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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.50 São Paulo jul. 2010

 

EM PAUTA - CARTAS

 

A carta de alforria na conquista da liberdade1

 

The letter of liberty in the manumission process

 

 

Eliana Rea Goldschmidt*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Os registros de alforrias da cidade de São Paulo estão no Arquivo Público do Estado, Segundo Cartório de Notas da Capital, Escrituras, Livros de Notas (1742-1804). Estes documentos oferecem informações importantes sobre as formas de manumissão naquele período, revelando que a liberdade não era concedida facilmente e muitos senhores continuavam a ter seus ex-escravos sob o seu domínio.

Palavras-chave: Carta de alforria, Testamento, Registro notarial.


ABSTRACT

The manumission registries for the city of São Paulo are at the Arquivo Público do Estado, Segundo Cartório de Notas da Capital, Escrituras, Livros de Notas (1742-1804). These documents provide significant information on the forms of manumission in that period, revealing that liberty was not easily given and many masters continued to have their former slaves under control.

Keywords: Letter of liberty, Will, Manumission registries.


 

 

A carta de alforria é inegavelmente um símbolo de libertação. A figura do senhor – ou senhora – declarando o escravo livre do seu domínio é marcante. No entanto, essa não era a única maneira de dar fim ao cativeiro e a posse da carta ou do escrito de liberdade não bastava para garantir o término da escravidão. Os registros de alforrias da cidade de São Paulo evidenciam a complexidade presente na manumissão de escravos de origem africana no período colonial.

A carta de alforria era geralmente concedida por um titular, o senhor ou a senhora, que a redigia de próprio punho. Entretanto, se um casal fosse proprietário do escravo, a concessão partiria do marido e da esposa conjuntamente. E, no caso de o titular ser analfabeto, alguém seria encarregado da escrita. Além disso, era preferível conferir a manumissão a cada escravo individualmente e o libertador não se esquivava de relacionar os motivos que o levavam a tal gesto, como enumerou Dona Maria de Azevedo Silva ao alforriar seu escravo Raimundo: “o que faço em razão dos bons serviços que me tem feito, e por ser igualmente meu afilhado, e pelo mesmo amor que lhe tenho, como por serviço de Deus, e por lhe fazer esta esmola” (AESP-E13428, 1796, p. 18).

Outro procedimento bastante comum era o titular referir, dentre as disposições de sua última vontade, as alforrias que seriam concedidas após a sua morte. O testamenteiro do padre Inácio de Azevedo Silva, por exemplo, assim informou sobre uma certa Antonia: “por agradecimento dos seus grandes e bons serviços”, o falecido “deixou declarado no seu testamento esta negra Antonia crioula solteira por forra” (AESP-E13431, 1804, p. 76v.). No entanto, nenhuma das duas formas assegurava que o escravo havia sido libertado.

O contrário ocorria nas alforrias registradas no Cartório de Notas. Quer comparecendo o titular ao escritório do tabelião, quer deslocando-se o tabelião à casa do titular, ao ser efetuada a escritura de liberdade o término da escravidão era oficialmente garantido. E assim procedeu a senhora Catarina Maria de Jesus quanto à sua “mulatinha” Matildes, uma vez que “a havia criado com amor e prometido dar-lhe alforria” (AESP-E13422, 1781, p. 30). Além disso, o registro notarial também permitia a oficialização de alforrias que haviam sido concedidas anteriormente, por carta ou testamento, mediante a apresentação do documento. Proporcionava igualmente a oportunidade de validar a configuração definitiva da libertação.

O senhor de Lauriano, Gabriel Domingos de Ramos, por exemplo, deu-lhe a liberdade “por um escrito de mão”. Mandou proceder ao registro e, “querendo evitar dúvidas futuras”, assim fez constar na ocasião: “a fim de que o dito mulatinho não seja embaraçado nem tolhido da dita liberdade, e poder ir, para onde muito lhe parecer e tomar o estado que mais lhe convier, pela presente Escritura ratifica a dita liberdade” (AESP-E13431, 1803, p. 36v.). Já uma certa Maria apresentou ao tabelião um documento no qual a senhora Ana da Silva de Oliveira comunicava a sua decisão: libertá-la, “ficando esta livre e forra desde o tempo do meu falecimento”. Para garantir o cumprimento do seu desejo, a libertadora ordenou que qualquer outra determinação fosse derrogada, “ficando esta valendo para o dito efeito como disposição testamentária por Escritura Pública” (AESP-E13422, 1783, p. 124).

