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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.50 São Paulo jul. 2010

 

EM PAUTA - CARTAS

 

A caixa preta, de Amós Oz: um romance epistolar1

 

Amos Oz’s The black box: an epistolary novel

 

 

Berta Waldman*

Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O romance epistolar é um gênero muito divulgado no século XVIII. Ele conflui para o registro dramático na medida em que não dispõe de um narrador que coordena o andamento da narrativa, bem como a apresentação das personagens e sua atuação. Além de ser epistolar, A caixa preta, de Amós Oz, é também um romance político, fator que não pode ser obliterado em sua leitura. O romance trata dos conflitos entre os partidos de esquerda e de direita em Israel e seus desdobramentos em um plano passional de interação entre os personagens. A proposta polifônica do romance corresponde estruturalmente a um modo de vida comunitário horizontal, a cargo do personagem Boaz, longe dos antagonismos políticos, ideológicos e religiosos, em que todos têm voz.

Palavras-chave: Literatura israelense contemporânea, Romance epistolar, Romance político, Paixão e dinheiro.


ABSTRACT

The epistolary novel is a genre that was very much in favor in the 18th century. It merges with the dramatic form in that it does not have a narrator who coordinates the development of the story, or the characters’ presentation and behavior. Besides being an epistolary novel, Amos Oz’s The black box is also a political text, a factor that cannot be obliterated when we read it. The novel deals with the conflicts between the left and right wing parties in Israel, and their unfolding on a passionate plane of interaction among the characters. There is a structural correspondence between the novel’s polyphony and the character Boaz’ proposal of a horizontal and communitarian way of life, in which all have a say, away from the political, ideological, and religious antagonisms.

Keywords: Israeli contemporary literature, Epistolary novel, Political novel, Passion and money.


 

 

O autor da literatura israelense contemporânea mais traduzido para o português é Amós Oz2. E também o mais apreciado pelos leitores. Suas passagens por São Paulo apenas confirmam a simpatia e o carisma que cercam o escritor e sua obra, traduzida para cerca de trinta idiomas.

Professor de literatura na Universidade Ben-Gurion, Amós Oz vive em Arad, no deserto do Neguev, em Israel. Contrapondo-se às ideias feitas que perpetuam a discriminação, a intolerância, a opressão, o autor não escreve “em linha reta”; para ele todas as coisas são plurais e multívocas. Sua obra autobiográfica De amor e trevas (2005) é um exemplo disso. Multifacetada e móvel, um caleidoscópio de lembranças recuperadas e imaginadas, misto de referencialidade e subjetividade, a obra retrata não um sujeito, mas vários, ou um autor multiforme que se move sem cessar entre a “verdade” e a ficção, entre o passado e o presente, entre aquele que conta e o que é contado, substituindo o ponto final pelo texto necessariamente incompleto e aberto.

A questão política está sempre presente nas obras de Amós Oz. A propósito de sua inclusão na literatura, Stendhal dizia que “política em uma obra literária é como um tiro de pistola em meio a um concerto; o efeito é estridente e vulgar, e, ainda assim, algo de que não é possível desviar a atenção” (citado por Howe, p. 17). A posição de Stendhal é clara e não abre brechas. Mas podemos refletir: uma vez disparada a pistola, o que acontece com o concerto? Imagino que a interrupção pode tanto ser bem recebida como provocar ressentimento. No primeiro caso, suponho que o ruído da pistola pode vir a se tornar parte da execução e, nesse sentido, teremos um concerto bem-sucedido. Caso contrário, o tiro esfacela a unidade mais ampla e determina o fracasso da obra.

Stendhal estava bem sintonizado com o problema. Sabe-se que o discurso político é feito de tensões internas, produto da absorção de um fluxo ideológico mesclado com matéria de experiência. O romance tenta enformar essa experiência que é imediata e íntima, enquanto a política é, por natureza, geral e abrangente.

Dizer que a ideologia é uma carga ou um empecilho não nos diz que o empecilho pode ser valioso ao forçar o romancista a uma concentração de todos aqueles recursos necessários para superá-lo. A noção de que ideias abstratas contaminam uma obra de arte é certa se a ideologia se agrupa em massa, pondo em perigo a vivacidade do texto. As ideias da vida real que estimularam o escritor devem permanecer invioláveis, mas, uma vez postas em ação dentro do texto literário, não podem mais se manter como meras massas de abstração. Essas ideias devem vir dissolvidas em movimento, fundindo-se com as emoções de suas personagens.

