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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.50 São Paulo jul. 2010

 

EM PAUTA - CARTAS

 

Entre artistas: amizade, narcisismo, sobrevivência psíquica

 

Between artists: friendship, narcissism, psychic survival

 

 

João A. Frayze-Pereira*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No contexto da correspondência entre artistas, as cartas enviadas por Mário de Andrade a Portinari são analisadas, considerando-se a amizade que vinculou o escritor ao pintor. Mas, também, em um nível de maior profundidade, são considerados os aspectos narcísicos que elas evidenciam, tanto do ponto de vista da relação de um com o outro, quanto da problemática vital vivida pelo poeta no ato de escrever. Os limites da interpretação psicanalítica da literatura são considerados.

Palavras-chave: Correspondência entre artistas, Cartas, Amizade, Narcisismo, Mário de Andrade, Portinari.


ABSTRACT

In the context of the correspondence between artists, the letters sent by Mario de Andrade to Portinari are analysed considering the friendship that bonded the writer to the painter. But also, in a much deeper level, it is considered the narcissism’s aspects that the letters make evident, from the point of view of the relationship with one another, as well as the vital problem lived by the poet during the act of writing. The limitations of literature’s psychoanalytical interpretation are considered.

Keywords: Artist’s correspondence, Letters, Friendship, Narcissism, Mario de Andrade, Portinari.


 

 

A troca de cartas entre artistas é um fenômeno psicossocial e estético recorrente na história da literatura e das artes. Campo fértil para a pesquisa de autorretratos, de relações pessoais e cenários de época, revelados pelas cartas com a força das confissões, a literatura epistolar, com efeito, situa-se entre o pessoal e o social, o ficcional e o histórico, o prosaico e o poético. Traz à tona perfis que são configurados com a caligrafia daqueles que teimam em ultrapassar as distâncias pressupostas pela comunicação escrita (Foucault, 1983/1992, p. 153). E, no entanto, essa teimosia na verdade dribla um preconceito: o de que a comunicação oral é mais afetiva que a escrita e que esta distancia os interlocutores – preconceito que esconde uma manobra ideológica da modernidade ocidental, pois a palavra escrita compromete o autor, ao passo que se a fala oral é mais livre, é também mais inconstante ao mudar o curso da argumentação, dependendo da situação e da conveniência. Ora, a troca de cartas entre artistas ilustra a primeira parte dessa afirmação. Quase sempre plenas de emoções cultivadas pela escrita, tais cartas pensam. São exemplos a correspondência entre Mário de Andrade e Portinari, Mário de Andrade e Manuel Bandeira, João Cabral e Miró, Murilo Mendes e Ismael Nery, entre muitos e muitos outros (Galvão, 2000). Ao ler o conjunto de sessenta cartas que Mário de Andrade escreveu a Portinari, organizado no livro de autoria da crítica e historiadora da arte Annateresa Fabris (1995), percebe-se nitidamente o fio afetivo que liga o escritor ao pintor1. Entretanto, cabe lembrar que tal conjunto constitui um dos lados da correspondência entre os dois artistas, a parte expressiva da subjetividade daquele que assina. Desse ponto do vista, o pintor não passa de um personagem, objeto imaginário em torno do qual se articula o particular dinamismo psíquico do poeta. É através de Portinari que Mário de Andrade expressa uma parte de si, dimensão que dificilmente chegaria a contemplar a partir de si mesmo.

