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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.50 São Paulo jul. 2010

 

EM PAUTA - CARTAS

 

Endereço desconhecido

 

Address unknown

 

 

Luiz Meyer*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O trabalho parte de um filme feito em 1944, Endereço desconhecido, cuja trama é descrita em detalhe e no qual as cartas desempenham um papel central. Trata-se de um drama psicológico, situado no início da década de 1930, na Alemanha, que descreve o lento desgarramento de um homem refinado, pai de família, marchand de arte, sócio fiel, em direção ao nazismo e à degradação moral, estimulado por uma figura malévola e aristocrática que o fascina. O autor conjuga a história com alguns trabalhos de Freud, Rosenfeld, Bion e Meltzer ligados ao tema, e finaliza o artigo narrando uma experiência pessoal evocada pelo final do filme.

Palavras-chave: Cinema, Cultura, Claustro, Grupo de pressuposto básico, Nazismo, Perversão, Psicologia de grupo, Pulsão de morte.


ABSTRACT

The work stems from the film Address unknown, produced in 1944, whose plot is portrayed in detail and where letters play a major role. This psychological drama takes place in the early 30s in Germany, and describes the gradual pulling away of a family-oriented refined man, an art merchant and dependable partner, and his journey toward Nazism and moral degradation, brought about by an evil aristocratic figure who fascinates him. The author links the story to a few works on this subject by Freud, Rosenfeld, Bion and Meltzer and concludes the article by narrating a personal experience evoked by the end of the film.

Keywords: Arts, Cinema, Culture, Confinement, Basic assumption group, Nazism, Perversion, Group psychology, Death instinct.


 

 

O presente trabalho conjuga e integra campos de interesse variados. Ele parte de um filme, realizado na primeira metade do século passado, cuja trama será narrada logo abaixo, no qual as cartas, tema deste número da revista ide, desempenham um papel central. O aspecto ficcional da história, por sua vez, proporcionou-me um encontro com formas de pensar da psicanálise, nele expressas. E fez também emergir uma experiência pessoal da análise, associada ao sentido do filme, tal como o apreendi.

Martin Schultz e Max Eisenstein, amigos e sócios de longa data, ambos alemães, originários de Berlim, haviam decidido, após a guerra de 1914, se estabelecer nos Estados Unidos, mais particularmente em São Francisco, onde prosperaram como marchands de arte tradicional. Martin, casado com Elsa, tinha um filho mais velho, de 25 anos, Heinrich, e vários filhos menores; já Max era viúvo e possuía uma única filha, Griselle, estudante de teatro e que estava noiva de Heinrich. Martin morava em uma casa pequena, porém luminosa, situada em um ponto elevado da cidade, que se abria para a vista magnífica da baía. A relação entre as famílias era muito afetuosa. Aos domingos, por exemplo, se reuniam no jardim, que dava para a paisagem, em volta de um almoço preparado por Elsa, regado a bom vinho, a conversa correndo solta entre “tio” Max, “tio” Martin e os jovens. No início da década de 1930, os sócios decidiram que Martin e sua família regressariam à Alemanha. A viagem fazia parte de uma estratégia para ampliar os negócios. De Munique seria mais fácil a Martin acompanhar o mercado de arte europeu e escolher os quadros que deveriam ser comercializados na galeria em São Francisco. Esta ficaria sob os cuidados de Max e Heinrich. Martin lamenta deixar São Francisco e seu ambiente acolhedor, no qual o convívio com Max ocupava um lugar central. Além do mais, preocupa-se com o estranhamento que a viagem poderia causar a seus filhos, já que os sente inteiramente americanizados. No almoço que precede a partida, Griselle e Heinrich informam, deixando todos pesarosos, que resolveram adiar o casamento por um ano, pois ela também seguiria para a Europa a fim de aprimorar sua formação de atriz em Viena.

