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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.50 São Paulo jul. 2010

 

EM PAUTA - CARTAS

 

A metapsicologia do traumático: um ensaio sobre o sobressalto

 

The metapsychology of trauma: an essay on the startle

 

 

Ronis Magdaleno Júnior*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Universidade Estadual de Campinas
Núcleo de Psicanálise de Campinas e Região

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partindo da experiência emocional do sobressalto evocada pelo recebimento de uma carta, propomos um aprofundamento metapsicológico da teoria do trauma desenvolvida nos trabalhos iniciais de Sigmund Freud, mas logo abandonada por ele. Seguindo as ideias de Ferenczi, Laplanche e Winnicott, procuramos redefinir o lugar metapsicológico do traumático na estruturação do psiquismo humano e na gênese de áreas de não representação psíquica, que se encontram geneticamente na estrutura etiológica das patologias de déficit. Os cuidados iniciais da mãe propiciam a criação de elementos representativos úteis ao processo de pensamento ou, pelo contrário, marcam áreas de não representação que se manifestam por descargas de angústia no real do corpo, sem possibilidade de elaboração e de desenvolvimento.

Palavras-chave: Psicanálise, Freud, Trauma, Patologias de déficit.


ABSTRACT

Starting from the emotional experience of startle evoked by the receipt of a letter, we propose a further of the metapsychological theory of trauma developed in the early work of Sigmund Freud, but later abandoned by him. Following the ideas of Ferenczi, Winnicott and Laplanche we seek to define the place of trauma in the metapsychological structure of the human psyche and the genesis of areas with no psychic representation, which are genetically the etiological structure of deficit pathologies. The initial care of the mother encourage the creation of representative elements that are useful to the thought process or, alternatively, mark areas that are not represented, manifested by discharge of anxiety in the real body, without the possibility of working-through and development.

Keywords: Psychoanalysis, Freud, Trauma, Deficit pathology.


 

 

Meu querido amigo,
A menos por um milagre na próxima 2ª feira, 3 (ou mesmo na véspera) o seu Mário de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá deste mundo. É assim tal e qual – mas custa-me tanto a escrever esta carta pelo ridículo que sempre encontrei nas “cartas de despedida”... Não vale a pena lastimar-me, meu querido Fernando: afinal tenho o que quero, o que tanto sempre quis – e eu, em verdade, já, não faria nada por aqui... Já dera o que tinha que dar. Eu não me mato por coisa nenhuma: eu mato-me porque me coloquei pelas circunstâncias numa situação para a qual, a meus olhos, não há uma outra saída...
Um grande abraço. Adeus.
Paris, 31 de março de 1916.

Ao lermos a carta de Mário de Sá-Carneiro endereçada a Fernando Pessoa nos últimos dias de sua vida, posto que o suicídio já estivesse definido em sua mente, não podemos evitar a experiência de sobressalto, uma emoção que nos pega de surpresa, causa suspensão e impotência. Levando em consideração que de Paris a Lisboa, naquela época, uma carta demoraria alguns dias para ser entregue,
e outros tantos dias para que uma resposta ou uma ação pudesse ser tomada, imaginamos o efeito traumático que a mensagem carregava, permanecendo um tempo de suspensão incontornável, irrepresentável na mente daquele que recebeu o impacto.

Imaginamos outro sobressalto quando, após alguns dias, chega uma nova carta, que confirma mais algum tempo de vida do amigo; certo alívio, mas ainda assim sem garantias, já que o suicídio de Mario de Sá-Carneiro se consumaria no dia 26 de abril daquele mesmo ano.

Sem efeito as minhas cartas até nova ordem – as coisas não correm senão pior. Mas houve um compasso de espera. Até sábado.
Paris, 4 de abril de 1916.

Na história do homem, as cartas estão frequentemente associadas a um sobressalto, sobretudo aquelas que nos chegam de um lugar familiar. O sobressalto, entendido como o efeito de ser tomado de assalto, de improviso, é a experiência emocional da chegada da carta, algo que surpreende, faz nascer e sentir receios ou cuidados, assustar-se, atemorizar-se (Houaiss & Villar, 2001).

Vejamos a letra do samba-canção intitulado “Mensagem”, de 1946, composição de Aldo Cabral e Cícero Nunes, que traduz a essência desta experiência emocional.

