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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.50 São Paulo jul. 2010

 

EM PAUTA - CARTAS

 

Meu caro Sigmund

 

My dear Sigmund

 

 

Noemi Moritz Kon*

Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esse artigo, uma ficção instrumental, trata da tão conhecida relação epistolar estabelecida entre Sigmund Freud e Wilhelm Fliess que, marcada por uma alta intensidade transferencial, sustentou o processo de autoanálise de Freud, o verdadeiro marco inaugural para toda a clínica e a metapsicologia psicanalíticas.

Palavras-chave: Sigmund Freud, Wilhelm Fliess, Autoanálise, Transferência, Ficção.


ABSTRACT

This article, a piece of instrumental fiction, deals with the well-known relationship by an exchange of letters between Sigmund Freud and Wilhelm Fliess, which, highlighted by a high transferential intensity, gave rise to Freud’s process of auto-analysis, the true starting point for the whole of psychoanalytical clinic treatment and meta-psychology.

Keywords: Sigmund Freud, Wilhelm Fliess, Auto-analysis, Transference, Fiction.


 

 

Tudo começou há 25 anos, com um telefonema.

Quem me chamava, então, era uma velha conhecida de minha avó paterna – falecida meses antes daquele contato –, a senhora Lichtheim. Não a via desde os minianim em homenagem à minha avó, aquelas cerimônias que se realizam quando um membro da comunidade judaica morre. Naquela ocasião, trocamos um cumprimento emocionado, no qual reconhecíamos a dor que ambas sofríamos por nossa perda, ela de sua grande companheira desde a infância em Viena e eu de minha muito querida avó. Não havia mais pensado em Hélène Lichtheim desde então, apesar de tê-la encontrado por anos a fio, e com alguma regularidade, no chá da tarde na casa da “senhôrra Môritz”, como troçávamos, carregando no sotaque germânico.

Certo desconforto me tomou por ter simplesmente apagado da mente aquela que por tantos anos havia compartilhado tão de perto os maiores segredos de minha avó, acompanhando seus passos, passagens e travessias, tornando-se, enfim, a grande testemunha da história de uma parte significativa de minha família.

E eis que, mais uma vez – e agora, graças à gentil carta-convite da revista ide para este número especial –, ressurge a senhora Lichtheim, como um fantasma que vem do nada, me assustando por lembrar-me de tê-la esquecido.

Mas voltemos ao telefonema. A senhora Lichtheim chamava-me para conhecer sua nova casa. Adiantava que queria também conversar e me mostrar algumas cartas antigas que encontrara por acaso entre objetos redescobertos, quando preparava sua mudança de residência. Foi com prazer que aceitei o convite, imaginando que me reencontraria de alguma forma, também, com minha avó.

Cheguei à sua casa em uma tarde ensolarada de sábado. Sempre muito receptiva, a senhora Lichtheim, depois de levar-me por um passeio por todos os cômodos, pediu-me que a aguardasse no escritório, onde o chá e o bolo seriam servidos. O aposento, amplo e aconchegante, era totalmente tomado por estantes repletas de livros, fotografias e pequenas telas, objetos de todos os tipos, estatuetas e esculturas antigas e modernas, cálices de prata, vasos de cristal, bibelôs de tamanhos, cores e formatos variados, máquinas fotográficas antigas, binóculos e monóculos... enfim, um ajuntamento curioso e fascinante para os olhos seduzidos pela engenhosidade que só os humanos têm.

Enquanto explorava aquela coleção, eu procurava me lembrar um pouco mais do que sabia sobre Hélène Lichtheim. A família Lichtheim habitava Viena há muitas gerações. Lá comandavam um grande escritório de advocacia e também um conhecido antiquário. Os Lichtheim eram sabidamente influentes na comunidade judaica de Viena. Hélène convivera com minha avó desde bebê, já que as famílias eram muito próximas e residiam lado a lado. Cresceram muito íntimas, ela e minha avó, ambas filhas únicas, frequentando a mesma escola e passando tardes e tardes de brincadeiras nos amplos jardins de suas casas. A perseguição aos judeus em toda a Europa trouxe-as, a elas e a suas famílias, ao Brasil. Uma viagem de carro, com muitos obstáculos e vigilâncias de fronteiras, os levou à Suíça, à Espanha e, por fim, a Portugal, de onde embarcaram no porto de Lisboa rumo à cidade do Recife, vindo depois para Santos e São Paulo, isto em 1940. Era tudo o que eu sabia.