Chegando à Alemanha, Martin aluga uma mansão nos arredores de Munique e passa a decorá-la com móveis e objetos rebuscados, procurando dar à casa um aspecto senhorial. Em um dia em que a chuva estava prestes a cair, enquanto a mudança se completava e os móveis iam ganhando seus lugares e ocupando os aposentos, olhando pela janela, ele percebe do outro lado da rua um homem, vestido com uma elegante capa preta e usando um chapéu da moda, que observava com curiosidade o movimento da casa e dos recém-chegados. Algum criado segreda ao ouvido de Martin que “se trata de uma pessoa muito importante, o Baron von Friesche”. Influenciado pela informação e magnetizado pela aparência do personagem e por sua postura aristocrática, Martin o convida a entrar a fim de abrigar-se da chuva. Começa ali uma relação que vai se estreitar com o tempo e que terá profunda influência sobre Martin. Hitler ascendera ao poder e “Her Baron” revela-se um membro importante do partido nazista. Ele explica metodicamente ao compatriota recém-chegado da América, em encontros que vão se tornando frequentes, a transformação pela qual estava passando a Alemanha. Em paralelo, apresenta-o a outros dirigentes do partido, a cujo círculo Martin vai se integrando. Martin passa então a escrever longas cartas para o sócio e para o filho, partilhando com eles seu entusiasmo pela renovação do país, pelo surgimento de uma juventude aguerrida e combativa e pela orientação política que visava manter a pureza do sangue alemão e da cultura germânica. Ele justificava as ações violentas dos nazistas – que seriam, segundo ele, passageiras –, pois estavam a serviço do reerguimento da nação e da consolidação do ideal elevado proposto pelo Führer. Max e Heinrich, em São Francisco, se surpreendem com o tom e o conteúdo das cartas que, mostrando um Martin cada vez mais engajado, passam aos poucos a conter insinuações antissemitas. Max Eisenstein, como o nome indica, era judeu, e o Barão já havia alertado Martin de que não era conveniente ter contato com gente que carregasse este tipo de sobrenome.

A transformação de Martin atinge mesmo seu modo de andar, que se torna rígido, e o de vestir, formal, afetado e sombrio. Graças à influência do Barão, ele passa a ocupar um posto importante no Ministério da Cultura do Terceiro Reich. Totalmente identificado com o regime, Martin escreve a Max dizendo que eles deveriam cessar de se corresponder. Incrédulo, presumindo que o amigo tomara esta iniciativa de modo a ocultar dos nazistas seus verdadeiros sentimentos, e assim proteger a relação, Max envia a Munique, através de um portador, uma carta em que expõe esta suspeita. Bastaria que, à guisa de resposta, ele apenas apusesse à mensagem enviada a palavra “sim”, e tudo ficaria esclarecido entre eles. Max recebe o portador em seu pomposo escritório, lê a carta e grita: “A resposta é não”.

Entrementes, Griselle, que adotara o nome artístico de Griselle Stone, vai a Munique para atuar como atriz principal em uma peça de caráter místico, interpretando o papel de uma freira devota. Antes, porém, visita “tio Martin” em sua casa, que a apresenta ao Barão, ali presente como de hábito. Ao deixar a bolsa sobre a mesa para ir falar com Elsa, o Barão comenta que as iniciais nela gravadas, GE, não coincidiam com seu nome, Griselle Stone. Martin explica que se trata de um nome artístico, e que seu nome de família é Eisenstein. Ante o olhar de reprovação do Barão, Martin, bastante embaraçado, diz que se trata de uma velha amiga da família.

