

Caminha foi direto em sua carta e descartou logo de início a possibilidade de obter qualquer informação concreta acerca do ouro, em parte pela dificuldade que os portugueses tiveram em se comunicar com aqueles habitantes, por não disporem de qualquer intérprete que pudesse estabelecer a comunicação verbal, e também devido ao curto período que ali permaneceram. Em contrapartida, o escrivão atardou-se na descrição da gente que habitava aquelas paragens, como se ela constituísse a verdadeira riqueza do novo território. E procurou mostrar muito claramente ao rei que aqueles habitantes diferiam dos africanos e dos asiáticos, tornando deste modo sua carta a D. Manuel I um documento precioso para os antropólogos e os historiadores.

Outros companheiros da frota transmitiram também a notícia da descoberta da nova terra. O capitão resolveu então encaminhar a Portugal a nau dos mantimentos com os relatos para que o rei pudesse ali mandar alguém que descobrisse a Terra de Vera Cruz melhor do que eles o poderiam fazer a caminho do Oriente. Mas nenhum capitão ou escrivão das naus da frota se alongou em sua narrativa como Caminha. Este, aliás, se escusou perante o rei pelo longo texto remetido, acentuando seu desejo de “tudo dizer”, mas sem nada embelezar ou enfear, e colocando em sua descrição apenas aquilo que vira ou que lhe parecera. Este último ponto é extremamente significativo, pois ele reconhecia que muitas vezes interpretara gestos e comportamentos dos nativos, sem saber ao certo se sua interpretação estava correta. Nas palavras finais escreve: “E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza do que nesta vossa terra vi e, se algum pouco me alonguei, ela me perdoe, porque o desejo que tinha de vos tudo dizer mo fez assim pôr pelo miúdo”. Passagem esta que revela não ter Caminha nenhuma dúvida de que o novo território pertencia ao rei de Portugal.

 

Os “homens pardos”

O foco descritivo de Caminha incidiu sobre os habitantes dessa terra desconhecida. Em primeiro lugar, atentou em seus rostos: “A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes”. Em seguida observou: “Andam nus sem nenhuma cobertura”, ostentando seus corpos “com tanta inocência como têm em mostrar o rosto”. Esses homens pardos, todos nus, “sem nenhuma coisa que lhes cobrisse suas vergonhas”, desconheciam o pudor dos homens brancos.

Nota-se sua admiração pelos mancebos “de bons corpos”, sendo estes “tão limpos e tão gordos e tão formosos que não pode mais ser”, subentendendo-se aqui uma comparação com os corpos dos europeus. Nem mesmo o lábio inferior perfurado por um osso “da grossura de um fuso de algodão” diminuiu esse encanto ou causou estranheza. Observou seus cabelos lisos e rapados por cima das orelhas, suas pinturas corporais em negro e vermelho, as quais, em vez de desaparecerem com a água, ficavam depois de molhadas ainda com as cores mais intensas. Provavelmente comparando os nativos com os africanos, Caminha acentuou “os bons narizes” e os cabelos “corredios”, ou seja, não tinham nariz largo e achatado, nem carapinha.

Em relação aos corpos femininos, sua admiração foi calorosamente expressa, referindo as moças “bem gentis com cabelos muito pretos compridos pelas espáduas e suas vergonhas tão altas e saradinhas e tão limpas das cabeleiras que de as nós bem olharmos não tínhamos nenhuma vergonha”. Ao atentar nas mulheres nativas, a comparação com as europeias foi explicitada ao mencionar uma moça tão benfeita “e tão redonda”, com “sua vergonha” tão graciosa, que “a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha por não terem a sua como ela”, em um recurso literário aos dois sentidos da palavra vergonha: órgão sexual e sentimento.

Quer os corpos femininos, quer os masculinos, foram considerados belos, limpos, inocentes, o que certamente contrastava com os corpos pouco asseados e disformes dos europeus do início dos Quinhentos.

 

A linguagem dos gestos

A gestualidade dominou os primeiros contatos entre os homens brancos e os homens pardos, uma vez que, segundo Caminha, com estes não era possível “haver fala nem entendimento”. Um gesto já utilizado com sucesso em relação aos africanos e aos asiáticos, e que possibilitara uma aproximação pacífica com essas populações exóticas, consistia na oferta de presentes, quinquilharias que os navegadores sempre carregavam consigo nas naus, como por exemplo barretes, carapuças, chapéus, tesouras, colares. Imediatamente se estabeleceu na Terra de Vera Cruz a reciprocidade com a oferta de adornos de penas e outros adereços por parte dos habitantes.