Ora, nos estudos sobre as “artes de si mesmo”, ou seja, sobre a estética da existência e o governo de si e dos outros, Michel Foucault encontra na cultura greco-romana as origens, formas e significados desse exercício constante do pensamento que se faz presente na prática de escrever cartas. No breve ensaio “A escrita de si” (1983), Foucault considera que, no plano da correspondência, o puro exercício de adestramento pessoal pela escrita “constitui também certa maneira de cada um se manifestar a si próprio e aos outros” (Foucault, 1983/1992, pp. 129-160). A carta, o filósofo analisa, faz o escritor presente àquele a quem a dirige. E “presente não apenas pelas informações que lhe dá acerca da sua vida, das suas atividades, dos seus sucessos e fracassos, das suas venturas e infortúnios; presente de uma espécie de presença imediata e quase física” (p. 150). Em outras palavras: escrever cartas é aparecer, isto é, fazer-se ver, dar-se corporalmente, mostrar “o rosto próprio junto ao outro”. E este aspecto significa, curiosamente, que o gênero epistolar possui uma singular inscrição no campo visual, pois “a carta é simultaneamente um olhar que se volve para o destinatário ... e uma maneira de o remetente se oferecer ao seu olhar pelo que de si mesmo lhe diz. De certo modo, a carta proporciona um face a face” (p. 150). Nesse sentido, o “estilo epistolar” não pode ser simples, despojado na escolha das palavras, pois se destina tacitamente a desvelar uma alma. Desde os primeiros desenvolvimentos históricos da narrativa de si pelo lado da correspondência com outrem, registra-se um fenômeno significativo para quem quiser fazer a história da cultura de si. Quer dizer, desde o princípio, a carta, na sua qualidade de exercício, trabalha no sentido da “subjetivação do discurso”, da sua assimilação e elaboração como “bem próprio”, ao mesmo tempo em que constitui uma “objetivação da alma”: “o trabalho que a carta opera sobre o destinatário, mas que também é efetuado sobre o escritor pela própria carta que envia, implica uma introspecção; mas há que entender esta menos como uma decifração de si por si mesmo do que como uma abertura de si mesmo que se dá ao outro” (p. 152). E, no fundo, são basicamente dois os pontos estratégicos, os objetos privilegiados, desse tipo de escrita: “as interferências da alma e do corpo (mais as impressões que as ações) e os lazeres (mais do que os acontecimentos externos); o corpo e os dias” (p. 153).

Em suma, pode-se concluir, segundo Foucault (1983/1992), que na constante troca de cartas o que se pensa e se expressa recíproca e equilibradamente são as notícias da saúde, do trabalho e da vida quotidiana, sustentadas pelas ligações afetivas, tecidas por uma amizade constitutiva de um sob o olhar de outrem e inversamente. No entanto, após ler as cartas enviadas por Mário de Andrade a Portinari, seria possível perguntar se essa correspondência expressaria apenas a amizade que vinculou os artistas, como propõe Annateresa Fabris (1995), desde o título do volume que organizou – Portinari, amico mio. Em outras palavras, não ofereceria essa correspondência um campo fértil para a pesquisa de outros aspectos, talvez menos equilibrados, do que os envolvidos no que se chama de amizade?

Michel de Montaigne, o filósofo que mais profundamente refletiu sobre a amizade no campo da ética, sabe que o amigo nos espelha e nos identifica. No final do século XVI, escreveu: “se insistirem para que eu diga por que o amava, sinto que o não saberia expressar senão respondendo: porque era ele; porque era eu” (Montaigne,1595/1980, p. 94). Como Aristóteles, Montaigne admite que, em face do desejo de contemplação de nosso rosto, movemo-nos para olhá-lo em um espelho, assim também quando queremos conhecer-nos a nós mesmos, “conhecemo-nos vendonos em um amigo”. Porque o amigo, dizemos, “é um outro nós mesmos” (Cardoso, 1987, p. 161). E Etienne La Boétie, amigo de Montaigne, contrapôs a amizade à servidão voluntária, escrevendo:

A amizade é nome sagrado, coisa santa: só pode existir entre pessoas de bem, nasce da mútua estima e se conserva não tanto por meio de benefícios, mas pela vida boa. O que torna um amigo seguro de outro é o conhecimento de sua integridade. Como garantias, tem seu bem natural, sua fé, sua constância. Não pode haver amizade onde há crueldade e injustiça. Entre os maus, quando se juntam, há uma conspiração, não sociedade. Não se apoiam mutuamente, mas temem-se mutuamente. Não são amigos, são cúmplices. (La Boétie, 1574/1982, pp. 65, 106)

Ora, ao longo das cartas enviadas por Mário a Portinari, são inúmeras as suas manifestações de afeto pelo amigo, nas linhas e nas entrelinhas. Por exemplo, logo na primeira carta, Mário escreve sobre a impressão que o retrato dele, feito por Portinari, causou. Ele diz:

às vezes me paro em frente do seu quadro e fico, fico, fico, não só perdido na beleza da pintura, mas me refortalecendo a mim mesmo. Porque de fato você mais do que ninguém, não apenas percebeu, mas me revelou que eu ... sou bom. Seu quadro me dá confiança em mim, me dá mais vontade de trabalhar, de continuar, é um verdadeiro tônico. Foi um bem enorme que você me fez, palavra. (Fabris, 1995, p. 48)

Três anos depois, em outra carta, acrescenta:

O caso do Osvaldo, achei graça. Mas já falei pra você com toda a franqueza que não aprovo muito esse seu processo de se antipatizar sem razão com tantas pessoas. É verdade que as razões que você me deu quando falamos nisso, sem me convencerem, me deixaram no entanto sem resposta. O caso é muito delicado pra mim, essa é que é a verdade. Mas a mim me penaliza ver pessoas não gostando de você e atacando a sua arte. Gosto demais de você e da sua pintura pra ter qualquer egoísmo: meu desejo era ver você louvado e compreendido por todos. Graças a Deus que sou assim! (p. 66)

Um ano após, escreve:

Mas o diabo é que a gente vai ficando viciado com os quadros de você, e acaba não gostando de quase ninguém. Dos seus quadros que eu tenho só não trouxe pro Rio o meu retrato porque mamãe, que gosta dele, pediu pra ficar com ela, pra ela poder olhar o filho. Trouxe o retrato do Segall que eu sempre gostei2. Pois o diabo é que acabei não gostando mais dele, acho duro, sem matéria, desequilibrado. (p. 73)

Quer dizer, admiração, devotamento, sinceridade, doação generosa de si ao outro, reconhecimento de si pelo outro são aspectos da relação de Mário para com o pintor, de tal modo que, aparentemente, ninguém parece mais próximo do escritor que Portinari. No entanto, seria amizade o traço ético e psicossocial que melhor caracterizaria essa relação? Ou será que a palavra amizade, no caso, mascara uma realidade distinta, mais próxima da paixão amorosa? Concordo com Davi Arrigucci que, escrevendo a propósito da amizade entre Ismael Nery e Murilo Mendes, advertiu ser “um equívoco pensar que o profundo vínculo que uniu esses dois seres extraordinários ... se tenha reduzido ... apenas à esfera das paixões ou dos afetos individuais” (Arrigucci Jr., 1996, p. 10). E, pensando em Mário e Portinari, também estou de acordo com Arrigucci quando, falando de Murilo Mendes, escreve: “o testemunho que nos legou o poeta vai muito além da mera apologia do amigo” (p. 11).

Com efeito, as cartas de Mário de Andrade são reconhecidamente “um exemplar exercício de poética modernista, pela transformação da vida em arte e do gênero epistolar em literatura” (Souza, 2000, p. 302).

Mais do que isso, porque Mário foi “um correspondente fecundo, contumaz, como ele próprio se classificou ... que não se furtava a confidências sobre si próprio” (Lopez, 2000, p. 277), nos milhares de cartas que escreveu a muita gente (mais de 10 mil, fora os bilhetes, cartões e telegramas), é com muita reserva que se deve considerar o alcance de qualquer afirmação acerca da subjetividade do escritor apenas com base no pequeno conjunto de cartas que vincula Mário ao seu outro. De qualquer modo, cabe ressaltar que é desse vínculo que se trata aqui enquanto revelador da maneira singular pela qual o escritor se constitui ao olhar do pintor. Nesse sentido, o que me parece mais apropriado dizer dessa correspondência é que nem pura amizade, nem fervorosa paixão pelo outro, nem uma possibilidade interpretativa nem a outra são exatas, pois o caso Mário de Andrade-Portinari desafia a pronta leitura, não se deixando apanhar facilmente, aliás como não é imediata a apreensão de um retrato modernista.

Acompanhando passo a passo a série de cartas, com efeito encontramos algumas pistas que sugerem uma outra via interpretativa pela qual o dinamismo psíquico de Mário pode ser mais bem revelado.

Desde a primeira carta, Mário confessa o desejo de escrever um ensaio sobre “seus” dois pintores – Portinari e Segall. Mas esses dois pintores são “dele”, Mário, porque fizeram retratos do escritor, reveladores de aspectos diferentes, de valores opostos, plástica e psiquicamente conflitantes. E os valores passam a significar aspectos não apenas dos retratos e do modelo, mas também dos pintores. Assim, resumo:

de um lado, Segall, de outro, Portinari;
de um lado, o “mau”, de outro, o “bom”;
de um lado, o “preto”, de outro, o “branco”;
de um lado, o “demoníaco”, de outro, a “luz”;
de um lado, o “negativo”, de outro, o “positivo”;
de um lado, o “pintor admirável”, de outro, o “criador genial”;
de um lado, o Mário de Segall, um “artista admirável” e,
de outro lado, o Mário de Portinari, o “poeta genial”.
Mas, fica a pergunta: de que lado estaria o Mário de Mário?