O ensaio final da peça em que Griselle está trabalhando é interrompido pela chegada de uma pessoa que se apresenta como censor do Reich e informa ao diretor, em um tom agressivo, que por ordem do governo vários trechos do texto deveriam ser suprimidos, particularmente os que pregassem o espírito de fraternidade, como, por exemplo, o que dizia “Abençoados sejam aqueles que propiciam a paz porque eles serão chamados criaturas de Deus”. Na estreia, entretanto, Griselle, calma e placidamente, recita a fala proibida, fazendo com que o censor, presente na plateia, pulasse de sua cadeira e, aos berros, demandasse a interrupção da peça e a prisão do diretor. Griselle então explica que fora dela, e não do diretor, a iniciativa de ler as linhas proibidas. O censor pede para que ela se identifique. O Eisenstein de seu sobrenome provoca a indignação do público que, insultando-a e vociferando, avança para o palco visando atacá-la. Griselle consegue escapar do prédio e, fugindo através de trilhas enlameadas da periferia da cidade, procura chegar à casa de Martin, já tendo, a esta altura, no seu encalço os agentes da Gestapo. Lá chegando, bate à porta em desespero e quando Martin, ao abrir a porta, percebe que ela está sendo seguida, diz que recebê-la o colocaria em perigo e se recusa a fazê-lo. Fecha-lhe a porta na cara e, do lado de dentro da casa, escuta os tiros de fuzilaria que liquidaram a jovem. Em seguida envia a Max a seguinte carta:

Senhor Eisenstein,
Heil Hitler,
Lamento ter más notícias para o senhor. Sua filha está morta.

Martin.

Apesar da crueza e da frieza da mensagem, Martin continua a receber cartas de Max. São cartas de caráter enigmático: há menção a endereços e pessoas misteriosas, cifras e números dispostos arbitrariamente no papel, nomes de pintores, alusão a transações comerciais, mas o todo não se conecta nem faz sentido.

Otto Burkholz até sexta no n. 25. Requisitar chegada de 25 Picassos 23 × 12 × 18 azul e vermelho 6 × 4.

Ou então:

Otto Burkholz deixou o n. 25 e está no número 20 por 12 dias. Trocar 25 da carta anterior por 30,

Elas chegam regularmente, deixando Martin inicialmente perplexo e, mais tarde, perseguido, ao notar que no verso de cada envelope há agora um carimbo do Departamento de Segurança do Reich, sinal de que as cartas passaram a ser censuradas. O Barão, ao visitar Martin, avisa-o de que cartas em código são proibidas na Alemanha prevenindo-o para que tomasse cuidado ou sofreria as consequências. Martin explica que não tem a menor ideia do que elas significam, mas o Barão mantém-se enfático em sua advertência. Martin escreve em desespero a Max pedindo que ele cesse de escrever, pois as cartas são agora uma ameaça à sua vida. Inútil. Toda manhã Martin escuta a sineta do portão, tocada pelo carteiro, anunciando a chegada da correspondência. Ele se precipita para a caixa de correio e lá encontra, indefectivelmente, uma carta críptica e o carimbo da censura. Elsa, profundamente decepcionada com as mudanças do marido, e chocada com a forma como ele agira com Griselle, abandona a casa, levando os filhos consigo. Martin, temeroso de que os empregados possam ler as cartas, os dispensa e se isola no casarão. Em uma visita final, o Barão o intima a revelar o código e o nome de seus cúmplices, dizendo que se trata da última advertência. Não podendo fazê-lo, e não vendo saída, Martin sucumbe a um profundo abatimento e, no seu desvario, escuta a voz de Max pedindo para que ajude Griselle. Em meio ao abandono, toma de um revólver como se fosse se suicidar, mas seu olhar é atraído pela imagem de uma carta e é sobre este fantasma que ele dispara. Por fim, em um início de noite, desesperado, sai de casa para aguardar a chegada da Gestapo, cuja aproximação ele percebe pelo rumor da marcha e pelo feixe de luz das lanternas dirigidas à porta de entrada.

Em São Francisco o carteiro entrega a Max, na galeria, uma carta devolvida da Alemanha. No verso do envelope estão carimbadas as insígnias dos censores do Reich; na frente foi escrita a frase: “Endereço desconhecido”. Ele a abre e se surpreende dizendo a Heinrich que aquilo é incompreensível, pois desde a morte de Griselle jamais escrevera a Martin. Heinrich não responde, permanece calado, o porte sério, e, sem dirigir-se a Max, fixa a vista em um ponto perdido no horizonte. Olhando-o, Max entende que fora Heinrich quem havia enviado as cartas, visando implicar o pai em uma trama de espionagem, o que, no regime nazista, significaria sua perda.