Conferida por carta, testamento ou registro notarial, a alforria poderia se espelhar no ideal de libertação e ser fruto unicamente da generosidade do senhor. Entretanto, nem sempre era tão simples o escravo se transformar em forro.

 

O escravo como parte do patrimônio

A alforria era um ato que não podia ignorar o valor do escravo para o patrimônio. E o sistema de transmissão de bens vigente na colônia fazia com que um cativo passasse a pertencer a um senhor não apenas através da compra e do nascimento, mas também através do dote e da herança. Assim, no âmbito familiar, aqueles que não tivessem sucessores disporiam de maior autonomia para alforriar, como a senhora Maria da Assunção Fernandes. Declarou quanto ao seu escravo Francisco: “em razão de o haver criado, e pelo muito amor que lhe tem e bons serviços e fidelidade que do mesmo tem recebido e está recebendo, e igualmente por ser seu afilhado de Batismo o forrava”. Não deixou, porém, de ressaltar: “pois ela não tinha herdeiros forçados que se possam opor a esta sua vontade” (AESP-E13429, 1798, p. 7v.). Caso contrário, a intenção do senhor deveria se conciliar com os interesses dos sucessores e a manumissão, para ser válida, exigia que o libertador repusesse o justo preço do escravo ao monte ou retirasse o seu valor da parte dos bens que poderia dispor ao bel-prazer, a “terça”. Mesmo que isso só ocorresse por ocasião dos inventários e partilhas (Goldschmidt, 1989, p. 36).

O Sargento-Mor Francisco Xavier de Aragão Sarmento e sua esposa Gertrudes Maria da Encarnação, por exemplo, afirmaram: “eles haviam conferido liberdade a um seu rapaz crioulo de nome Marcelino filho de Joana Mina que haviam recebido em dote quando eles outorgantes se casaram”. Entretanto, tendo eles obtido “de seu sogro e pai em dinheiro de contado a quantia de 51$200 réis valor e importância do dito liberto”, decidiram que “desde já para sempre tiravam de seus herdeiros e sucessores todo o domínio e direito senhorial que no dito crioulo tinham” (AESP-E13431, 1804, p. 96). Por sua vez, Dona Maria Tereza do Amaral, ao dar “plena liberdade” à escrava Esperança em consideração aos “grandes serviços, fidelidade, e amor” com que ela criara seus três filhos, prestou o seguinte esclarecimento: “a dita escrava me ficou pertencendo no meu formal de partilhas na meação que me tocou por falecimento de meu marido” e o seu valor, a quantia de 7 doblas (1 dobla = 12$800 réis), “se levará em conta na minha terça por minha morte” (AESP-E13430, 1799, p. 14).

Tomar os cuidados necessários para não causar prejuízo aos herdeiros assegurava o sucesso da libertação, e assim fizeram Bento Ribeiro Nogueira e sua esposa Maria Martins de Araújo. Afirmaram: “por termos recebido da nossa escrava Joana mulata, que foi nossa criação, a quantia de 100$000 réis, e pelo muito amor que lhe temos, e bons serviços”, foi concedida a alforria. Entretanto, tiveram uma precaução: “quando os nossos herdeiros ponham alguma dúvida sobre o preço ser diminuto, queremos que em tal caso saia o excesso de nossas terças para que tenha em todo caso efeito a sobredita liberdade” (AESP-E13431, 1803, p. 66).

