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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.50 São Paulo jul. 2010

 

EM PAUTA - CARTAS

 

Cartas de Winnicott

 

Winnicott’s letters

 

 

Cecília Luiza Montag Hirchzon*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientae

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto tem como fundamento um livro de Robert Rodman a respeito das cartas de Winnicott, endereçadas em sua maior parte a analistas contemporâneos. Através dessa correspondência vai se apreendendo o cenário psicanalítico da época. Dentro dele vão surgindo afinidades com alguns analistas, posições polêmicas com outros, comparações entre as várias abordagens e finalmente a circunscrição de sua própria contribuição. A partir dessas cartas vão se delineando características pessoais do autor, que revelam o seu comportamento multifacetado e frequentemente paradoxal. No final, uma citação de Merleau-Ponty põe em evidência o fato de que essa obra só poderia corresponder à vida dessa figura humana única que foi D. W. Winnicott.

Palavras-chave: Vida, Obra, Autenticidade, Reconhecimento.


ABSTRACT

This text is based upon a book by Robert Rodman about Winnicott’s letters addressed, for the most part, to contemporary analysts. Through this correspondence, one apprehends the epoch’s psychoanalytical scenery, where gradually emerge his affinities with some analysts, polemic positions with others, comparisons between different approaches and, eventually, the circumscription of his own contribution. From these letters, the author’s personal characteristics are outlined, revealing his multifaceted and often paradoxical behavior. At the end, a quotation by Merleau-Ponty enhances the fact that to this work could only correspond the life of this unique human figure who was D. W. Winnicott.

Keywords: Life, Work, Authenticity, Recognition.


 

 

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições! Ninguém me diga “vem por aqui”.
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou, Não sei para onde vou
– Sei que não vou por aí!

(José Régio. Poemas de Deus e do Diabo, 2005)

 

Em um misto de busca de informação, curiosidade e talvez até um tanto de voyeurismo, fui à procura da correspondência de Winnicott para conhecer quais os interlocutores a quem ele se dirigia, quais as suas demandas, com que objetivos ele escrevia, seu estilo e principalmente quem era a pessoa que se expressava e existia através de suas cartas.

O livro sobre a sua correspondência em que me baseei foi O gesto espontâneo: D. W. Winnicott (1990), escrito por Robert Rodman que, com a permissão de Clare Winnicott, teve acesso às cartas pela primeira vez em 1958. Mas foi só em 1984 que pôde iniciar mais detidamente o exame desse material que fora enviado para a biblioteca do New York Hospital Cornell Medical Center. Mais tarde foi descoberta outra coleção de cerca de 825 cartas. Para esse livro foram escolhidas principalmente aquelas relacionadas à sua obra, à sua teoria e ao cenário psicanalítico da época. A maior parte delas é dirigida a outros analistas que participavam de reuniões ou apresentavam trabalhos na Sociedade de Psicanálise.

O meu primeiro olhar foi de surpresa, seguido de interesse e admiração por esta pessoa genuína que se revela a cada passo, em todo o seu ser.

O que de início se evidencia é a total coerência entre a teoria e o ser humano inconfundível que se faz presente em todas as suas produções, em todas as suas atitudes.

A leitura dessas cartas é uma experiência viva de comunicação entre o autor e o leitor, que interage e se envolve em uma linguagem coloquial.

Ao comentar os diferentes autores, Winnicott vai tecendo comparações com os seus conceitos, circunscrevendo-os, e dessa forma tornando mais clara e acessível a sua contribuição teórica.

Elogia os trabalhos em que os analistas contribuem com suas próprias concepções, estimulando-os a ser eles mesmos. Paralelamente preocupa-se com a “confusão na Sociedade, quando vários termos são usados como se fossem plenamente aceitos”, salientando a necessidade “de descobrir uma linguagem comum”. Com esse intuito, por exemplo, escreve a Donald Meltzer: “a introdução da palavra inveja, nesse ponto das origens da agressividade, não acrescenta absolutamente nada, mas confunde a questão ao atribuir ao recém-nascido esta coisa muito complexa que designamos como inveja” (p. 134).