Este é o enredo do filme Address unknown, de 19441, baseado na novela homônima de Katherine Taylor, dirigido por Willian Cameron Menzies2 e fotografado por Rudolph Maté, um dos mais importantes fotógrafos de Hollywood. Filmando em preto e branco, Maté evoca o estilo do cinema expressionista alemão e do “filme noir americano”, empregando jogos dramáticos de sombra, luz e profundidade, que adquirem caráter simbólico ao longo da narrativa. A cenografia de toda a parte ambientada na Alemanha é extremamente requintada, registrando a monumentalidade opressiva da arquitetura nazista e a vulgaridade da decoração da casa de Martin.

Realizado quase ao fim da guerra, quando esta já estava decidida, mas tendo sua ação situada no início da década de 1930, isto é, no momento da consolidação do regime nazista, é difícil ver o filme como mera peça de propaganda. Ele basicamente se concentra nas mudanças que vão ocorrendo na personalidade de Martin, intimamente ligadas à natureza do funcionamento do regime político do qual se aproximara. Por este viés, é um drama psicológico que antecipa os achados das pesquisas historiográficas feitos após 1950, que desvendam as transformações ocorridas no comportamento e na mentalidade da população civil alemã, de modo a tornar seus membros não só cúmplices, mas também perpetradores dos crimes do Holocausto (o assassinato de Griselle é, neste sentido, exemplar).

Por seu conteúdo, estrutura e partido narrativo o filme evoca, no psicanalista interessado, toda uma série de questões que foram (e continuam sendo) abordadas pela psicanálise ao longo de sua história. Freud evidentemente é o primeiro autor lembrado por tal analista. Vários temas abordados em sua obra podem ser correlacionados à trama do filme.

Freud, em “Além do princípio do prazer” (1920/1955a), percebe que sua visão do sintoma como uma solução de compromisso entre prazer e desprazer não dá conta de uma série de comportamentos que observara, tais como o repetido prazer de so frer, o de fazer sofrer, e o da ação destrutiva pura. Sugere então não só a existência da pulsão de morte (em oposição aos investimentos libidinais), mas também o conceito de defusão pulsional, uma situação em que a pulsão de morte deixa de ser neutralizada e passa a atuar como solista. O filme mostra o desgarramento de Martin, a confusão que faz entre agressão e heroísmo, seu distanciamento dos elementos libidinais e a união com o Barão, formando ambos uma “pura cultura de pulsão de morte”, voltada para a institucionalização da violência.

Já no ano seguinte, 1921, em “Psicologia de grupo e análise do ego”, Freud se debruça sobre as relações existentes entre a organização social e a psicologia do sujeito. Em carta a Romain Rolland (Vermorel & Vermorel, 1993, citados por Quinodoz, 2005), aludindo ao trabalho que escrevera, ele diz que “[este artigo] mostra a maneira que leva da análise individual à uma compreensão da sociedade”, nas circunstâncias específicas em que o grupo perde a habilidade de julgar adequadamente. Partindo de sua ideia de que a identificação é a forma primeira e original de uma ligação afetiva, ele descreve o funcionamento do grupo que se identifica com um líder (e o constrói), e cujos membros se identificam entre si, como seus seguidores. O vinculo com o líder é baseado na idealização de modo que o ego das pessoas que formam o grupo se esmaece.

Martin, no filme, abandona as relações que funcionavam sob a égide de um ideal de ego e as substitui por aquelas tuteladas por um ego ideal. Este, como vemos no filme, funciona como um superego arcaico, não admitindo, em momento algum, que um membro do grupo se desvie minimamente dos comportamentos necessários para manter sua coesão e densidade. Todos devem abandonar qualquer veleidade pessoal em favor do interesse grupal; cada qual ocupa o posto de lugar-tenente do líder. É um gênero de identificação que dota o indíviduo de um sentimento de poder invencível, a tal ponto que noções como responsabilidade individual e consciência moral se perdem. Por isso, podemos compreender que, ao ser expulso do grupo, Martin perde também sua coesão pessoal, se dissocia e passa a ter vivências psicóticas.