 

O justo preço do escravo

Respeitados os direitos de sucessão do patrimônio familiar, poderiam os senhores conceder as alforrias que desejassem. E o justo preço do escravo, segundo o costume, seria o seu valor no mercado, como informou Dona Maria Frosta Miquelina de Araujo e Azambuja ao libertar Joaquim, oficial de alfaiate: “recebi do mesmo escravo a quantia de 102$400 réis produto de sua avaliação” (AESP-E13430, 1799, p. 23). Já outro escravo foi avaliado em 153$600 réis mas sua senhora, Dona Ana Eufrosina da Cunha, relatou ter auferido mais: “por mão do dito mulato recebi 200$000 réis para sua alforria” (AESP-E13423, 1785, p. 44v.). Por outro lado, havia senhores que aceitavam menos, como o padre João Antunes Cordeiro. Referindo-se à escrava Quitéria, explicou a razão de conceder a liberdade a ela e aos seus filhos: pelos “bons serviços que me tem feito e também por me ter dado parte do dinheiro do seu valor” (AESP-E13431, 1803, p. 39v.).

Desde que agissem razoavelmente, não era vetado aos senhores avaliar o próprio plantel e uma certa Tereza Paula de Jesus Fernandes assim alforriou sua escrava Gertrudes: “por contribuir e fazer-me pagamento do seu valor que é 102$400 réis que lhe arbitrei” (AESP-E13422, 1783, p. 122v.). A mesma senhora declarou quanto à “mulatinha” Maria: “por contribuir, e fazer-me pagamento do seu valor, lhe arbitrei em 25$600 réis para sua liberdade” (AESP-E13422, 1783, p. 178v.). Tampouco eram proibidos os acordos, como o que fez Gertrudes Maria de Jesus. Deu a alforria à sua escrava Maria nos seguintes termos: “por dela receber o produto de seu valor em que nos justamos” (AESP-E13430, 1799, p. 20).

Independentemente do preço fixado, a vontade do senhor era preponderante. De fato, a libertação só seria obtida por via legal – sem levar em conta a vontade do senhor – nas seguintes situações: casamento com escrava do próprio plantel, reconhecimento de paternidade de filho tido com cativa, encontro de diamante de vinte quilates ou mais, denúncia de sonegação de diamantes praticada pelo senhor, denúncia de extravio ou contrabando de pau-brasil. Afora tais casos, a não ser que o escravo conseguisse uma graça concedida pela Coroa, nenhuma autoridade poderia obrigar o senhor a dar a alforria se essa não fosse a sua intenção. Mesmo que o cativo oferecesse dinheiro suficiente para comprá-la (Silva, 1994, p. 42).

 

Configuração do pagamento

O dinheiro “de contado” ou seja, à vista, era a forma de pagamento predominante, mas havia senhores que aceitavam receber em ouro o valor do escravo. Um certo Agostinho Gomes Ferreira e sua esposa Rita Maria de Jesus obtiveram 100 oitavas de ouro pela cativa Efigênia (AESP-E13421, 1779, p. 45v.). Muito mais exigiram João Barbosa Braga e sua esposa Antonia Maria da Conceição pelo sapateiro Joaquim: 150 oitavas de ouro (AESP-E13422, 1784, p. 194v.). É inegável o valor mais alto alcançado por escravos com aptidões. Embora tivessem de pagar mais ao senhor para conseguir a alforria, estavam mais habilitados para angariar o dinheiro.

Outro procedimento aceitável era parcelar o pagamento e um certo Agostinho Delgado de Arouche libertou sua escrava Rita, de cinquenta anos de idade, e explicou os motivos: “tanto por haver dado por si 30$000 réis, a saber 25$600 réis que já recebi em dinheiro de contado e 4$400 que me fica devendo, como por ter dado de mamar a dois filhos meus” (AESP-E13422, 1781, p. 64). Já o senhor Inácio da Costa concordou que sua escrava Inácia fosse “pagando conforme puder”, no decurso de seis anos, os 80$000 réis estipulados para a sua libertação. Além disso, “para ajuda de sua liberdade”, lhe consignou dois dias da semana “para trabalhar para si” e os mais para ele, “até acabar de pagar os ditos 80$000 réis” (AESP-E13425, 1791, p. 58). Tal arranjo remete à coartação, modalidade de alforria paga na qual o “escravo seria beneficiado se pagasse determinada quantia previamente determinada, dividida em parcelas que podiam ou não ser fixadas de antemão” (Souza, 2000, p. 281).