Este é o grande desafio: fazer que ideias ou ideologias ganhem vida, dotando-as da capacidade de instigar personagens a gestos de paixão, e, mais ainda, criar a ilusão de que têm uma espécie de movimento independente, de forma que elas próprias – aqueles pesos abstratos de ideia ou ideologia – pareçam transformar-se em personagens ativas no texto político.

Esse vem sendo o propósito de Amós Oz, ficcionista e militante político da esquerda israelense, ligado ao movimento pacifista Shalom Achshav (Paz Agora), que a partir da década de 1970 assume uma atitude crítica apontando na imprensa escrita e televisiva sua posição a propósito dos rumos políticos do país. O homem político transparece na ficção de forma harmoniosa e engenhosa, conforme veremos mais especificamente, em A caixa preta (1993).

Nascido em Jerusalém em 1939, Amós Oz passou grande parte de sua vida no kibutz Hulda, mudando-se a certa altura para a cidade de Arad, no Neguev, onde vive até hoje. Viajou a diferentes países como convidado tanto para apresentar conferências sobre seus livros traduzidos para muitos idiomas, entre eles o português, como para ministrar cursos, pois é professor de literatura.

No início, o kibutz forma um importante eixo aglutinador de sua obra que, embora se distancie do realismo, toma sua matéria da realidade kibutziana. Oz usa essa comunidade como cenário de luta entre forças ocultas que não são estritamente sociais nem psicológicas, mas que lhe serve para expressar dilemas existenciais através de esquemas simbólicos.

Em A caixa preta, o autor conduz com perfeito domínio o destino das personagens e as motivações políticas da sociedade israelense, construindo as duas partes sincronicamente, como dobradiças em que o duplo movimento agiliza a função.

O romance é composto de correspondências: 51 cartas e 56 telegramas que as personagens trocam entre si. Trata-se, pois, de um romance epistolar, gênero que desfrutou de enorme prestígio no século XVIII. Werther, de Goethe; Ligações perigosas, de Laclos, são exemplos de romances epistolares. Nesse tipo de romance, como em uma peça de teatro, o narrador se oculta em benefício de suas personagens, que ganham o primeiro plano. A drástica redução da mediação narrativa dá ao romance epistolar uma temporalidade essencialmente dramática. Contrariamente à literatura memorialista, por exemplo, que costuma jogar com a distância entre o presente do narrador e o passado remoto da história, o romance epistolar tende a identificar os dois planos. Os missivistas ficam mergulhados na opacidade do presente e desconhecem qualquer futuro, pois contam a história ao mesmo tempo em que vivem os acontecimentos. Nas Reflexões sobre as cartas persas, Montesquieu (1991) atribui o sucesso do romance epistolar ao fato de ele suprimir as distâncias e mergulhar o leitor nas paixões das personagens, fazendo-o experimentar diante desse tipo de romance uma tensão semelhante à do espectador de teatro.

É também como o espectador de teatro que o leitor tem de montar, a partir das cartas, a fábula do romance, seu enredo, e também compor o perfil das personagens, que não são apresentadas, nem contadas por um narrador, mas desdobram-se diante dos olhos do leitor, com suas incertezas, oscilações e contradições.

A caixa preta pode ser lida também como uma montagem de fragmentos. A montagem provoca o efeito de “choque”, pois quando o espectador percebe uma imagem, ela logo é interrompida, sem poder ser fixada. Na linguagem escrita esse “choque” se dá com a ruptura de uma continuidade, o que tira o leitor de sua inércia e o obriga a pensar, a se fazer perguntas, a sair de sua passividade e a assumir uma recepção mais ativa e crítica.

Mas por que teria Amós Oz escolhido esse formato para este romance? A resposta que privilegia um nível interpretativo é a que indica que o autor quis dar voz a diferentes segmentos da sociedade israelense (romance polifônico), porque ao mesmo tempo em que as personagens se constroem na e através da escrita, elas compõem algum segmento social e político da vida social e política do país.