Quando o carteiro chegou e o meu nome gritou
Com uma carta na mão
Ante surpresa tão rude, nem sei como pude
Chegar ao portão.
Lendo o envelope bonito e no subscrito
Eu reconheci
A mesma caligrafia, que disse-me um dia
Estou farto de ti
Porém não tive coragem de abrir a mensagem
Porque na incerteza
Eu meditava e dizia:
Será de alegria? Será de tristeza?
Quanta verdade tristonha ou mentira risonha
Uma carta nos traz
E assim pensando rasguei sua carta e queimei
Para não sofrer mais.

Esta música, na interpretação de Izaura Garcia, foi sucesso no final dos anos 1940, possivelmente pela agudeza com que captura em sua letra – e na interpretação consistente e sintonizada da artista – o sobressalto que nos causa a incerteza de um envelope fechado e que guarda dentro de si segredos.

A música e a carta de Sá-Carneiro nos remetem, de pronto, ao campo que nos propomos a investigar: o efeito traumático do sobressalto, tantas vezes apresentado na literatura, na poesia e nas artes em geral. Atualmente, o hábito de escrever cartas foi maciçamente substituído pelas mensagens eletrônicas que, apesar de guardarem ainda o mistério e a apreensão sobre aquilo que contém, perderam o elemento sensorial essencial que somente as cartas podem trazer: a caligrafia, a marca de seu remetente, que cria a atmosfera afetiva com potencial de alcançar a emoção do outro, e que os frios e-mails não conseguem carregar. É só o Outro, ou o Outro com o mistério de sua subjetividade encarnada, que nos sobressalta. É o infinito representado pelo rosto do Outro que nos traumatiza, no sentido proposto por Levinas (2008), para quem o rosto do Outro é traumático por natureza, por representar aquilo que não pode ser compreendido, englobado, transmitindo o caráter de infinito que está presente no finito.

As cartas, neste sentido, têm o poder trazer com elas, além de segredos e intimidades, muito do rosto do Outro, ao carregar sua caligrafia, seu cheiro, um pouco do ar que ele respirou sobre o papel, a marca do olhar sobre o papel. Como poeticamente nos lembra Carlos Drummond de Andrade (2000) em seu poema “Resíduo”, “de tudo fica um pouco”; fica um pouco do corpo do escritor no papel da carta. Penso ser por isto que as cartas pessoais têm o poder de afetar o Outro de modo muito mais agudo do que qualquer outro meio de comunicação indireta.

Além disso, todo o mistério de um envelope fechado contendo algo que se revela a seguir de modo amplo e irreversível, algo imprevisível e imutável, envolto por todo aquele pouco que sempre fica de tudo, tem, ao causar o sobressalto, um potencial traumático. O que foi dito está ali, irrevogável, inapelável, na própria caligrafia do outro. O que foi falado pode ser desdito, o que foi escrito, com a própria letra, não o pode mais: Verba volant, scripta manent.

 

Repensando o lugar do trauma na metapsicologia e na contemporaneidade

Circunscrito este campo, partamos para o campo metapsicológico do sobressalto e do trauma, questão central da psicanálise atual, que busca encontrar um nexo explicativo para as chamadas patologias de déficit (Botella, C. & Botella, S., 2002; Levy, 2003; Magdaleno, 2008), que têm em sua etiologia marcas não representáveis que se expressam por descargas e por atos. Lançaremos mão da temática abordada poética e dramaticamente na canção e na carta de Sá-Carneiro para nos aproximarmos psicanaliticamente da questão do trauma e de sua metapsicologia.

Freud (1898/1976e) desde muito cedo interroga-se sobre os conteúdos representativos da angústia e não mais somente sobre suas apresentações. Inicialmente havia postulado que os sintomas das neuroses atuais (neurose de angústia, neurastenia e hipocondria) seriam expressões de conteúdos de atualidade, ou seja, um modo de funcionamento psíquico no qual a angústia era resultado da transformação direta da energia pulsional e não decorrente de conteúdos tornados inconscientes pelo recalcamento. A partir de 1898, Freud intui que, nas neuroses atuais, os sintomas eram mais que simples manifestações somáticas, mais que fenômenos puramente quantitativos, mas que os conteúdos representativos da angústia seriam corporais. Postula, então, que as neuroses atuais seriam decorrentes, não de uma descarga energética simples, mas sim uma representação da pulsão no real do corpo.