É interessante notar que para Caminha a impossibilidade de comunicação por palavras resultava do fato de se tratar de “bárbaros”. Com eles não havia fala nem entendimento “por a berberia deles ser tamanha que se não entendia nem ouvia ninguém”. Ou seja, a culpa da incomunicabilidade era atribuída exclusivamente aos homens pardos, em uma atitude marcadamente eurocêntrica.

Como se tratava de “gente que ninguém entende”, de nada serviria embarcar à força nas naus um ou dois homens para enviá-los ao rei. Eles dificilmente aprenderiam a se comunicar em Portugal.

Em contrapartida, degredados que ali fossem deixados certamente aprenderiam a falar com os habitantes ao viverem com eles. Caminha exprimia assim uma noção diferenciada das capacidades linguísticas de brancos e pardos.

A linguagem gestual era passível de diferentes interpretações e Caminha tinha consciência dessa dificuldade, e de modo algum a escamoteava perante o rei. Quando um habitante apontou as contas de um rosário e o colar que o capitão trazia ao pescoço, acenando depois para o interior, os homens do mar interpretaram este gesto como significando “que dariam ouro por aquilo”. Mas o autor da carta não estava muito certo desta interpretação: “Isto tomávamos nós assim por o desejarmos, mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não queríamos nós entender, porque lho não havíamos de dar”. A ambiguidade dos gestos era assim reconhecida, sendo sempre possível dar-lhes a interpretação que mais convinha a quem os interpretava.

 

A observação dos comportamentos

Onde falhava a linguagem verbal, onde a linguagem gestual se apresentava ambígua, havia que observar atentamente os comportamentos nas mais diversas situações. Nos contatos iniciais mostraram-se os habitantes esquivos, sempre prontos a fugir para o interior, e Caminha ressalta sua “esquiveza de animais monteses”. Consequentemente, foram utilizadas estratégias de aproximação.

Além da oferta de presentes, procuraram os capitães controlar o vozear da marinhagem: “homem não lhes ousa de falar rijo por se mais não esquivarem e tudo se passa como eles querem para os bem amansar”. A suavidade das falas não seria certamente muito comum em homens rudes do mar...

Conseguiram os portugueses que dois nativos se dirigissem a uma das naus e ali permanecessem algum tempo. Imediatamente Caminha percebeu que a noção de hierarquia social lhes era desconhecida. O capitão da frota recebeu-os sentado em uma cadeira e vestido de acordo com o cargo que ocupava, ostentando um longo colar de ouro, enquanto os demais navegadores se sentavam simplesmente no chão, em cima de uma alcatifa. Os visitantes da terra, nada impressionados com tal aparato e cerimonial, “entraram e não fizeram nenhuma menção de cortesia, nem de falar ao capitão nem a ninguém”. Segundo Caminha, os nativos não reconheciam o capitão “por senhor”, parecendo-lhe que “não entendem nem tomavam disso conta”. Por outras palavras, não reconheciam qualquer relação hierárquica entre aqueles intrusos que tinham entrado em seu espaço.

Tampouco pareciam reconhecer entre si alguém como chefe, pois, embora um falasse muito fazendo ao mesmo tempo gestos para que se afastassem, Caminha não descobriu nenhuma liderança nessa atitude, nem viu nos demais nativos “acatamento ou medo” em relação a esse personagem.

Nessa visita à nau mostraram reconhecer o papagaio que o capitão sempre trazia consigo, acenando para terra como que querendo dizer que ali também se encontravam aquelas aves. Não prestaram qualquer atenção a um carneiro, mas uma galinha os assustou e não lhe quiseram tocar.

Perante a comida oferecida a bordo, pouca coisa aceitaram e, quando provavam alguma iguaria, logo a cuspiam. Não gostaram de vinho e nem mesmo a água beberam: “somente lavaram as bocas e lançaram fora”. Revelaria tal comportamento desconfiança em relação aos desconhecidos? Não parece provável, pois Caminha relata que, em determinada altura, sem qualquer receio, “estiraram-se assim de costas na alcatifa a dormir”.

Com o passar dos dias seu comportamento se tornou menos esquivo, como revelou um episódio narrado por Caminha. Este observou que costumavam dançar uns diante dos outros “sem se tomarem das mãos”, mas, quando um gaiteiro da frota, tocando sua gaita, os pegou pela mão para dançarem, “folgavam e riam e andavam com ele muito bem”.