O escambo também era uma forma possível de pagamento, considerando-se que a substituição de um escravo por outro não iria trazer danos ao patrimônio familiar. E assim se pronunciou o senhor Braz Afonso Esteves: “demos liberdade à nossa escrava crioula por nome Gertrudes de quem em sua satisfação da mesma recebemos ao passar desta uma escrava por nome Rosa” (AESP-E13430, 1779, p. 16).

As crianças escravas dependiam de quem lhes pagasse pela liberdade e o baixo preço incentivava os benfeitores, como parentes de sangue ou espirituais. Assim a senhora Feliciana Franca de Camargo explicou a razão de alforriar José aos dois meses de idade: “por ter recebido de sua avó Ana Maria 12$800 réis que me deu de seu valor” (AESP-E13424, 1790, p. 40). Pela mes ma quantia Dona Maria Pinta da Silva libertou o pequeno Francisco, de dez dias, obtendo-a “por mão do padrinho do dito crioulinho” (AESP-E13431, 1803, p. 31). Já os cativos adultos podiam contar com benfeitores, ou não. No segundo caso, havia uma diferença se um senhor afirmasse simplesmente ter libertado uma escrava por ter recebido “da mão” dela 8 doblas em dinheiro (AESP-E13424, 1790, p. 49v.) ou afirmasse ter recebido “da mão” do escravo 8 doblas em dinheiro “pela razão dita de se forrar com o seu próprio dinheiro” (AESP-E13419, 1754, p. 75): a convicção de que o último tirara a importância do seu pecúlio.

 

Condições para a alforria

Não só as avaliações pautavam a conquista da liberdade. A alforria poderia estar atrelada a várias exigências, sendo a principal delas prestar serviços até a morte do libertador. A senhora Joana Rosa, por exemplo, alforriou seu escravo Antonio, oficial de carpinteiro, desde que ele “a servisse e tratasse todo o tempo durante sua vida” (AESP-E13430, 1799, p. 48v.). Por sua vez, Francisco Correa Vasconcellos libertou a escrava Rita caso esta assumisse os seguintes compromissos: “de me servir enquanto minha vida; e de toda a produção que ela tiver enquanto eu viver serem meus cativos” (AESP-E13428, 1797, p. 54). Já Dona Francisca Maria Xavier de Matos planejou sua vida de maneira a ser servida por quatro gerações de mulheres do seu plantel. Ao alforriar Ana Maria, e juntamente seu marido e seus filhos Tomásia e Caetano, explicou: o fazia “pelos bons serviços que os ditos me tem feito”. Não se esqueceu de enaltecer a dedicação que recebeu da “defunta mãe” e os cuidados dispensados pela avó de Ana: “me alimentou com seu leite quando fui criança”. Mesmo assim, impôs: “com condição porém que me servirão todos como escravos até a minha morte” (AESP-E13430, 1800, p. 86).

A condição de prestar serviços até a morte do libertador poderia se estender a outros parentes dele. A esposa era especialmente lembrada, e o senhor Bento Ribeiro Nogueira, por exemplo, determinou sobre a cativa Joana: “durante minha vida é minha escrava”, porém “por minha morte a declaro forra e liberta de toda escravidão com cláusula que se minha mulher sobreviver será obrigada a estar na sua companhia servindo-a como até agora até o seu falecimento” (AESP-E13430, 1799, p. 12v.). Já a senhora Maria Correa de Meira foi mais sutil quanto à sua escrava Josefa: “resolvi de minha livre vontade a deixá-la logo depois do meu falecimento forra e liberta”. Ao lembrar-se de um certo Manoel da Costa, acrescentou: “somente com a condição voluntária de acompanhar ao sobredito meu enteado durante também a sua vida” (AESP-E13431, 1804, p. 70v.).