Em linhas gerais, o romance apresenta um embate ideológico, quando mostra a desestruturação de uma família ashkenazita3 bem estabelecida, que acaba acolhendo um membro da comunidade judaica oriental, o que acelera o sepultamento de uma era cujo tempo de glória e de superioridade acabaram.

Michael Sommo, além de oriental, é de convicção religiosa e ideias de direita com relação ao “Grande Israel”, e vem, no romance, substituir e desbancar a figura todo-poderosa de outro protagonista, o intelectual bem-sucedido Alexander Guideon, que, além de tudo, é simpatizante da esquerda política israelense. Este serviu no exército e tornou-se um pensador de esquerda destacado, alcançou um reconhecimento internacional, porém deslocou-se para o exterior, abandonando Israel nas mãos da direita, representada no texto por Michael Sommo.

A trama do romance se passa em 1976, antes, portanto, da virada política de 1977, quando a direita ganhou o poder, tomando-o do partido trabalhista que era apoiado pela elite ashkenazita.

O romance, assim, anuncia um desfecho que acontecerá nas décadas de 1980 e 1990, quando o período heroico dos sabras de origem europeia começou a se esgotar, e os pioneiros que sonharam em criar uma sociedade laica e pluralista tiveram de enfrentar a frustração.

A caixa preta de um avião permite desvendar o motivo de um acidente. Mas o romance é uma cartola de mágico que dá a ver, na superfície, uma rede de relações conflitivas que atam uma família integrada por Alexander Guideon, um importante intelectual, Ilana, sua ex-mulher, Boaz, o filho de ambos, criado durante sete anos como bastardo, e o novo marido de Ilana, Michael Sommo. Sob essa trama corre outra subterrânea, representando os conflitos que ressoam em nível sociopolítico.

As relações entre Sommo e Alex são representativas das relações étnicas entre ashkenazitas e sefarditas4, esquerda e direita em Israel. A esquerda mostra-se em baixa, e em seu lugar surge uma força nova, a força do judaísmo mediterrâneo, que acredita no Grande Israel e que está se preparando para substituir o Israel anterior.

A partir da primeira carta de Ilana a seu ex-marido Alex, entra em cena um jogo de paixões que cresce com o desenrolar do texto (marido e mulher, embora separados, são extremamente apaixonados um pelo outro) entremeado com relações de poder, que vêm marcadas pela circulação do dinheiro. Paixão e dinheiro, entretanto, não caminham no mesmo fluxo. O dinheiro flui de Alex para Sommo, para Boaz e para o advogado Zakheim, podendo tanto corromper como construir. Já as paixões exacerbadas que desencadearam a quebra dos laços familiares terão o fôlego necessário para reconstruí-los, embora deslocados para outro lugar e em outra condição, isto é, os protagonistas da paixão terão de se submeter aos dados da realidade (doença e morte) e aceitar sua mudança de posição.

De qualquer forma, a linguagem circula e carreia o dinheiro e a paixão.

Assim, lentamente, Sommo, o humilde professor de francês, começa a transformar-se ao perceber a possibilidade de começar a receber uma ajuda financeira do ex-marido de sua esposa. O dinheiro o corrompe, pois ele abandona sua carreira de professor e usa o dinheiro de Alex para reformar sua casa, sua vida. Ingressa em um movimento de direita nacionalista militante e passa a dedicar-se à compra de terras nos territórios ocupados, planejando levar a família para viver no bairro judaico na cidade velha de Jerusalém. Fundamentalista, acredita em um futuro novo inspirado no passado. Sua fala é formal e permeada de citações bíblicas que vão se tornando cada vez mais frequentes à medida que o romance evolui e sua adesão ao nacionalismo se acentua. Seu empenho é o de impor a posição que defende aos que o rodeiam. Assim, Boaz teria de se educar em Kiriat Arba, e Ilana teria de reeducar-se dentro da tradição religiosa. Ambos, porém, escaparão da órbita de sua influência.