E assim, enquanto me perdia em minhas rememorações e nas lombadas de fino couro marrom que revestiam os grossos livros da estante que ficava atrás da escrivaninha de trabalho, fui surpreendida por minha anfitriã. Ela equilibrava com alguma dificuldade uma grande bandeja com xícaras de porcelana, um lindo bule florido, pratinhos, talheres e guardanapos, além de um bolo branco, o “bolo de areia”, que reconhecia ser – ou ao menos desejava que fosse – uma das receitas de minha avó que eu mais apreciava. Como tudo aquilo era reconfortante para mim! Era como se fosse possível retornar no tempo, ou melhor, fazer com que o tempo carregasse em seus braços, e para sempre, as presenças que amamos.

Sentamo-nos comodamente nas duas pequenas poltronas que ladeavam a mesinha de centro que recebeu a bandeja com nosso chá.

– Achei as cartas que desejo lhe mostrar dentro daquele busto – apontou-me com a mão um pouco trêmula –, aquele que está logo ao lado dos livros que você observava. Descobri-as, literalmente, por acidente, quando derrubei a peça de terracota ao espaná-la. Eu me surpreendi ao encontrar dentro dela um rolinho de papel de seda com as duas cartas e, ainda hoje, tenho apenas uma vaga ideia de como elas teriam ido parar lá. Sei que o busto pertencia a uma tia “torta”, a esposa de um dos irmãos de meu pai, Anna, que o teria ganho de um amigo – disse-me Hélène Lichtheim, abrindo uma pequena gaveta na mesinha lateral, da qual retirou dois pequenos envelopes de papel fino e amarelado, enrolados como pergaminhos, e sobrescritos com uma caligrafia em estilo gótico que eu conhecia tão bem. – Vamos tomar logo o chá, antes que esfrie. Enquanto isso, eu conto um pouco mais dessa história.

– Por toda a vida morei na casa de meus pais, jamais me casei. Só agora, com quase oitenta anos, tenho a oportunidade de viver em meu próprio lar e para cá trouxe uma série de objetos e pertences que guardam a tradição da família Lichtheim, nosso tesouro, como o chamávamos, e que nos foi enviado no final da guerra por amigos que permaneceram na Áustria. Continuo ligada a cada um desses objetos e não poderia ser diferente: são a minha vida. Os livros que você examinava pertenciam ao antigo escritório de advocacia de meu pai e trazem uma parte da história comercial e familiar da comunidade judaica de Viena. São cartas, atas, contratos sociais, registros de nascimento e morte, acordos pré-nupciais ou de separações, documentos de todos os tipos... tudo muito interessante... Mas não é desses papéis que desejo falar. Quero mostrar estas duas cartas que encontrei e que estavam tão bem guardadas dentro daquela estatueta que representa, como você deve saber, a cabeça do deus romano Janus. Não sei se você entende o alemão, mas, se quiser, posso traduzi-las para você.

Aquele prazer inicial de reencontrar o ambiente conhecido foi substituído por uma espécie de desassossego e, ao mesmo tempo, por uma grande curiosidade. Que cartas seriam essas e por que justamente eu teria sido convidada para conhecer o seu teor? Trariam algo insuspeito sobre minha família?

– Por favor, frau Lichtheim, traduza-as para mim. Quero muito saber do que tratam – pedi-lhe com avidez.

Lastimo muitíssimo não ter gravado o trabalho de tradução de Hélène. É mesmo uma enorme pena. Tenho hoje comigo apenas fragmentos das anotações que fiz naquela mesma hora, quando, pouco a pouco, uma ideia bizarra foi se formando em mim, confirmando-se em meus pensamentos e se configurando como um achado arqueológico para a psicanálise, um achado daqueles que Sigmund Freud, em seus primeiros tempos, certamente teria enorme prazer em trazer ao mundo.