A vinculação da alforria à morte do libertador trazia uma discrepância entre o momento da concessão da liberdade e o da sua disponibilidade. E alguns senhores deixaram claro o receio de ter o seu tempo de vida abreviado pelo escravo, como um certo Cosme Damiano de Figueiredo ao condicionar a libertação de Gracia ao seu falecimento, com a seguinte advertência: “quando ela por ingrata use comigo alguma crueldade não valerá a tal verba” (AESP-E13424, 1790, p. 63). Na verdade, a legislação admitia que alforrias fossem revogadas em casos de ingratidão por parte do beneficiado, a saber: cometer contra o libertador injúrias graves ou ferimentos, atentar contra a sua fazenda e vida e, ainda, não o socorrer em caso de necessidade ou fome (Silva, 1994, pp. 41-42).

 

Variedade de exigências

Nada impedia os senhores de impor alguma condição para libertar seu escravo, mesmo tendo ocorrido o pagamento. O Capitão Manoel de Oliveira Carvalho, por exemplo, havia alforriado três mulheres com a exigência de que o servissem durante a sua vida. No entanto, cada uma delas havia lhe proporcionado “o seu produto pela avaliação em que foi avaliada” (AESP-E13422, 1781, p. 79). Mesmo tendo recebido “100$000 réis em moeda corrente”, Manoel José da Encarnação concedeu a alforria à sua escrava Joana com a condição dela “acompanhar a ele libertante e a seu filho” enquanto vivessem (AESP-E13428, 1797, p. 54v.).

Já Joaquim da Silva de Siqueira libertou um casal exigindo que o servisse até a sua morte, declarando: assim fez “por me ter dado a maior parte do seu valor” (AESP-E13422, 1781, p. 67). E os senhores Joaquim de Almeida Homem e sua esposa Joana Leme concederam a liberdade para sua escrava Inácia nos seguintes termos: ela “nos serviria sempre com a mesma sujeição durante nossas vidas”, mas ficava “de hoje para todo o sempre por forra e liberta de todo o cativeiro” por ter oferecido “a quantia de 38$400 réis em dinheiro corrente deste Reino e um cavalo em preço de 19$200 réis” (AESP-E13421, 1779, p. 57).

O escambo de escravos também poderia ser acompanhado de exigências, como mostra o acontecido com Vitorina, menina de nove anos de idade “pouco mais ou menos”. Um certo Luiz Cardoso de Siqueira, desejando alforriá-la “em razão de amor e criação”, assim declarou: “tocou a meu filho Pedro Cardoso uma mulatinha de nome Vitorina” e “fiz troca com outra mulatinha de nome Gertrudes” com a condição de a alforriada “me acompanhar e servir durante minha vida” (AESP-E13430, 1800, p. 94). O frei Marcelino da Encarnação relatou o mesmo procedimento: “recebi da mão da mulata Paula minha escrava uma negra do gentio de Guiné por nome Ana a qual comprou com seu dinheiro adquirido pelas suas agências”. E explicou o propósito de Paula com tal compra: “para efeito de dar por si para lhe passar a dita Carta de Liberdade”. Contudo, o frei fez a ela a seguinte ressalva: “me servir durante a minha vida em tudo em que eu a ocupar de seu ofício assim de renda como costura e por minha morte ficará livre” (AESP-E13418, 1743, p. 138).

Nem sempre as obrigações impostas ao libertado expiravam juntamente com o senhor. Os alforriados poderiam ainda ter de responder pelos rituais fúnebres do libertador, e a senhora Mariana da Cunha, viúva, contava com os préstimos de seu escravo Custódio nos planos material e espiritual. Determinou que o dever dele era “servir e andar em sua companhia” enquanto fosse viva e, por sua morte, ordenou: ficava obrigado a “assistir o dito mulato com todo o dinheiro que for preciso para hábito e seu enterramento e mandar dizer uma capela de missas pela alma dela outorgante” (AESP-E13421, 1779, p. 39). Tais exigências eram especialmente úteis quando se tratasse de uma mulher de “poucos e limitados bens”, solteira, com pais já falecidos, como era Antonia Barbosa. Deixou seu escravo Agostinho “forro e liberto” por sua morte e, além de obrigá-lo a mandar dizer em sua intenção dez missas dentro de um ano, impôs uma incumbência impalpável:“se lembrar de minha alma em mais rezas que quiser e puder” (AESP-E13425, 1791, p. 2v.).