A transformação de Sommo se faz, segundo lhe parece, em nome do Sionismo. Comprar terras, casas em Hebron, reconstruir as antigas sinagogas, em uma cidade que já fora a sede do reinado do rei Davi, são parâmetros ideológicos que têm na mira a reconstrução de um mapa antigo da terra de Sion. E impor a Halachá, a lei religiosa judaica, a todos os cidadãos de Israel, sem se importar com a concepção ideológica e religiosa de cada um, é a forma que ele privilegia para redimir o presente israelense e plantar a salvação futura, preparando a vinda do Messias.

Sommo expressa a frustração que sente por não fazer parte da sociedade constitutiva da empreitada sionista, ele, um novo imigrante, um imigrante oriental, de estatura menor que os judeus europeus, dá vazão à sua frustração na atividade política, opondo-se fortemente aos árabes. Assimetrias intraétnicas e interétnicas se cruzam, e cabe ao mais fraco a obrigação de respeitar a força e o poder de quem os têm em mãos.

Alex é seu antípoda tanto no aspecto físico como na origem, no trabalho, na ideologia. Filho de um pioneiro imigrante da Europa Oriental convulsionada pelo antissemitismo, seu pai, movido pelo sonho sionista secular, vai para a Palestina e rompe os laços com a tradição e com o judaísmo normativo para ajudar a construir uma nação moderna. Esse pai projeta para seu filho nascido na Palestina um futuro heroico, ele seria o sabra alto, destemido e forte, orgulhoso de seu país, o oposto do judeu diaspórico oprimido e sacrificado. Criado para sentir ódio, para defender-se, Alex tornou-se um comandante perdido e solitário e é no exército que conhece a que será sua mulher, Ilana. Um casamento complicado feito de jogos eróticos perigosos, o adultério da mulher separa o casal litigiosamente, deixando mãe e filho sem dinheiro, enquanto o pai amealhava uma fortuna. É essa fortuna que ele irá transferir durante o romance, no momento em que sua carreira de escritor e intelectual está no topo mas sua saúde se vê prejudicada por um câncer irreversível.

É curioso observar que o tema da pesquisa de Alex é o fundamentalismo religioso, visto como uma bomba que implodirá a sociedade israelense e as nações que o albergam, conforme se pode ler em uma crítica a seu livro estampada na imprensa mundial: “a obra despeja uma pesada sombra sobre a psicopatologia de várias fés e ideologias desde a Idade Média até nossos dias” (p. 75). Ou: “seu livro expõe a fé como fonte de imoralidade” (p. 76).

À beira do desespero, Ilana casa-se com Sommo, que lhe oferece uma nova oportunidade de reconstrução da vida familiar. Casar-se com Ilana, ashkenazita alta e bonita, representou uma vitória para Sommo. Ele a salva da autodestruição quando Alex a abandona, e enquanto isso sua autoimagem cresce.

No início, a mulher o admira, mas em seguida fica perplexa com a velocidade com a qual Sommo se deixa corromper pelo dinheiro de Alex, ainda que o dinheiro seja utilizado para o que ele chama de “o bem da nação”.

No final Ilana o abandona para ir cuidar de Alex, prestes a morrer. Mas este ato é interpretado por Sommo como um castigo, pelo fato de ele ter quebrado uma norma social ao ter casado com alguém acima de sua condição e de fora de sua comunidade étnica.

Ironicamente, o herdeiro material de Alex será Sommo, o fanático destruidor de um presente tido como corrompido, cujo objetivo é o de criar uma sociedade inspirada no passado bíblico glorioso, segundo a ideologia que o aproxima do movimento nacionalista Gush Emunim e do partido ultranacionalista Kach. No final do romance, Sommo compõe a imagem estereotipada do judeu oriental. E Alex, por sua vez, no final de sua vida sabe que o dinheiro herdado de seu pai, que pertencera à geração dos pioneiros, destina-se à compra de terras nos territórios além da linha verde, mas, mesmo assim, nomeia Sommo seu herdeiro. Há uma passividade e uma inoperância que talvez o autor coloque nos movimentos pacifistas e nos movimentos de esquerda que silenciaram diante do avanço nacionalista. Assim, Sommo se transforma em uma nova figura que não hesita em tomar o dinheiro do “opressor” ashkenazita e, graças a ele, se torna um homem moderno, com poder de decisão no novo cenário político israelense.