 

Como viviam os habitantes da Terra de Vera Cruz

Um dos pontos fortes da literatura de viagens cultivada com os descobrimentos dos portugueses no século XV foi sem dúvida a descrição do modo de vida dos habitantes das novas terras abordadas pelos navegadores. No caso da carta de Caminha ao rei também não podia faltar esse ingrediente, embora tais observações se encontrem espalhadas por todo o texto e não concentradas em um só momento da escrita.

Apesar da resistência inicial em permitirem aos portugueses visitar suas aldeias, algumas descrições puderam ser feitas acerca de suas povoações. Estas tinham poucas casas, mas elas eram tão compridas que pareciam naus, e em cada uma moravam entre trinta e cinquenta pessoas. Chamou a atenção de Caminha o fato de em seu interior não serem levantadas quaisquer divisórias. Somente se encontravam ali “muitos esteios”, nos quais estavam penduradas as redes em que dormiam.

Dentro dessas casas “faziam seus fogos” e cada uma só tinha duas portas pequenas, notando portanto a ausência total de janelas.

Quanto à alimentação, referiu Caminha “muito inhame e outras sementes que na terra há”, sem contudo mencionar a caça e a pesca, talvez porque não teve ocasião de observar os nativos nessas atividades. Não havia indícios de se dedicarem à agricultura, alimentando-se apenas dos “frutos que a terra e as árvores de si lançam”. Apesar de sua frugalidade, gozavam de ótima saúde: “andam tais e tão rijos e tão nédios que não somos nós tanto com quanto trigo e legumes comemos”.

A técnica nativa na construção de embarcações era diferente daquela que Caminha já conhecia em outras regiões: “não são feitas como as que eu já vi, somente são três traves atadas juntas e ali se metem 4 ou 5”. Esta descrição indica que em 1500, naquela região de Porto Seguro, eram as jangadas e não as canoas que predominavam, e com elas os habitantes não se afastavam muito da costa.

Notou Caminha a curiosidade dos habitantes pelos instrumentos de ferro de que se serviam os carpinteiros das naus. E explicou: “eles não têm coisa que de ferro seja e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas metidas em um pau entre duas talas muito bem atadas”. A mesma ausência de ferro se observava em suas armas: “Os arcos são pretos e compridos e as setas compridas e os ferros delas de canas aparadas, segundo Vossa Alteza verá”. Esta frase indica que os artefatos indígenas seriam remetidos ao rei, na medida em que os portugueses conseguissem trocá-los pelas suas quinquilharias. Com guizos e outros objetos puderam os navegadores recolher papagaios “muito grandes e formosos”; enfeites plumários usados na cabeça; e mesmo “um pano de penas de muitas cores, maneira de tecido assaz formoso”.

Um toque curioso deixou ainda Caminha ao informar o rei acerca do modo como as mulheres carregavam os filhos pequenos ao colo, atados com um pano cujo material desconhecia, e tão bem protegidos que “não apareciam senão as perninhas”.

Em vários momentos refere as danças, mas raramente menciona os instrumentos utilizados nelas.

Só uma vez fornece uma informação instrumental: “tangeram corno ou vozina, e começaram a saltar e dançar”. Ao contrário do que ocorrerá séculos mais tarde, os comentários de Caminha, quer em relação à cultura material, quer no que se refere aos costumes nativos, não são perpassados por nenhuma conotação pejorativa, embora em dado momento não se coíba de considerar aquela gente “bestial e de pouco saber”. Constatou muito simplesmente que desconheciam a agricultura e os animais domésticos: “eles não lavram nem criam, não há aqui boi nem vaca, nem cabra nem ovelha nem galinha”.

 

A teoria da tábua rasa

Rituais religiosos diferentes dos católicos já tinham sido observados pelos navegadores dos Quatrocentos. O cuidado com que Caminha observou os nativos de Vera Cruz, tão diferentes dos outros povos já visitados na África e no Oriente, levou-o a formular uma teoria acerca de suas crenças, apesar do insuperável obstáculo da impossibilidade de comunicação verbal.

Contrastando com o que os navegadores de outras paragens tinham narrado, Caminha e seus companheiros não tiveram dúvidas: “Pareceu a todos que nenhuma idolatria nem adoração têm”.