Oito anos mais tarde, em outubro de 1929, poucos dias antes da quebra da Bolsa de Nova York, Freud entrega a seu editor os originais de “Mal-estar na cultura”, que será publicado em 1930. É o ano em que o partido nazista obtém uma vitória espetacular nas eleições parlamentares; pouco adiante, em 1933, época na qual se desenrola a trama do filme, Hitler será nomeado chanceler. O texto aborda o equilíbrio frágil que os seres humanos constroem para si mesmos, em uma civilização destinada a protegê-los mas que, paradoxalmente, pode terminar por destruí-los. Embora ele aborde também outros temas – culpa, exigências superegoicas –, o fio condutor do pensamento acompanha a pressão causada pela pulsão de morte ao entrar em conflito com os instintos de vida. A civilização provém da restrição pulsional, necessária à preservação da vida em grupo, e esta restrição se torna fonte de hostilidade. A evolução da civilização pode então ser compreendida como a contínua presentificação da luta entre Eros e Tanatos, como se fosse a exposição das formas de contenção – ou não – da destrutividade dos humanos. Estes não seriam “criaturas gentis que querem ser amadas e no máximo se defendem quando atacados” (Freud, 1930/1961, p. 111); eles são agressivos.

O fim do artigo, de certo modo, desemboca em nosso filme, na medida em que Freud se pergunta o quanto o desenvolvimento cultural da espécie humana conseguirá dominar a perturbação, em sua vida social, causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição (Freud, 1930/1961, p. 143). Martin é um representante típico da cultura europeia, educado, refinado, marchand de arte, que no início do filme aparece como um pai próximo dos filhos, um marido amoroso e solícito, um amigo caloroso e sincero. O espectador do filme se surpreende ao perceber que estes comportamentos terminam por ter apenas a força de uma tênue camada de verniz, cuja fragilidade se evidência quando, sob a forma de poder e dominação, os impulsos destrutivos mostram toda a sua capacidade de fascínio.

Entre os três artigos de Freud há uma evidente continuidade, dada não só por sua contiguidade histórica e temática, mas também pela capacidade do filme em conjugá-los.

Esta conjugação abarca também outro autor, que mais de vinte anos depois se debruçou sobre a dinâmica de grupo. Estamos falando de Bion, que a partir de 1943 se interessou pelo tema e, em 1948, publicou seu livro Experiences in groups (1961). Bion escreve que os grupos, em seu funcionamento, podem seguir dois caminhos. Um deles é operar como um grupo de trabalho (G.T.). Este procura manter seu foco na meta planejada, o que implica reconhecer os obstáculos que evidenciam a impossibilidade de alcançá-la tal como fora concebida. Este reconhecimento gera medo e insegurança. Em face desses sentimentos, o grupo se reorganiza sob outra forma, a de pressuposto básico (p.b.) voltado para eliminar a insegurança causada pela confrontação com a realidade. O pressuposto é um tipo de fé, de cunho fundamentalista, que propõe ser possível confrontar a realidade e resolver os problemas que ela propõe sem risco ou angústia. Bion descreve três desses tipos de crença que estruturam os três tipos de grupo de p.b. O primeiro é o p.b. de dependência, ancorado na crença em um Deus onipotente (um líder, uma ideia, uma causa) que assegura e promove a realização de todos os objetivos do grupo (“o Senhor é meu pastor e nada me faltará”). O segundo, o grupo de p.b. de luta-fuga, propõe que qualquer problema pode ser resolvido pela ameaça da violência ou de sua aplicação, ou então por uma fuga habilidosa. O terceiro é o grupo de p.b. de acasalamento, que acredita que a união de dois, através de seu mero relacionamento no tempo, fatalmente produzirá o nascimento de um Messias que revolverá as questões do grupo (estas descrições evocam as que Freud fez sobre o funcionamento e estrutura da Igreja e do Exército).