Temo que, ao retomar e transcrever aqui minhas notas de então, para compartilhá-las, tenha acabado por falsear um tanto o que estava escrito naquelas cartas. Não introduzi nada que não estivesse no texto original, mas (e nem mesmo sei se foi hoje, ou naquela tarde fantástica na casa de Hélène Lichtheim) tive de introduzir alguma coerência às frases soltas e interrompidas que reencontrei em meu manuscrito:

Berlim, 28 de julho de 1897

Meu caro Sigmund,

Fiquei muito satisfeito em receber notícias suas. Há dias me perguntava se você teria se esquecido de mim.

Ida e Robert vão muito bem; agradeço seu interesse. As férias de verão favoreceram o crescimento da criança. Lastimo não termos nos encontrado; teria gostado muito de estar com vocês em Aussee, mas a saúde de minha senhora não permitiu que isto acontecesse. Estou certo de que no próximo ano nadaremos juntos no Grundlsee. Será, digamos assim, um congresso aquático.

Retornei a Berlim cinco dias antes deles, no dia 23. [...] Ida está livre de um resfriado (talvez histérico) que a vinha incomodando por várias semanas [...]; retirei parte da mucosa de sua narina esquerda que estava totalmente inflamada. Ela teve melhora imediata, mas outro sintoma recrudesceu: uma dor de cabeça que a tem perseguido desde o parto. Com certeza tem a ver com a expectativa de retomada de seu período menstrual. Minhas contas indicam que isto se dará em dez ou, talvez, trinta e oito dias, ou ainda em sete ou trinta dias. Veremos. E disto, como sabemos, dependerá o sexo de meu próximo filho. De toda forma, temos, mais uma vez, a confirmação de quão importante para a saúde psicológica é a atenção à higiene da mucosa nasal.

Quanto à sua inibição na escrita, meu amigo, a nicotina é certamente a responsável. Não tenho qualquer dúvida sobre isso. Sua ação mais danosa – como já discutimos – se dá, sobretudo, nas vias respiratórias, impedindo, ou ao menos dificultando, a troca gasosa na mucosa do nariz. Como já ficou provado, a etiologia da neurose reflexa é a inflamação nasal e a fumaça do charuto é altamente inflamatória. Pare de fumar, Sigmund, e utilize uma vez mais a cocaína: ela dilata eficazmente os brônquios, faz a assepsia necessária e movimenta a energia vital. Afinal, todos nós temos obtido ótimos resultados com ela até agora, não? Você se sentirá outro. Seja um bom paciente e siga corretamente minhas orientações. E, não se preocupe, você tem pelo menos dez anos para que sua arritmia entorpeça de vez seu pobre coração e, até lá, teremos recebido seguramente o reconhecimento que merecemos. [...] Portanto, meu amigo, não fique tão alarmado. As crianças logo sararão de mais esses desarranjos intestinais e você, de sua constipação. Tenho certeza de que retomará com liberdade sua escrita. Afinal, seu público único aguarda o espetáculo.

Abraços carinhosos a Martha e aos seus queridos filhos.

Seu,
Wilhelm.

Não acreditava no que ouvia! As fichas iam caindo e todas as peças se encaixavam. Mas não era possível... Minhas hipóteses iniciais, que me pareciam tão absurdas, foram ganhando consistência. No entanto, eu não podia crer em minhas suposições.

Hélène evidentemente já teria desconfiado de algo extraordinário, ou não teria me chamado. Observava minhas reações, apenas para confirmar suas próprias suspeitas? Ela conhecia meu percurso de formação, sabia de meus interesses e estudos... minha avó jamais deixaria de comentar com ela os “feitos” de seus netos. Mas como é que aquelas cartas haviam ido parar lá?

– Por favor, senhora Lichtheim, poderíamos ler a segunda carta?