Esta nova proposição faz toda a diferença, sendo aquilo que, atualmente, nos permite estender o alcance da análise para além das patologias do recalque e das psicoses, já que as patologias de déficit não seriam processos puramente fisiológicos, mas sim um outro tipo de representação que estaria aquém do recalque primário, sendo, portanto, a manifestação de representações no real do corpo.

Já em 1896, na carta 52 enviada a Wilhelm Fliess, Freud (1896/1977) se debruçava sobre o mistério que envolve os registros mentais primitivos que se situariam topograficamente antes do sistema inconsciente, aquém das representações, e que na ocasião denominou de registro Wz, ou indicação de percepção. Seriam marcas perceptivas sem representação registradas no aparelho psíquico, tendo de ser, para alcançar estatuto de psíquico, ocupadas (besetzung) por representações. Estas marcas seriam as impressões de estímulos vindos do sistema perceptivo, portanto, do corpo, sem que tenha havido a possibilidade de representação. É a primeira tentativa que Freud faz de contextualizar metapsicologicamente o trauma psíquico como um impacto que atinge um sujeito não instrumentalizado psiquicamente para lidar com ela.

Freud posteriormente em sua obra vai dirigir sua atenção para a vertente da representação, centrando a etiologia das patologias no Complexo de Castração, em detrimento da vertente do Real (André, 1995), ficando a teoria do trauma em segundo plano em relação às teorias que se ocuparam dos mecanismos de defesa, principalmente do recalque. Este caminho tomado por Freud trouxe uma consequência importante para a prática clínica que, nos moldes propostos por ele, não consegue alcançar a estrutura das patologias que estão aquém da representação.

Para seguirmos esta discussão, faz-se necessário contextualizarmos aquilo que entendemos como início da formação do psiquismo humano e a estrutura da mente primitiva. Laplanche (1987) postula o recalcamento primário como determinante na criação do Eu–instância, que seria o correspondente do Ego definido por Freud (1923/1976a) em sua segunda tópica do aparelho psíquico. Para ele, em um primeiro tempo, não haveria ainda propriamente um Eu, mas uma consciência perceptiva primária, sensória e perceptiva e, portanto, ainda não discriminada enquanto unidade, nem tampouco como unidade separada do ambiente, que coincidiria com todo o indivíduo e, mais especificamente, com a periferia que o delimita. Corresponderia ao Ego corporal descrito por Freud (1923/1976a). Portanto, é só em um segundo momento que se estrutura o Eu enquanto instância psíquica, sendo o recalcamento originário a nova ação psíquica proposta por Freud (1914/1974d) que estabelece esta diferenciação.

Mas como se torna possível e necessário o recalcamento originário? É neste ponto que o inconsciente da mãe entra em cena, pois ela, ao exercer seu papel, não pode evitar marcar o filho com seu próprio inconsciente. Estas marcas são significantes enigmáticos (Laplanche, 1987), ou seja, significantes não verbais, verbais e comportamentais que a mãe propõe à criança e que são impregnadas de significações sexuais inconscientes. Por conterem essa carga sexual são transbordantes, não havendo representação para eles no psiquismo primitivo do bebê, sendo, consequentemente, traumáticos, desencadeando o processo defensivo que irá promover uma cisão. Antes do recalcamento originário, antes dessa clivagem que vai circunscrever uma subjetividade – o imaginário e o simbólico –, tudo é real.

Para Laplanche (1987), quando ocorre o recalque originário, no lugar dos significantes enigmáticos ficam os chamados objetos-fonte, que podemos facilmente aproximar ao conceito freudiano de representação-coisa (Freud, 1915/1974b), já que são os restos recalcados dos significantes enigmáticos. Indo um pouco além do postulado por Laplanche, podemos conceber que o traumático deixa também, atrás de si, além dos objetos-fonte, marcas não representáveis, que ficam de fora dos processos associativos e da possibilidade de pensamento. É nesse momento do processo que a capacidade da mãe faria toda a diferença, resultando o trauma ou em representações inconscientes, passíveis de entrar na cadeia associativa e no processo de pensamento, ou em marcas irrepresentáveis.