Além destes encargos, o libertado também poderia ficar responsável perante os credores após a morte do senhor, como determinou um certo Antonio Pires Rebello ao alforriar Policarpo: “pelos bons serviços que tenho dele e amor com que me trata passo-lhe esta Carta de Liberdade somente com obrigação de me servir enquanto a minha vida, como meu escravo” e “por minha morte será obrigado a pagar as dívidas que eu tiver e deixar declaradas”. Em tempo: não se esqueceu de exigir que providenciasse a sua sepultura e também o obrigou a mandar dizer quarenta missas por sua alma (AESP-E13428, 1797, p. 101).

 

Uma via de mão dupla?

Ficou patente que nem sempre o escravo libertado do cativeiro havia conquistado a sua liberdade. A alforria por carta, testamento ou registro notarial não significava necessariamente o fim das obrigações do escravo para com o libertador. Por outro lado, quando cessariam as dos senhores? Certamente os ensinamentos do padre jesuíta Jorge Benci, que resumiu as obrigações dos senhores no governo da escravaria em apenas três palavras: pão, correção e trabalho, não eram seguidos por todos (Benci, 1700/1977, p. 213). Havia quem conferisse mais ao seu plantel e o momento da alforria tornava visível esta preocupação.

O senhor poderia vender um escravo com a exigência de ele ser alforriado mediante o pagamento em determinado prazo, e assim fez Agostinho Delgado de Arouche. Declarou ter vendido Escolástica ao seu filho, o Dr. José Arouche de Toledo, “por preço e quantia de 30$000 réis” a serem pagos no tempo de três meses, e impôs: “com a condição de o dito meu filho libertar a dita mulata do cativeiro em que vive passando-lhe carta de alforria” (AESP-E13422, 1781, p. 50). O sucesso que tais arranjos poderiam alcançar pode ser comprovado pelo relato do casal Antonio Pinto da Silva e Maria Tereza de Jesus quanto a Antonia: “a dita escrava foi comprada com a condição de que recebendo nós a dita importância de 83$200 réis”, a serem pagos no tempo de um ano, “seríamos obrigados a passar-lhe carta de liberdade”. Como o valor foi entregue dentro do combinado, afirmaram: “por isso desde hoje e para todo o sempre lhe damos a presente Carta de Liberdade” (AESP-E13424, 1790, p. 32v.).

Para alguns senhores não bastava conseguir a libertação, era preciso conferir ao escravo o suporte necessário para seguir o seu destino como forro. E assim fizeram Bento Ribeiro Nogueira e sua esposa Maria Martins de Araújo ao alforriarem Maria, “mulatinha” de oito dias: “mandamos por no assento de seu batismo por forra por termos recebido de seu padrinho Francisco Quaresma 19$200 réis por sua liberdade”, aceitando tal venda “com condição que o dito a mandasse criar, que atendendo a esta condição foi que tão somente ajustamos e recebi a dita quantia” (AESP-E13430, 1799, p. 19). Também se destacou nesse particular a senhora Ana Venância da Conceição Veloza. Libertou Miguel, “mulatinho” de quatro anos, e exigiu: “com a condição e cláusula porém de que se há de conservar em meu poder debaixo da mesma sujeição em qual até agora tem existido”. Em seguida, explicou os motivos de sua atitude: “para sua própria utilidade de aprender a ter tendo capacidade aquele ofício que melhor lhe parecer com que para o futuro ter de que sustentar-se, viver e tratar e comida de suficiente” (AESP-E13423, 1788, p. 131). Já o Capitão José Marcelino Aranha concedeu a alforria à sua escrava Úrsula desde que ela o servisse até a sua morte, quando iria para o poder de sua irmã. No caso de ela falecer, seguiria na companhia de sua filha Matildes “até ter a dita rapariga idade para se casar”. Assim determinou: “só assim sairá de sua companhia depois de casada, que então poderá livremente usar de sua liberdade em companhia de seu marido” (AESP-E13428, 1797, p. 30).