No início do filme Martin e Max são apresentados – conjuntamente com suas famílias – como compondo um grupo de trabalho, isto é, um grupo que enfrenta as demandas da realidade, mesmo que esta lhes coloque questões dolorosas. Esta realidade, ao exigir a expansão dos negócios para viabilizá-lo, implica uma separação que os sócios lamentam, e também na de pai e filho (uma vez que Heinrich ficaria em São Francisco com Max, cuidando da galeria), e portanto na perda de um universo estável e de um convívio amigo. Isto se torna ainda mais marcante em face da decisão dos noivos de separarem-se e de adiarem o casamento, já que o desenvolvimento da carreira de atriz de Griselle necessitaria que ela passasse algum tempo na Europa. Toda mudança produz um sentimento de estranheza e exige um trabalho de luto. Não é só à nova casa que Martin precisa se adaptar (o que faz decorando-a com um luxo estereotipado), mas a um novo tempo, na verdade, a um novo país. A Alemanha que deixara não existia mais. Agora ela é governada de forma peculiar por “um tal de Hitler”, venerado pelo povo e cujo discurso político se ancora no fanatismo e na belicosidade. Martin se confronta com o inesperado, e a forma que escolhe para abordá-lo passa pela “solução” oferecida pelo Barão, cuja pose aristocrática tanto o atraía. Martin desliza então para dentro dos grupos de p.b. Ele passa a servir ao Führer e sua bíblia, que torna tudo compreensível e manipulável, adere à violência como solução para resolver conflitos, e aguarda o triunfo do Terceiro Reich que, como queria Hitler, deveria durar mil anos.

Mas o filme conjuga também um universo psicanalítico ainda mais complexo, que funciona como estimulo à imaginação do analista. Este se sentirá motivado a ampliar o campo abraçado por sua percepção. Postado em outro ângulo poderá, por exemplo, conceber Max e Martin como partes diferentes de um mesmo self, que se relacionam entre si, cada qual com seus objetos. Estas partes podem ser mais ou menos evoluídas, maduras, viver ou não em harmonia, ex-cindir-se para dentro de um objeto interno e/ou externo, possuírem visões de mundos diferentes (ou não), vividas em paralelo, e assim por diante.

Evidentemente uma parte mais frágil ou fragilizada, e portanto vulnerável, pode sentir a necessidade de fazer uma aliança e se identificar com um objeto infantil, narcísico, onipotente, que se ofereça para resgatá-la da situação de desamparo, dependência, e eventualmente confusão, na qual se encontra. O objeto, desde que introjetado, promete não só solução e alívio, mas também triunfo, impondo como condição que esta parte do self se afaste de suas relações anteriores (“dividir para conquistar”). A intenção, malévola em sua essência, é obter a submissão do self aos princípios que regem o comportamento e a mentalidade do objeto. Trata-se de uma operação de captura, de caráter fáustico, na qual, como sempre, o diabo se apresenta com duas faces: a de protetor onipotente e a de tirano sádico. Este é o campo da sedução perversa. A cena em que o Barão, enquanto estranho-intruso, de fora, espreita a casa recém-habitada, como um animal que cinicamente observa a presa, já preparando o bote contra a harmonia e a alegria familiar que ali transparece, condensa, através de sua expressividade criativa, tudo o que os textos teóricos gostariam de transmitir.