Como se pode imaginar a partir desses pares de oposiões que definem um sistema simbólico (Barthes, 1964), a elaboração dessas relações será muito complexa, fazendo do vínculo entre Mário e Portinari um relacionamento difícil, dificuldade explicitada nas cartas cuja apresentação não é o caso de detalhar neste momento. Só para dar uma ideia dessa dificuldade, chama a atenção que, nas sessenta cartas registradas, em metade delas se verifique a menção a algum tipo de doença, além das dores de cabeça, do desânimo e da solidão. Como interpretar esse fato, no contexto dessa amizade? É evidente que por intermédio de Segall e de Portinari, Mário descobre-se duplo – o soco no estômago ao qual se refere em várias cartas vem dessa revelação. Dissera Carlos Drummond de Andrade que o outro é esse “desconhecido que me habita e a cada amanhecer me dá um soco” (1984, p. 23). Com efeito, o soco tonteia Mário que tenta se recuperar por si mesmo, às custas de uma idealização – Portinari é o inteiramente bom, iluminado e genial. Ora, como se sabe, “a idealização é o processo psíquico pelo qual as qualidades e o valor do objeto são levados à perfeição”; e também se sabe que “a identificação com o objeto idealizado contribui para a formação das instâncias ideais da pessoa” (Laplanche & Pontalis, 1983, p. 291). Nessa medida, tratado de forma idealizada, o pintor configura-se um porto seguro para o espírito do poeta, “sempre inquieto e atormentado pelas forças do mal” (Souza, 2000, p. 298). Assim, quando Mário de Andrade se diz doente nas cartas, envia a Portinari sinais de fraqueza pessoal, de uma infecção pelo mal que Segall foi capaz de ver melhor. Segall é humano em oposição a Portinari, sobre-humano. E as nobres capacidades de Portinari como bondade e pureza, cuja expressão já está inscrita em seu nome próprio – Candido –, e que também se expressa por intermédio do cuidado amoroso que tem com os seus outros doentes – a mulher e o filho –, levam Mário a desejar se associar a estes e a se colocar sob a proteção do pintor. Vejamos um trecho de uma carta de março de 1944:

Você duns tempos pra cá tem aguentado duro com os contratempos de saúde de Maria e do João Candido. Mas não há de ser nada e ao menos, si isso não dá consolo, ao menos se conforte com este seu amigo. Não conte absolutamente a ninguém, não vale a pena, mas si melhorei muito de aspecto e estou bem mais forte, a verdade é que nada se resolveu até agora. Voltaram as dores, ainda não muito intensas e tenho podido sempre trabalhar de janeiro pra cá, mas o fato é que voltaram. As da úlcera e bem menos as de cabeça, felizmente. E por isso vou principiar talvez nesta semana mesmo um rosário de operações. Agora faço a extirpação das amígdalas, coisa que não tem importância nas crianças, mas que na minha idade requer cuidados, hospitalização e outras chateações. Já fiz uma porção de exames, e si o de coagulação e outras nem sei que coisas de sangue derem certo, coisa que vou saber amanhã, a operação das amígdalas se decide esta semana mesmo. Depois farei a da úlcera. O médico não quer, mas si se recusar, procuro outro operador. Não estou disposto a aguentar uma vida burra cheia de restrições. Não fui feito pra economizar a minha vida, você já bem que sabe disso, e assim como vou, de repente pego uma neurastenia daquelas. Já estou com os nervos esgotados e não aguento mais este suplício. Bom, basta de melancolias. Tenho muito que conversar com você, mas não faço agora. ... Espero em Deus que breve nos encontraremos. (Fabris, 1995, p. 131)

A que encontro Mário está se referindo? Um encontro livre de melancolias, encontro que o conjunto das cartas revela não ter sido possível? Ora, o que é próprio ao melancólico é uma perda, como se sabe desde Freud (1917/1976), sem que se chegue a saber o que foi perdido. E por que se trata de uma perda desconhecida, o encontro do objeto perdido torna-se impossível.

Em suma, como se vê, essas cartas de Mário de Andrade têm um forte apelo para a psicanálise, sobretudo no tocante ao fascínio que o ser humano sente por si mesmo com tanta facilidade e que, pensando com Freud, contribui para a dimensão alienante, própria do estado amoroso, através de uma projeção do seu ideal no outro.