– Claro, claro, querida! Ouça:

Berlim, 24 de setembro de 1897

Meu caro Sigmund,

Um “idílio a dois”, que ideia maravilhosa! E no dia 28, seria perfeito! Nosso encontro viria bem a calhar; teríamos, então, um dia e meio para que eu o colocasse a par dos novos achados da teoria da bissexualidade. Ela nos levará ainda mais longe do que eu podia imaginar a princípio.

Fico feliz em percebê-lo menos taciturno, apesar das dúvidas com relação à sua neurótica. As mulheres são mesmo pródigas em nos confundir com seus ritmos peculiares e com suas informações fantasiosas. Mas algum dia, meu caro, e apesar delas, você será laureado como aquele que solucionou de uma vez por todas o mistério da histeria.

Mas, de todos os comentários em sua última carta, o que encontrei de mais curioso foi sua confusão ao transcrever o tão conhecido versículo do segundo livro de Samuel, cujo enunciado – fui checar – é o seguinte: “Al tagídu beGát, al tevassrú behutzót Ashkelón, pen tismákhna bnot haplishtim, pen taalózna bnot hearelím”, e que eu traduziria como: “Não o digais em Gat nem o anuncieis nos arredores de Ashkelon, para que não se alegrem as filhas dos filisteus, para que não se regozijem as filhas dos incircuncisos”. Não tenho a menor ideia de que significado há neste engano; deixo o trabalho de decifração para o senhor dos sonhos.

De toda maneira, concordo inteiramente com você. Por enquanto devemos nos resguardar dos filisteus. Nossa guerra persiste e nós os atacaremos quando estivermos com plenos poderes, certos do triunfo. Avise Rebeca, então, para que guarde bem guardado o seu vestido, pois logo mais haverá casamento.

Abraços aos seus. Até o dia 28.

Seu,
Wilhelm.

Era mesmo inacreditável! Impossível! Que achado! Eu não cabia em mim de tanta excitação!

Ora, qualquer estudante de psicanálise que tenha se apropriado minimamente da saga da invenção da disciplina já se deparou com o personagem Wilhelm Fliess. E comigo não foi diferente. Para mim, sempre foi evidente a importância de se conhecer a história de criação de um determinado saber, para, de fato, inteirar-se deste saber, quanto mais no caso da psicanálise, uma ciência autoral – poderia dizer assim –, inteiramente tomada pela presença subjetiva de seu criador.

Sabia, portanto, que na genealogia das grandes amizades/rivalidades, tão características das relações que Sigmund Freud estabelecia com homens, Fliess vinha depois de Joseph Breuer – um pai – e antes de Carl Gustav Jung – um filho. Não era nenhum segredo que Wilhelm Fliess assumira para Freud o lugar de irmão, de parceiro ambicioso e incentivador de suas ousadias, de um quase amante, e tudo isto no momento mais nevrálgico de sua vida, quando ocupou a função de confidente e escora em seu processo de autoanálise, justamente no período de luto pela morte de seu pai, Jakob, acompanhando-o bem de perto na fundação dos primeiros marcos do edifício psicanalítico. Eu simplesmente não conseguia acreditar no que ouvia, mas, ao mesmo tempo, não tinha mais dúvidas: eram duas cartas de Wilhelm Fliess endereçadas ao criador da Psicanálise, as quais todos sabíamos terem sido queimadas pelas mãos do próprio Freud, e que agora reapareciam, mais de oito décadas depois de terem sido escritas, em um lugar tão improvável quanto o Brasil, um rincão distante do mundo dito civilizado. Inacreditável!

Como isso teria sido possível?

E não era só isso! Havia questões ainda mais relevantes do que as que diziam respeito ao mistério da sobrevivência dessas duas cartas. Pensava, por exemplo, na intimidade compartilhada entre analista e analisando e no assim chamado “amor de transferência”. Era evidente que uma grande paixão – “um idílio a dois!” – marcava a relação daqueles jovens em busca de sucesso e poder. Pareciam ter olhos apenas para si mesmos. Havia sido por isso que Freud guardara as cartas, e justamente em uma cabeça de Janus: duas cabeças em uma só, com suas duas faces justapostas, ainda que olhassem para lados opostos?