Mostra-se crítico, algumas vezes, com suas próprias colocações (em carta a Willi Hoffer): “manifestei um profundo desgosto por tê-la escrito, já que se trata de uma carta inteiramente ruim” (p. 26); assume conscientemente características suas a David Rapaport: “sou daquelas pessoas que se sentem compelidas a trabalhar à sua própria maneira e a se expressar na sua própria linguagem” (p. 47).

Essas qualidades não implicam, no entanto, falsa modéstia, sabendo reconhecer o próprio valor e reivindicando seus direitos, como em uma carta endereçada a David Henderson: “Nesse caso acho que o senhor poderia ter mencionado o meu nome no lugar do de (Leo) Kanner ... não entendo por que devemos procurar nos EUA algo que existe em nosso país” (p. 56).

A situação institucional e o risco de idolatria são temas frequentes de suas preocupações, como quando alerta Melanie Klein: “Estou preocupado com essa estrutura que poderia ser chamada kleiniana. Suas ideias só viverão na medida em que forem redescobertas e reformuladas por pessoas originais, dentro e fora do movimento psicanalítico” (p. 31). Embora considere a necessidade de um grupo que a acolha, sugere: “Você é a única que pode destruir essa linguagem chamada doutrina kleiniana e kleinismo”; acrescentando em tom sarcástico: “dá a impressão [de] que existe uma organização paranoica entre os guardiães do seio bom internalizado” (p. 24).

A crítica mordaz manifesta-se também no confronto direto com profissionais da estatura de Herbert Rosenfeld, ao afirmar sua opinião a respeito da análise de psicóticos, área em que este analista foi um dos pioneiros: “o senhor não foi muito longe em sua colaboração”, acrescentando: “vejo-me num desacordo absolutamente total com a tendência geral de seu ensaio” (p. 39).

O comportamento por vezes impiedoso com alguns autores não o impede que em outros momentos reconheça o talento, por exemplo, de Bion: “penso em você como o grande homem do futuro na Sociedade Britânica de Psicanálise” (p. 79). Enfático no elogio, salienta a singularidade de sua obra: “Quero que você saiba o quanto valorizo o trabalho que você vem fazendo e apresentando em seus ensaios sobre o pensamento. Como muitas outras pessoas, eu os considero difíceis, embora extremamente importantes” (p. 115).

Nas situações em que se sente excluído, nada o impede de pedir e até mesmo implorar por um olhar sobre sua contribuição à cena analítica, daqueles que, em grande parte do tempo, não conseguem (ou não querem) reconhecer a originalidade de sua obra.

É principalmente na relação com as figuras míticas – Anna Freud e Melanie Klein – que ele luta para ser escutado. Não abandonando de modo algum suas convicções, não prescinde ao mesmo tempo da necessidade de reconhecimento.

Em carta a Anna Freud, escreve: “Sendo um ser humano, sinto que necessito de uma audiência de ao menos uma pessoa para que eu possa orientar a apresentação de minha ideia” (p. 82). Dirigindo-se a Melanie Klein, pede um movimento dela em sua direção: “Trata-se de um gesto criativo e não posso estabelecer relacionamento algum através desse gesto se ninguém vier ao meu encontro” (p. 30).

Tendo se desenvolvido em um “grupo psicanalítico e conhecido todas as suas pressões e tensões internas”, admite conhecer “a psicanálise apenas como uma ciência em luta” (p. 168), o que revela a pulsante e frequentemente explosiva atmosfera institucional daquele período.

Embora Winnicott tivesse sido médico do Departamento Infantil do Instituto Britânico de Psicanálise durante 25 anos, presidente durante dois períodos de três anos (1956-1959 e 1965-1968), e secretário científico e de treinamento por períodos de três anos (p. XV), a oposição à sua teoria foi intensa; isso não fez, felizmente para nós, com que ele renunciasse às inovações peculiares de seu pensamento: “não me importo que demonstrem que estou errado, nem que me critiquem ou ataquem. Mas fiz um trabalho importante, com o suor do meu rosto psicanalítico (isto é, clinicamente), e recuso-me a ser eclipsado” (p. 126).