Nesse sentido, vale lembrar o que afirma o psicanalista Christian David, ao refletir sobre o “estado amoroso”:

não há perspectiva propriamente amorosa sem o reconhecimento de uma irremediável insuficiência narcísica, mais exatamente, de uma inelutável exigência do outro enquanto outro e porque outro. É a diferença que essencialmente faz com que o objeto pertença ao dinamismo sexual. A semelhança reside somente na falta comum e na reciprocidade do desejo de repará-la. (1971, p. 182)

Ainda, nessa mesma direção, lembra-nos Joyce McDougall que:

ao inclinar-se sobre uma fonte para saciar a sede, Narciso percebeu pela primeira vez o próprio rosto, tão belo que ele se apaixonou pela imagem que via. A partir desse momento, não pôde mais se afastar do reflexo fascinante que as águas lhe devolviam, deixando-se perecer ali. Poderíamos imaginar que Narciso não ousa desviar o olhar dessa imagem tão arrebatadora e – será necessário supô-lo – tão esperada, sob pena de perder não apenas a ilusão amorosa, mas também a confirmação da própria existência? E mais, trata-se verdadeiramente de amor? ... O que falta a Narciso apaixonado pela própria sombra? Diz Ovídio – crédula criança, de nada adiantam esses vãos esforços ... o objeto do teu desejo não existe. (1989, p. 116)

Será isso verdade? Que os esforços de Narciso, criatura solitária, tenham sido vãos? E que inexiste o objeto de sua busca?

Nesse belo ensaio sobre o narcisismo, Joyce McDougall contesta essa interpretação, ao afirmar que, por um lado, se o encastelamento em si mesmo delimita um espaço impregnado de decepção e de desespero, por outro, é possível supor que esse ser frágil, à espreita de uma imagem de si mesmo duplicada, de um retrato, procura no espelho d’água um objeto perdido, diferente dele, um olhar.

Não é o caso de explorar aqui o quanto esse olhar procurado é o mesmo que toda criança busca avidamente no rosto materno, reflexo destinado a devolver para a criança o reconhecimento que lhe confere um lugar existencial e um valor psíquico próprio como sujeito. Também não é o caso de discutir as implicações da situação em que o olhar materno vela-se, desvia-se para uma dor que exclui a criança, ocasião em que o olhar não reflete mais nada. Seja qual for o significado da relação primordial e da eventual fragilidade de ambas as partes envolvidas, a criação de uma representação de si mesmo remete-nos à necessidade imperiosa para o ser humano de transcender o hiato constituído pela alteridade, exigindo que o fora faça parte do mundo interno em algum lugar do psiquismo. Joyce McDougall sugere que “a ilusão de uma identidade pessoal” pode eventualmente suprir esse vazio. A identidade subjetiva, diz ela, é uma necessidade psíquica essencial, tão importante quanto a identidade sexual. E, sem dúvida, “há pessoas para quem a manutenção da imagem e da homeostase narcísica requer a utilização de defesas ou de relações que desempenham um papel vital” (1989, p. 117). Aquele que busca salvaguardar o equilíbrio narcísico por meio de um arranjo particular em sua relação com o outro, ou afasta-se do mundo dos outros, vivido como uma ameaça para tão frágil equilíbrio, ou apega-se aos outros, demonstrando uma sede de objeto que só é saciada na presença daquele a quem incumbe a função de refletir a autoimagem fugaz. Nesse caso, o que está em questão não é a amizade ou o amor entre o eu e o outro, mas a sobrevivência psíquica de um em face do outro.

No decorrer da correspondência, observa-se que a frequência das queixas de Mário aumenta e o adoecimento definitivamente se instala a partir do projeto de escrever uma monografia sobre Portinari. Ora, que significa para Mário escrever sobre esse “criador genial”, esse duplo melancolicamente tão desejado e nunca encontrado? Uma vez que é característica do gênio não ser passível de explicação, lembrando Marthe Robert (1968, pp. 171-197), restam a Mário as infindáveis dores de cabeça que, quase, o impossibilitam de fazer e terminar o trabalho. Mas não só isso. Escrever sobre Portinari é correr o risco de se deparar com um ser que não é exatamente o Ser. Como Narciso, diante do risco de perder de vista aquilo que lhe serve de anteparo na superfície do visível, Mário talvez preferisse morreradoecer, ou até mesmo lançar-se no poço sem fundo da fusão mortífera (desistir de escrever), a enfrentar seu vazio interno, significado pela alteridade de seu parceiro. Eis o que diz uma carta de outubro de 1944: “São onze horas da manhã e acabo de terminar enfim o meu estudo sobre você ... Lhe confesso que me sinto muito triste, e mesmo abatido. Acho que está muito ruim e imagino que você não vai gostar” (Fabris, 1995, pp. 143-144).