Já Boaz, o filho de Alex, não tem preparo para nem vontade de continuar a empreitada sionista, embora a certa altura do romance se diga sionista. Sonhador e idealista, sua participação no romance instaura uma quebra entre a ideologia sionista e uma prática amorosa de se enraizar no território que fora desbravado pelos pioneiros, como é o caso de seu avô, sem nenhuma nostalgia do passado grandioso do Israel bíblico. Seu tempo é o presente e seu propósito, o de redimir a terra, com o trabalho de suas próprias mãos. Que cada um faça algo de construtivo, este é o seu lema. Sua posição ante os árabes é a de que têm o direito de viver em sua terra, caso contrário os judeus acabarão com os árabes e estes com os judeus, sobrando apenas escombros da Bíblia e do Alcorão, chacais e ruínas de um passado glorioso.

Não é por acaso que ele estabelece em Zichron Yacov, cidade fundada no início da colonização judaica da Palestina na era moderna, longe do fanatismo de Jerusalém e do consumismo cosmopolita de Tel Aviv, uma comunidade ligada à terra e inspirada em um estilo de vida primitivo, contrastando com o luxo e a modernidade perseguida por Sommo e ao alcance natural de seu pai, Alex. Em carta de Ilana a Boaz, ela reconhece e verbaliza: “Você é melhor que todos nós”, reconhecimento que é partilhado pelo pai: “Essa árvore está crescendo longe das maçãs podres”.

Também para Boaz reflui o dinheiro de Alex, mas não o corrompe, porque não é usado como valor de troca nem como mediação de poder. O jovem trata os que o cercam como iguais, sua comunidade apresenta uma organização horizontal, ninguém exerce autoridade sobre o outro. Cada um tem autonomia para fazer o que quer, na hora que quer, ligando-se todos pelo empenho comum de uma construção coletiva.

É essa organização, em que há lugar para todos, até mesmo para Sommo, a matriz que ditará a forma deste romance de Amós Oz. Essa é a microcomunidade imaginada como modelo ideal da nação: concede voz a todos, a todas as representações de forças políticas de Israel, mesmo àquelas com as quais o autor não concorda. É sobre esse modelo que se estrutura o romance polifônico de Amós Oz. A partir dessa construção, ele mostra a singularidade de uma comunidade que, com todos os defeitos, conseguiu moldar uma sociedade singular. Talvez Sommo e Boaz tenham de disputar algum dia a liderança do país, mas o romance, com certeza, torce pelo segundo.

Em um romance epistolar, a caracterização das personagens se faz pela linguagem, por aquilo que elas dizem e como dizem. O tom protocolar e feito de citações religiosas de Sommo; a linguagem pausada e pontuada de erros de quem não frequenta nem frequentou a escola de Boaz; a escrita limpa, franca e um pouco kitsch de Ilana; o texto cortante, inteligente e irônico de Alex; os relatórios “objetivos” e pragmáticos dos advogados; a linguagem sucinta e decidida dos telegramas – cada um dos discursos figura um ethos, aponta para uma direção e compõe uma “cara”. A diversidade de vozes justapostas remete à multiplicidade de caracteres. E como a história vai-se tecendo à medida em que cada carta é escrita, com a autoridade que lhe atribui o missivista, ela pode ser e é contraditada pelo destinatário, que desconstrói a história anterior para reconstruí-la de seu ponto de vista em novo patamar. Isso significa que os sentidos hesitam em um romance epistolar, porque, como desfazer as contradições?

A história passional vivida por Ilana e Alex é duplamente construída. Os motivos que levaram ao casamento, ao adultério da mulher, ao desencontro do casal, vão se montando e desmontando, qual areia movediça, pelo homem e pela mulher, deixando o leitor perplexo diante da impossibilidade de refazer a história em um percurso linear. A única certeza que fica é a de que se trata de uma história de amor e paixão nada banal, vivida por duas personagens complexas e que, apesar dos impedimentos da vida, não se separam de fato, embora a estrutura familiar se desfaça.

Se é a pele que sanciona a integridade dos corpos, limitando-os como invólucros, ela explicita uma dinâmica entre superfície e profundidade ao aceitar e acompanhar, ao mesmo tempo, relevos e depressões. Assim também o corpo da linguagem, no caso desse romance, delimitado pelos múltiplos estilos, múltiplos emissores, deixa-se atravessar pela paixão, que traz a reboque a ideologia.