Freud em 1911 define o pensamento como a capacidade que o bebê desenvolve, movido pelo princípio de realidade, de adiar a descarga da pulsão (Freud, 1911/1969). Contudo, para que esse processo ocorra, é necessário que haja representações. Se juntarmos a isso a ideia de uma fase inicial autoerótica (Freud, 1914/1974d) em que não existe ainda um Eu-instância, na qual o que existe é um corpo anárquico1, podemos conceber uma fase inicial em que as precondições para o pensamento ainda não existem, existindo apenas um corpo que percebe os estímulos e os descarrega anarquicamente. Nesse momento inicial, cada parte do corpo é uma fonte de necessidade e um meio de descarga, e alguma ação psíquica tem de ocorrer para que esse caos anárquico inicial se organize e o pensamento possa ocorrer, tomando o lugar da descarga imediata regida pelo processo primário.

Nesse início existiria um caos, uma falta absoluta de qualquer fator organizador, a não ser algumas precondições herdadas geneticamente, que poderíamos chamar de heranças filogenéticas, mas que são insuficientes para dar conta da pressão pulsional interna e, principalmente, da carga pulsional do Outro. Nessa condição o psiquismo se vê invadido por um excesso desarticulador, um excesso para a qual não está preparado, e que tem efeito traumático (Freud, 1895/1974a, 1896/1976b, 1896/1976d).

Retomemos, pois, a teoria traumática de Freud, praticamente abandonada por ele quando escreve a paradigmática carta 69 a Fliess, na qual diz não mais acreditar em sua teoria traumática das neuroses (Freud, 1893/1977).

A situação originária do ser humano é o confronto daquele que ainda não fala (enfant), com o mundo adulto e com o desejo transbordante da mãe. Margareth Mead postula que o fato universal humano é que “há filhos que começam a ser fracos e pequenos, ao mesmo tempo em que se associam estritamente à vida adulta” e que, em função disso, “há um florescimento prematuro de sentimentos sexuais na criança” (citado por Laplanche, 1987, p. 97). Existe, portanto, na constituição do ser humano um problema representado pela distância entre o psiquismo adulto e o infantil.

Para Ferenczi (1933/s.d.), a situação originária necessária para tornar-se humano é o confronto inevitável entre a criança e o mundo adulto. Para ele, o mundo adulto se caracteriza por mensagens que interrogam a criança antes que ela as compreenda e às quais deve dar sentido e respostas. Haveria na criança uma potencialidade para entrar na linguagem adulta – potencialidade natural, instrumental e afetiva –, contudo, trata-se de uma linguagem que tem de ser desenvolvida. Apesar da justeza dessas observações de Ferenczi, Laplanche aponta para o fato que ele não dá o passo decisivo de levar em consideração o que chama de linguagem da paixão, ou seja, que a linguagem do adulto só é traumatizante na medida em que veicula um sentido dele mesmo ignorado, ou seja, na medida em que manifesta a presença do inconsciente sexual.

Em síntese a condição originária humana seria

a confrontação de um indivíduo cujas montagens somatopsíquicas situam-se predominantemente no nível da necessidade, com significantes que emanam do adulto, ligados à satisfação dessas necessidades, mas veiculando consigo a potencialidade, a interrogação puramente potencial de outras mensagens – sexuais. Essas mensagens enigmáticas suscitam um trabalho de domínio e simbolização difícil, para não dizer impossível, que necessariamente deixa para trás restos inconscientes. (Laplanche, 1987, p. 138)

É fato que o ser humano nasce profundamente desadaptado e só a duras penas consegue manter a homeostase interna, tanto fisiológica como psicológica. Seria um estado de pré-maturação no qual ocorre um confronto com tarefas de nível demasiadamente alto para seu grau de maturação. Essa pré-maturação pode ser dividida em dois níveis: uma pré-maturação adaptativa, ligada à sobrevivência, e outra sexual, relativa ao confronto com uma sexualidade para a qual a criança não tem recursos adequados disponíveis.

Trata-se de um verdadeiro desencontro que ocorre entre a via que percorre a criança e a que percorre a mãe. No nível da autoconservação a comunicação se dá no sentido da criança para a mãe, ao passo que no domínio sexual ela se dá no sentido inverso, ou seja, da mãe para o bebê. É nesse contexto que o conceito de apoio (Freud, 1915/1974c) deve ser pensado, já que fica patente a ideia de uma sexualidade que é introduzida na criança no momento mesmo que ela busca manter sua homeostase fisiológica e sua vida. Ao incorporar o objeto da necessidade, a criança se depara com o desejo, nesse momento tóxico, do Outro. Sobressalto e trauma.

Chegamos, pois, ao cerne do nosso problema: o sobressalto causado pelo desejo do Outro seria o fator gerador do trauma que funda o psiquismo, com áreas de representação e áreas de não representação psíquica.