Muitas vezes, em sua franqueza beirando a irreverência, passa por cima de qualquer formalismo escrevendo a altas patentes, como o Primeiro-Ministro Chamberlain, ou a Lord Beveridge, autor de um projeto sobre socialização da medicina, ao qual se opunha por achar que o controle dos médicos através do Estado destruiria o melhor da profissão (p. XXII). Na época, Winnicott escrevia o seu importante ensaio “Ódio na contratransferência” e, em uma postura de crítica frontal ao ministro, afirma: “devo ser honesto comigo mesmo e expressar-lhe o ódio que surge naturalmente em mim” (p. 7).

Com a sensibilidade à flor da pele, Winnicott recusa um convite para ocupar o cargo de médico interno em um hospital, dizendo não suportar o sofrimento de crianças hospitalizadas; declara então: “vou me concentrar em meu trabalho de ambulatório e em não me tornar insensível com a finalidade de ser eficiente” (p. XVII).

A sua participação ativa como cidadão levantando questões humanitárias mostrava-se em cartas a parlamentares e também a jornais, como o New Society e mais frequentemente ao Times, a respeito de temas como o perigo da transformação de médicos em funcionários públicos, a relação de profissionais da saúde com trabalhadores, interferência de voluntários acobertados por apoio governamental, delinquência, crime, TV patrocinada etc. Não se limita a criticar, mas também formula sugestões importantes em assuntos como administração prisional, internatos experimentais para crianças e adolescentes sob supervisão psicanalítica, inclusão de psicologia no currículo médico e outras do gênero.

Enfatiza também em palestras radiofônicas sua preocupação com a democratização do conhecimento, tornando-o acessível a um público amplo.

Avesso à comunicação sofisticada, pode valorizar uma descoberta, como na obra de Wisdom (em carta a Fordham), mas isso não o impede de comentar ironicamente: “talvez, não fosse preciso ir tão longe quanto as praias de Alexandria ... ao invés, ele podia ter olhado nos quintais de Londres” (p. 65).

Preocupado com a rigidez da psicanálise ortodoxa, alerta: “no todo, parece que não se disse aos estudantes que todos os analistas falham, que todos tem casos difíceis” (p. 155).

Com abertura para outras formas de conhecimento, pode se perguntar: “não é horrível pensar que o Ocidente tenha apresentado a bárbara terapia eletroconvulsiva a uma comunidade que estava se dando tão bem com curandeiros, que tem uma disposição mental tão refinadamente voltada para o psicológico, ainda que um tanto mágica e não científica?” (p. 131).

Este é Winnicott: analista criador de uma teoria que representa um marco fundamental no desenvolvimento da psicanálise.

Este é Winnicott: criativo, arrojado, franco, irreverente, humilde, sedento de reconhecimento, sensível, voltado para problemas sociais, libertário e sobretudo fiel a si mesmo.

A respeito desse autor e desse autor e dessa obra, poderíamos dizer, com Merleau-Ponty: “A verdade é que esta obra exigia esta vida” (Merleau-Ponty, 1975, pp. 303-316).

Penso que o texto acima descrito representa para mim uma experiência de “jogo do rabisco”, no qual as cartas de Winnicott se apresentaram como uma expressão autêntica e espontânea do seu ser. Através dessa correspondência e do meu olhar, acredito que fomos (as cartas e eu) desenhando, garatujando, e construindo um retrato dessa figura humana intensa na vida e na criação.

 

Referências

Merleau-Ponty, M. (1975). Dúvida de Cézanne. In M. Merleau-Ponty, Textos escolhidos (Vol. 41, pp. 303-316). Rio de Janeiro: Abril Cultural. (Coleção Os Pensadores).         [ Links ]

Rodman, R. (1990). O gesto espontâneo: D. W. Winnicott (L. C. Borges, trad.). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Cecília Luiza Montag Hirchzon
Rua Carlos Sampaio, 158
01333-020 – São Paulo – SP
tel: 11 3288-7654
E-mail: cecilu@bol.com.br

Recebido: 10/04/2010
Aceito: 19/04/2010

 

 

* Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientae.

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