Essa construção não se deixa capturar em partes excludentes, isto é, a ideologia sem a paixão, a paixão sem a ideologia, o que é um trunfo em termos de seu resultado final. Buscando a estrutura multivocal, em que as vozes contracenam sem se submeter ao comando de um único desígnio, o homem político, que é a contraface do escritor, também busca um olhar equânime em relação ao conflito israelense-palestino.

Israelenses e palestinos vão chegar a um acordo tristemente pragmático: haverá um Estado da Palestina ao lado do de Israel; sem lua de mel nem história de amor, mas viveremos como vizinhos civilizados. Não sei quando isso virá, mas posso prometer, em nome de israelenses e palestinos, que se a Europa demorou mais de mil anos para acabar com as guerras e criar a Comunidade Europeia, nós o faremos mais depressa e derramaremos menos sangue. Tenham um pouco de paciência e não tenham uma atitude de condenação, indignação, ou paternalismo... Não nos digam que somos terríveis. Tentem ajudar. Deem às duas partes toda a empatia que puderem. Isso é o que faço em meu livro, não julgo quem era bom e quem era mau entre meu pai e minha mãe. Escrevo sobre os dois, com toda a empatia de que sou capaz5.

 

Referências

Howe, I. (1998). A política e o romance. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Montesquieu, C. (1991). Cartas persas (R. J. Ribeiro, trad.). São Paulo: Pauliceia.         [ Links ]

Oz, A. (1993). A caixa preta. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Oz, A. (2005). De amor e trevas. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Waldman, B. (2004). Linhas de força: escritos sobre literatura hebraica. São Paulo: Humanitas.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Berta Waldman
Rua Fradique Coutinho 294/42B
05416-000 – São Paulo – SP
E-mail: bwaldman@usp.br

Recebido: 20/03/2010
Aceito: 31/03/2010

 

 

* Professora aposentada de Teoria Literária na Universidade Estadual de Campinas; professora titular de Literatura Hebraica na Universidade de São Paulo.
1 Este trabalho retoma elementos de outro ensaio, “Literatura e política: alguns aspectos da obra de Amós Oz”, mas dá-lhe outra direção (Waldman, 2004).
2 As obras de Amós Oz traduzidas para o português são: Conhecer uma mulher (trad. Nancy Rozenchan). São Paulo: Companhia das Letras, 1992; A caixa preta (trad. Nancy Rozenchan). São Paulo: Companhia das Letras, 1993; Fima (trad. George Schlesinger). São Paulo: Companhia das Letras, 1996; Não diga noite (trad. George Schlesinger). São Paulo: Companhia das Letras, 1997; Pantera no porão (trad. Milton Lando e Isa Mara Lando). São Paulo: Companhia das Letras, 1999; O mesmo mar (trad. Milton Lando). São Paulo: Companhia das Letras, 2001; Meu Michel (trad. Rifka Berezin et al.). São Paulo: Summus, 1982 | (trad. Milton Lando). São Paulo: Companhia das Letras, 2002; De amor e trevas (trad. Milton Lando). São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
3 Judeus ashkenazitas são aqueles provenientes da Europa Oriental e falantes do iídiche. Eles tiveram um papel preponderante na fundação e construção do Estado de Israel.
4 Judeus sefarditas são aqueles que foram expulsos da Península Ibérica e dispersaram-se por outras diásporas. São falantes do ladino. A diferenciação entre sefarditas e ashkenazitas ficou mais evidente a partir do século XVI. Basicamente, a diferença era de rito e tradição sinagogal, sendo que a dos sefarditas ligava-se ao judaísmo da Babilônia e a dos ashkenazitas, ao da Palestina. Refletia-se também na pronúncia do hebraico, nos hábitos sociais, no vestuário etc. O grande centro cultural da vida sefardita até a era moderna foi Salônica, arrasada pelos nazistas em 1943. Ultimamente manifesta-se certa tendência a se considerar como sefarditas todos os judeus orientais (muitos dos quais adotaram o ritual sefardita), ou mesmo todos os não ashkenazitas.
5 Entrevista a Entre Livros, a propósito de De amor e trevas, em janeiro de 2007.

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