Em 1932 Freud voltará a se ocupar da factualidade da sedução, sendo que, nesse momento, o pai perverso, principal personagem da sedução infantil nos primeiros anos da psicanálise, cede lugar à mãe na relação pré-edipiana. A sedução passa a ser entendida como consequência dos reais cuidados corporais dispensados ao filho pela mãe (Freud, 1932/1976c). Esta retomada é paradigmática, pois “nos faz recuar não só no tempo, pois se trata dos primeiros meses, mas também na categoria de realidade onde se devem situar os fatos de sedução” (Laplanche, 1987, p. 128). Foi observando aspectos que Freud deixou de fora de sua obra que Laplanche (1987) propôs uma teoria da sedução originária. Esta teoria considera a sedução como uma realidade efetiva pela qual, necessariamente, todo ser humano passa, e que tem um caráter, ao mesmo tempo, fundante e traumático para o psiquismo incipiente.

Para Ferenczi (1933/s.d.), o universo do adulto se caracteriza por mensagens que a criança não pode compreender. Contudo, segundo Laplanche (1987), Ferenczi, assim como Freud, deixa de levar em conta o lugar decisivo do inconsciente sexual da mãe nesse processo, o que o impede de concluir que a confusão de línguas só é traumatizante na medida em que veicula um sentido ignorado, opaco ao próprio adulto, ou seja, na medida em que manifesta a presença do inconsciente.

Assim, o cuidado materno é ao mesmo tempo fundante e traumático. O olhar materno é capturado pelo bebê, que deve se sentir desejado e atendido, mas não pode compreendê-lo completamente, já que ainda não está habilitado para traduzir a linguagem da paixão proposta pelo adulto. A mãe deve ser capaz de cuidar e desejar o bebê de um modo especial, com um olhar que possibilite que o traumático possa, ao mesmo tempo, ser fundante do psiquismo. Caso isso não ocorra, o contato mãe-bebê torna-se paralisante, o bebê se isola e ocorre uma perda da sensação de ser, com o consequente afastamento do mundo (Winnicott, 1952/2000). Bion utiliza o modelo do continente-contido e da rêverie materna para descrever esse contexto inicial em que a mãe deve ser capaz de receber as comunicações do bebê, metabolizá-las e devolvê-las de maneira que o bebê possa recebê-las de modo menos violento do que foram expulsas (Bion, 1962/1966).

Caso a mãe não possa refletir o bebê no seu olhar, o que é visto é o rosto dela, havendo uma ameaça de caos, a partir da qual o bebê, como defesa, organizará uma retirada ou não mais olhará (Winnicott, 1956/1975b). Se a mãe não puder refletir em seus olhos o próprio bebê, permitindo a complementaridade narcísica fundante, o bebê permanece no caos inominável, o terror sem nome descrito por Bion (1962), e estabelecem-se áreas não pensáveis.

A mãe suficiente boa (Winnicott, 1953/1975a), nestes termos, é aquela que pode contemplar, do modo mais completo possível, o requisito básico de poder espelhar no seu olhar o próprio bebê e suas necessidades. A função materna adequada implicaria nesse olhar desejante poder, em vez de impor o desejo da mãe, que seria excessivo para o psiquismo rudimentar infantil, refletir como um espelho o bebê como um todo (Winnicott, 1956/1975b), ou, em outras palavras, poder nomear o próprio desejo do bebê. O olhar da mãe, idealmente, deveria espelhar para o bebê o que ele é. Aquilo que o bebê não reconhece como seu é vivido como o infinito no rosto do outro (Levinas, 2008), portanto, traumático.

Em outras palavras, a função materna nesse momento fundante do psiquismo deve ser a de nomear para o bebê, de modo elaborado psiquicamente, as necessidades que o próprio bebê envia a ela. Seria, portanto, a capacidade da mãe de nomear a necessidade do bebê e, ao mesmo tempo, o conteúdo traumático de seu desejo que invade seus cuidados e seu olhar. A identificação do bebê com ele mesmo no olhar da mãe só pode ser efetivada por uma mãe que seja capaz de proceder a essa nomeação da massa bruta que constitui a imagem do bebê refletida em seu olhar. Assim, os significantes enigmáticos, nomeados pela capacidade de rêverie da mãe, transformam-se em representações inconscientes, ao passo que aqueles que marcam o bebê em estado bruto permanecem irrepresentáveis, tendo a descarga no real do corpo como única possibilidade de representação. Sempre que a criança busca nesse olhar da mãe, em seu rosto, uma referência integradora para si, acaba esbarrando no inconsciente desta, no infinito de seu rosto, o que imprime sobre ela os enigmas originários impensáveis.