Mas as cartas, que sentido teriam? Creio que a esta altura podemos considerá-las com naturalidade como sendo uma forma elegante de comunicação entre as partes do self. Martin, através delas, fala de seu entusiasmo pela nova ordem, impregnando os textos com o seu estado de alma peculiar, facilitando ao interlocutor, perplexo e incrédulo, a percepção da lenta, contínua e intensa transformação que sua personalidade está sofrendo, marcado pelo estreitamento em direção ao preconceito, à arrogância e à onisciência. O tom da escrita é de autossatisfação, como se tivesse feito uma descoberta revolucionária; mas o pensamento é ralo, a argumentação, inconsistente. Havia se tornado um ventrículo que dava voz ao Barão. As cartas informam como, a um só tempo, Martin tanto se introduziu no claustro (Meltzer, 1992) quanto foi por ele aspirado, como sucumbiu ao enfeitiçamento dos objetos que compõem a gang-máfia interna (Rosenfeld, 1971), aderindo às suas falsidades, usufruindo de seu favorecimento, sucumbindo às suas ameaças. Essas cartas são testemunha e representação da natureza do vínculo que Martin desenvolveu com a parte do self da qual se distanciou, e por isso mesmo indicam tanto a permanência deste vínculo quanto às mudanças que sofreu. Quando no final, transtornado, ele segura o revólver, o espectador pensa que ele, em um gesto de grandeza, vai se matar. Mas não é na sua cabeça que ele mira e atira, e sim na imagem de uma carta, fantasma que está a lembrá-lo da trajetória que escolhera e que agora, com esta atitude, pretende apagar.

Mas que sentido dar às cartas que Martin recebe e que, ao fim, transformam sua casa em um espaço claustrofóbico e persecutório, o tornam deprimido, potencialmente suicida, e vítima de alucinações persecutórias?

Assisti a este filme no início da década de 1960 (em alguma sessão de cinemateca). Era um momento em que eu vivia dividido entre o cinema e o curso médico: a escolha da psicanálise, que abrangia aspectos oníricos, imagéticos e terapêuticos certamente deve muito a esta ambivalência. Quando li a circular enviada pela internet informando que “cartas” seria o tema do próximo número desta revista, o filme, visto há cinquenta anos, voltou-me de imediato à lembrança. Evidentemente não me recordava de todos os detalhes acima descritos, mas o final, ou melhor, o seu significado, permanecera gravado em minha memória, com bastante clareza.

Através de uma pequena odisseia, navegando na internet com perseverança, consegui localizar nos Estados Unidos uma empresa chamada “Loving the classics” , que grava e vende, sob encomenda, DVDs de filmes cujos direitos autorais caíram em domínio publico. Address unknown constava de seu catálogo e eu o encomendei. Ao revê-lo, creio ter compreendido a razão de por que diabos, após tanto tempo, eu me lembrara do filme. O motivo evidentemente não se prendia à mera evocação do papel fundamental das cartas no enredo da história, mas a uma experiência afetiva singular que eu vivera e que passo a contar.

Certa vez, quando fazia análise no exterior, em um período em que o Brasil ainda se encontrava sob o domínio da ditadura militar, tive o seguinte pesadelo:

Estava sentado em uma cadeira de dentista, e dois homens de avental, postados ao meu lado, me torturavam com seus instrumentos, enfiando-os boca adentro. Embora dominado pelo terror, consigo pôr a mão dentro do bolso da minha calça e descubro que ali havia um revólver. Eu o retiro e, ao empunhá-lo, levanto-me da cadeira e me afasto da cena lentamente, dando as costas para os torturadores.

O sonho, penso (pensava) eu, era relativamente claro: eu atribuía ao meu analista, ou melhor, às suas palavras, por identificação projetiva, um teor sádico que provinha de seu self, indiviso, uno, blindado, imune à cisão entre bom e mau objeto (percebe-se que ambos personagens eram torturadores). Após um silêncio ele fez um único comentário que, além de deixar-me estupefato, continuou a reverberar internamente, impondo, ao longo do tempo, a necessidade de sua permanente reelaboração. Ele disse: “Foi um comportamento covarde”.