E em uma última carta, em dezembro de 1944, escreve:

Sei que está muito ruim, mas eu estou atravessando agora uma fase dolorosa de depressão, de angústia moral, uma inquietação horrível que não me deixa sossego pra trabalhar com mais isenção de ânimo em escritos de crítica, e de estudo. Tudo sai violento, polêmico, irregular, desequilibrado, talvez franco demais. E a monografia sobre você reflete tudo isso. Paciência. Melhor não posso fazer atualmente e você terá que me compreender e me perdoar. Conheço o seu coração. Vou lhe mandar logo, nestes quinze dias o mais tardar, é só tempo de corrigir e tirar cópia, o que escrevi. Você leia, se dizendo “O Mário está sofrendo”, e assim creio que você me compreenderá. Mas compreender não significa aceitar, entenda bem. Eu não posso julgar por mim. Mas si você achar que o trabalho não adianta, ou mesmo possa prejudicar você na compreensão dos estrangeiros, mande dizer com doçura mas com franqueza. (p. 144)

Finalmente, formule-se a pergunta-chave deste escrito: é de um amigo que se trata aqui?

Se Mário de Andrade não se sentia à vontade com seu objeto de estudo, como diz com razão Annateresa Fabris (1995, pp. 37-38, 43), não me parece que este constrangimento se deva apenas a alguma “mágoa” e a algum “ressentimento” específico com relação a Portinari, ou às angústias de Mário sobre o sentido da arte e o papel do artista que o levam a pensar na urgência de uma “moral artística” que “é o que interessa, o que fecunda e eleva generosamente” ... “que exige o instrumento (obra de arte)” por intermédio do qual “você jamais pode perder de vista os outros homens”. Essa mágoa, parece-me, é mais antiga. A aflição em frente ao risco de perder de vista o outro, acredito, é anterior à relação com Portinari. Entretanto, as dores físicas e o sofrimento psíquico implicados nesse risco que as cartas denunciam, não são passíveis de uma interpretação mais exata, mais fina e encarnada. E esse é um limite inexorável que o psicanalista encontra ao se voltar para quaisquer obras de literatura e de arte. Mais precisamente, devo lembrar que, diante de uma obra, o psicanalista não tem ao seu lado a pessoa do autor, disponível para o devaneio associativo e o trabalho paciente da escuta. E que, em se tratando de um escritor cuja função é “dar forma aos sentimentos e à visão do mundo” dos indivíduos e dos grupos, forma com a qual organiza as nossas próprias emoções e nos liberta do caos, isto é, nos humaniza (Candido, 2004, p. 186), é com muita reserva que se deve considerar o alcance de qualquer afirmação acerca da sua subjetividade, apenas com base em um conjunto de cartas que a crítica tem o cuidado de incluir no conjunto mais amplo da obra de quem vive da (pela) palavra escrita – a chamada “literatura epistolar”. Mas, ainda que aquela operação fosse possível, ela não seria inteiramente legítima, pois não é possível saber se aquele tipo de escuta estaria autorizada pelo próprio poeta. Afinal, em uma correspondência entre Mário de Andrade e Otávio de Freitas Júnior, em junho de 1944, lê-se o seguinte: “Dê um jeito de escrever, carta sua eu acho melhor que psicanálise”. Ironia poética? Impossível saber.

 

Referências

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Endereço para correspondência
João A. Frayze-Pereira
Rua Joaquim Antunes, 727/72
05415 012 – São Paulo – SP
tel.: 11 4207-4781
E-mail: joaofrayze@yahoo.com.br

Recebido: 30/03/2010
Aceito: 22/04/2010

 

 

* Psicanalista membro efetivo da SBPSP. Professor livre-docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
1 Na ocasião do lançamento do livro Portinari, amico mio, seguiu-se um animado debate na Casa de Mário de Andradeà rua Lopes Chaves, em São Paulo, do qual participei junto aos críticos Mário Perniolla e Tadeu Chiarelli, além da própria Annateresa Fabris. O texto aqui publicado é uma versão modificada do que foi originalmente exposto naquele momento e publicado, depois, em um livro organizado por Giovanna Bartucci. (Cf. Frayze-Pereira, J. A. Cartas de Mário de Andrade a Portinari: uma questão de sobrevivência. In G. Bartucci (Org.) (2001). Psicanálise, literatura e estéticas de subjetivação (pp. 323-336). Rio de Janeiro: Imago.) Agradeço à Editora Imago a permissão para a republicação de excertos desse artigo.
2 Trata-se de um retrato de Mário de Andrade pintado por Lasar Segall.

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