Estrutura-se, ao final desse processo, um sujeito com um Eu-instância, em parte consciente/pré-consciente e em parte recalcado (Freud, 1923/1976a), e áreas de não representação, que seriam marcas sensórias provenientes do aparelho perceptivo, percebidas como sobressalto.

Inevitavelmente, nesse processo de procura por si mesma, a criança, ou áreas infantis do adulto, vão se confrontar com o rosto do outro que é, por si só, traumático. É com esse dilema que todo ser humano tem de se deparar para tornar-se humano: ao buscar satisfação de suas necessidades básicas, depara com o desejo do Outro que lhe é traumático, mas é desse encontro que pode emergir o humano em cada um. Nascemos com um destino que nos empurra para uma armadilha da qual não podemos escapar... A única saída possível é tornarmo-nos desejantes, cindidos na essência de nossos seres.

 

As cartas e o sobressalto...

Utilizamos o ritual de escrever cartas como uma metáfora que aproxima o ato de receber um envelope fechado que porta a intimidade do Outro, daquele das percepções do bebê das mensagens enigmáticas que chegam do ambiente e que o sobressaltam de maneira particular, portando um potencial traumático e criador ao mesmo tempo.

Desde o final do século XX, o hábito de escrever cartas vem perdendo seu lugar na cultura, assim como vários outros que circunscreviam um espaço de intimidade e de criatividade, sendo substituídos por outros, com ritmos e lógicas diversas. A velocidade e a eficiência são os valores que importam na atualidade. Nesta nova postura do homem junto aos outros, o que se perde é o potencial criativo do sobressalto, restando apenas o viés traumático. Atualmente as mensagens nos chegam em um ritmo acelerado e volumosamente, sem, digamos assim, o “envelope” que nos prepara e nos dá tempo de preparação para o que virá. As mensagens chegam sem envelope e impactam de modo bruto quem as recebe. O resultado é o trauma, sem possibilidade de representação, elaboração e criatividade, dando origem a áreas de déficit, que são a base etiológica de várias das chamadas patologias da contemporaneidade, que cresceram de maneira alarmante no mundo nas últimas décadas.

A carta é o modo de comunicação humana que, pela sua existência concreta e sensorial e pelo que contém de mensagens e sinais do Outro, mais do que qualquer outro porta em si a potencialidade do sobressalto criativo. Carrega em si o potencial de sobressalto e trauma, mas, por ter seu ritmo e seu ritual, permite que haja um tempo de preparação que a torna lugar de criatividade e sonho. Neste sentido as cartas são, assim como o olhar cuidador materno, uma necessidade humana com potencial de produzir uma continuidade criativa do ato de remeter-se ao Outro, encontrá-lo e estar junto, independentemente de onde esteja. O prazer em recebê-las e o sobressalto causado por sua presença física, palpável, sensível, delimita um campo da experiên cia humana que remete à essência do simbólico: a ausência na presença, mas, ao mesmo tempo, à essência da saudade: a presença na ausência. É nesse lugar da transicionalidade, da mensagem enigmática da presença-ausência do desejo do Outro que recebemos, e que sempre se receberam as cartas, este objeto da cultura, que se tornou objeto da necessidade do homem, fonte de apreensões, sobressaltos, alegrias.

Porque na incerteza
Eu meditava e dizia:
Será de alegria? Será de tristeza?
Quanta verdade tristonha ou mentira risonha
Uma carta nos traz.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Ronis Magdaleno Júnior
Rua Padre Almeida, 515/14
13025-251 – Campinas – SP
tel.: 19 3254-2103
E-mail: ronism@uol.com.br

Recebido: 01/02/2010
Aceito: 15/02/2010

 

 

* Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, doutor em Ciências Médicas, pesquisador colaborador do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Unicamp, membro do Núcleo de Psicanálise de Campinas e Região.
1 Anarquia, do grego anarkhía, sendo uma palavra derivada de arkhía, termo que significa comando, poder, autoridade, precedido por um prefixo negativo “an”, que indica que ninguém exerce essa função de poder, comando ou autoridade.

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