As teorias analíticas, na sua diversidade, apontam para as mais variadas metas quando tentam definir o objetivo de uma análise. Aquela que está no nascedouro da psicanálise reza “que se estabeleça o consciente lá onde havia inconsciente”. Mas, é claro, inúmeros outras se seguiram: ajudar o ego a enfrentar as pressões do id, ter experiências emocionais corretivas, prover o ego de uma área livre de conflitos, sustentar o self-objeto em suas experiências de narcisismo ferido, aliar-se ao bom objeto para que ele possa conter as investidas do objeto mau; atingir a posição depressiva; possibilitar a manutenção da oscilação entre posição esquizoparanoide e posição depressiva (PS<->D); mapear a assembleia de objetos internos e suas relações com o self; facilitar a percepção da relação existente entre as partes psicóticas e não psicóticas da personalidade; propiciar sustentação que mantenha o paradoxo inerente à relação materno-infantil, romper o campo de modo a que se abale e se reorganize a autorrepresentação do sujeito; criar condições para que o sujeito sonhe o não sonhado, e por aí vai. Serão talvez tantos os objetivos quanto os analistas.

Parece-me difícil encaixar o comentário de meu analista em uma das metas acima descritas. Sabemos que, no seu todo, a psicanálise tem horror à sugestão e ao intervencionismo. Ora, a fala que escutei continha, assim me pareceu, não só um viés crítico e um juízo de valor mas também, implícita, uma censura do meu comportamento omisso. Naquelas circunstâncias, eu deveria não só ter enfrentado os torturadores (ao invés de dar-lhes as costas), mas também eliminá-los, já que a análise me dotara de uma ferramenta para fazê-lo (ou aprimorara a que eu já possuía). O modelo que o analista tinha em mente (sem nunca ter visto o filme, é claro) é Heinrich. Em face de um pai que se tornara “torturador”, e queria forçar-lhe goela abaixo sua forma tortuosa de pensar e sua visão de mundo perversa, além de ser cúmplice do assassinato de sua noiva, Heinrich recusa a passividade depressiva de Max e se abre para o drama que ocorrera. Prenhe de coragem e determinação, infatigável, criativo e imaginoso, ele escreve e envia, uma após a outra, as cartas que selariam o destino de Martin. Ele não age por vingança nem, ao atingir seu objetivo, sente-se vitorioso: valeu-se das cartas como eu deveria ter me valido do revólver que estava no meu bolso. A moral desta história é que, ao nível de certa ética, que pode muito bem ser a psicanalítica, não há composição possível com o mal que coloca a mente em perigo.

Meltzer, em 1955, já próximo do fim de sua vida, dizia que havia passado o tempo em que a psicanálise poderia ser vista como uma terapia para distúrbios mentais. Segundo ele, ela havia se tornado uma maneira para o sujeito educar-se a pensar por si mesmo.

 

Referências

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Rosenfeld, H. (1971). A clinical approach to the psychoanalytic theory of life and death instincts: an investigation into the aggressive aspects of narcissism. International Journal of Psychoanalyses, 52,169-178 (Reprinted in E. B. Spillius (Ed.) (1988). Melanie Klein today. Vol. 1. London: Routledge).         [ Links ]

Vermorel, H., & Vermorel, M. (1993). Sigmund Freud et Romain Rolland: correspondence 1923-1936. Paris: Presses Universitaires de France.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Luiz Meyer
Rua Santa Cristina, 217
01443-020 – São Paulo – SP
tel.: 11 3062-6298
E-mail: luimeyer@uol.com.br

Recebido: 10/04/2010
Aceito: 16/04/2010

 

 

* Psicanalista, membro efetivo da SBPSP.
1 Distribuído por Columbia Pictures. Dirigido e produzido por William Cameron Menzies. Escrito por Kressmann Taylor. Fotografia de Rudolph Mate. Com Paul Lukas, Carl Esmond, Peter van Eyck, Mady Christians, Morris Carnovsky e K.T. Stevens.
2 Menzies era um dos mais requisitados diretores de arte de Hollywood. Trabalhou em inúmeros filmes, ainda no cinema mudo, e em 1939 deu sua colaboração em ...E o vento levou (Victor Flemyng), o que lhe valeu um Oscar honorário pelo uso inovador da cor. Dirigiu (e codirigiu) também alguns filmes de gênero variado, tal como este Endereço desconhecido.

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