Enfim, nos registros de alforrias de escravos de origem africana podemos até vislumbrar, em meio às avaliações e exigências, sinais de dedicação recíproca envolvendo libertador e libertado, como atesta a carta de liberdade conferida pelo senhor Antonio da Costa Ferreira. Começou por enumerar as razões que o levaram a tirar Domingas do cativeiro: “atendendo ao dilatado tempo que me tem servido, e serve, como por dela ter recebido muita parte do seu valor, além dos bons serviços”. Em seguida, afirmou: “ficará sempre obrigada a me servir” a dita Domingas “enquanto eu for vivo como eu também obrigado a tratá-la em todo o necessário enquanto vivo for” (AESP-E13422, 1782, p. 60). Podemos até entrever, na documentação do Segundo Cartório de Notas, indícios de mútua estima, como os que aparecem no relato da senhora Maria Francisca Xavier. Principia apontando os motivos para alforriar Manoela: “a qual escrava pelo muito amor e fidelidade que comigo se portou a forro pela quantia de 72$800 réis”. E finaliza delineando a troca afetiva: “esperando dela que me acompanhará pelo amor que lhe tenho até a minha morte” (AESP-E13430, 1799, p. 25v.).

 

Referências

Benci, J. S. I. (1977). Economia cristã dos senhores no governo dos escravos. São Paulo: Editorial Grijalbo. (Trabalho original publicado em 1700).         [ Links ]

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Silva, M. B. N. da (Coord.). (1994). Dicionário da história da colonização portuguesa no Brasil. Lisboa; São Paulo: Editorial Verbo.         [ Links ]

Souza, L. de M. e (2000). Coartação: problemática e episódios referentes a Minas Gerais no século XVIII. In M. B. N. da Silva (Org.), Brasil: colonização e escravidão (pp. 275-295). Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

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Livro 1 (1742-1743)
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Livro 2 (1753-1755)
E13419, p. 75

Livro 4 (1778-1781)
E13421, p. 39
E13421, p. 45v.
E13421, p. 57

Livro 5 (1781-1784)
E13422, p. 30
E13422, p. 50
E13422, p. 60
E13422, p. 64
E13422, p. 67
E13422, p. 79
E13422, p. 122v.
E13422, p. 124
E13422, p. 178v.
E13422, p. 194v.

Livro 6 (1784-1789)
E13423, p. 44v.
E13423, p. 131

Livro 7 (1789-1790)
E13424, p. 32v.
E13424, p. 40
E13424, p. 49v.
E13424, p. 63

Livro 8 (1791-1793)
E13425, p. 2v.
E13425, p. 58

Livro 11 (1796-1797)
E13428, p. 18
E13428, p. 30
E13428, p. 54
E13428, p. 54v.
E13428, p. 101

Livro 12 (1798-1799)
E13429, p. 7v.

Livro 13 (1799-1800)
E13430, p. 12v.
E13430, p. 14
E13430, p. 16
E13430, p. 19
E13430, p. 20
E13430, p. 23
E13430, p. 25v.
E13430, p. 48v.
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E13430, p. 94

Livro 14 (1802-1804)
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E13431, p. 39v.
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E13431, p. 70v.
E13431, p. 76v.
E13431, p. 96

 

 

Endereço para correspondência
Eliana Rea Goldschmidt
E-mail: elianagold@gmail.com

Recebido: 10/04/2010
Aceito: 24/04/2010

 

 

* Eliana Rea Goldschmidt é historiadora, tendo concluído mestrado, doutorado e pós-doutorado na Universidade de São Paulo. É autora dos livros Casamentos mistos: liberdade e escravidão em São Paulo colonial e Convivendo com o pecado na sociedade colonial paulista, 1719-1822.
1 Este artigo foi fundamentado em uma pesquisa nos livros do Segundo Cartório de Notas da Capital conservados no Arquivo Público do Estado de São Paulo, abrangendo o período de 1742 a 1804. Os resultados foram apresentados integralmente na mesa-redonda intitulada “Formas de Alforria”, promovida pela Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica por ocasião do centenário da abolição da escravatura no Brasil. Nas citações, a grafia dos valores monetários foi padronizada.

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