Constatação que certamente facilitaria a conversão ao catolicismo, pois se tratava de “gente de tal inocência que, se os homens os entendessem, e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem nenhuma crença”. Ou seja, a ausência de ídolos ou deuses tornava-os uma tábua rasa, na qual tudo se poderia gravar. Não seria portanto necessário lutar contra as religiões locais, como ocorria em território de africanos e de orientais.

Se os degredados que iriam permanecer naquela terra conseguissem dominar sua língua e fazer-se entender, seria possível encaminhá-los mais tarde na direção pretendida e incluí-los na Igreja católica: “esta gente é boa, e de boa simplicidade, e imprimir-se-á neles qualquer cunho que lhes quiserem dar”. Caminha partia aqui de uma premissa: a de que o rei de Portugal se interessaria por ocupar aquela “ilha” de Vera Cruz, e não optaria por deixá-la ao abandono como algumas outras ilhas do Oceano Atlântico.

 

O interesse da monarquia

A parte final da missiva a D. Manuel I concentra-se, como seria de esperar, em um relato que serviria também para alcançar uma mercê régia, nas potencialidades da nova terra descoberta. Esta afigurava-se muito vasta a Caminha: “pelo sertão nos pareceu do mar muito grande porque a estender olhos não podíamos ver senão terra e arvoredos”. E espantava-o esse arvoredo, que era “tanto, tamanho e tão basto” até onde o olhar alcançava.

Embora não tivesse conseguido averiguar se ali haveria ouro, prata, ou metais úteis como o ferro, Caminha previa na Terra de Vera Cruz um brilhante futuro agrícola: “querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”, ou seja, dada a existência de rios. Outra vantagem ainda ela apresentava para a Coroa portuguesa, como porto estratégico na navegação da Índia.

Convém sublinhar que os poucos dias passados em Porto Seguro não permitiram aprofundar os conhecimentos acerca das riquezas naturais. Caminha limita-se a falar de uns camarões “grossos e curtos” descobertos na costa; de “muito bons palmitos” de que se tinham alimentado em abundância; dos tubarões que tinham avistado; das várias espécies de papagaios, pombas e umas aves negras parecidas com pegas. E no sertão muitos outros pássaros seriam certamente encontrados, dada a grande variedade avistada junto da costa e que tanto impressionou o escrivão.

 

As vicissitudes da carta de Caminha

Quando Caminha escreveu sua carta em Porto Seguro, havia já meio século que os escrivães das naus registravam os fatos ocorridos durante as viagens. Existiam relatos do interior da África, da viagem de Vasco da Gama à Índia sob a forma de roteiro etc., mas só depois de Caminha essas narrativas adquirem maior fôlego e se tornam mais minuciosas e ricas do ponto de vista antropológico.

Como se tratava de uma missiva destinada ao rei, e não para circulação entre outros leitores, ela permaneceu desconhecida do grande público até 1817, quando o padre Manuel Aires de Casal resolveu incluí-la em sua Corografia Brasílica, publicada na Impressão Régia do Rio de Janeiro.

Dela tinha sido feita uma cópia em 1773 por ordem do guarda-mor do Arquivo da Torre do Tombo, “para melhor inteligência do seu original”, uma vez que a letra de 1500 certamente dificultava sua leitura e compreensão. E foi essa cópia que Aires de Casal localizou no Arquivo da Marinha quando a Corte portuguesa se transferiu para o Brasil, na sequência das invasões napoleônicas na Península Ibérica. Deve contudo ser assinalado que a primeira versão impressa foi devidamente censurada, para evitar que os leitores se chocassem com a crueza da descrição dos corpos dos nativos.

 

Referências

Caminha, P. Vaz de (1999). A carta de Pero Vaz de Caminha: reprodução fac-similar do manuscrito com leitura justalinear, de Antônio Geraldo da Cunha, César Nardelli Cambraia e Heitor Megale. São Paulo: Humanitas.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Maria Beatriz Nizza da Silva
Rua Homem de Melo, 261/ 11A
05007-000 – São Paulo – SP
tel.: 11 3871-384

Recebido: 10/03/2010
Aceito: 17/03/2010

 

 

* Professora titular aposentada do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, especialista em História do Brasil Colonial, com obras publicadas nesta área no Brasil e em Portugal.
1 Este artigo foi escrito para a revista ide. Em 1965, a autora fez a transcrição do texto de Caminha e elaborou um glossário de termos quinhentistas para a coleção Nossos Clássicos, da Livraria Agir Editora.

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