E, ainda, o que poderia significar ter acesso às palavras daquele que havia sido capaz de sustentar o lugar transferencial de psicanalista daquele que foi o psicanalista de todos os psicanalistas? Era como se através dessa descoberta eu pudesse alcançar as palavras do irmão mais velho ou, quem sabe, do pai de Deus, me enfiando na cabeça do grande Outro. Como se pudesse estar lá, no grau zero, exatamente no momento da concepção do bebê-psicanálise.

Ao mesmo tempo, a banalidade daquela comunicação – pois é certo que Fliess não dizia nada de tão especial a Freud naquelas cartas – me fazia pensar na qualidade do ofício do psicanalista que, por meio da escuta, ainda que canhestra ou estabanada (e, nesse caso específico, ainda que realizada não de corpo presente, mas através da leitura), pode suster a inauguração de uma criação tão extraordinária como a da psicanálise. É mesmo um ofício dos mais estranhos, este, o do psicanalista... ser oportunidade, ser receptividade para a criação, por meio de uma escuta-útero. Mas a trivialidade que encontrava naquelas duas cartas me fazia pensar também na decepção ou, melhor, na desidealização necessária para se alcançar o melhor de uma relação humana. Quero dizer, estamos sempre à procura da grande mamada, da grande transa, e o que podemos ter – e isto quando temos mesmo muita sorte – é um bom encontro.

Não conseguia parar de pensar. Imaginei, então, na sorte que nós psicanalistas havíamos tido de possuir um vazio no lugar da palavra do irmão-pai de nosso “Deus” (ainda que de “Deus” em sua infância). Um vazio daqueles que se abre para ser preenchido ou visitado por uma infinidade de conteúdos. Pois é a multivocidade, a polissemia da palavra psicanalítica que, montada no vazio que a sustenta, pode permitir, em seu diálogo com o mítico psicanalista de cada um e de todos nós, a invenção de uma significação sempre móvel, instituinte, que trabalha no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, que se esquiva da palavra acabada e que, assim, trapaceia a palavra que se pretende completa. A psicanálise, como a literatura, é mesmo a potência de usar a palavra fora do poder. Era isto, então, que Barthes (1980) teria desejado dizer com “A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos importa. Por outro lado, o saber que ela mobiliza nunca é inteiro nem derradeiro; a literatura não diz que sabe alguma coisa, mas que sabe de alguma coisa; ou melhor: que ela sabe algo das coisas – que sabe muito sobre os homens”.

Despertei de meus pensamentos com os olhos de Hélène depositados em mim.

– Você também pensa que estas cartas foram escritas por Wilhelm Fliess? – ela me perguntou.

Assenti, admirada por perceber o quanto frau Lichtheim sabia do assunto.

– Não conheço muito de psicanálise, fiz apenas algumas leituras quando mais jovem, quando ainda imaginava que poderia seguir carreira em medicina. Mas tantas coisas aconteceram... – comentou Hélène. – Doenças, decepções amorosas, o antissemitismo, a guerra, a fuga para o Brasil... Mas me lembro muito bem de ter ouvido falar, quando era bem pequena, do sucesso do tratamento psicanalítico de minha tia Anna, viúva do irmão de minha mãe. Anna Lichtheim nasceu em Viena e era filha de Samuel Hammerschlag, como vim a saber pesquisando nos velhos livros do escritório de advocacia de meu pai, que foi professor de hebraico de, ninguém mais, ninguém menos, Sigmund Freud! Que mundo pequeno, não? Creio que foi ele mesmo, Freud, o amigo que deu a cabeça de Janus bifronte, o deus romano com a face dupla, que olha e guarda o interior e o exterior, para Anna. Mas por que teria escondido as duas cartas dentro daquele busto? Isto eu ainda não sei, mas tenho bastante tempo livre para meditar e o aproveito para fazer minhas pesquisas. As biografias de Sigmund Freud dizem muito pouco da amizade entre ele e Anna; falam apenas do fato de ele ter escolhido o nome Anna para a sua caçula, o que indica seu apreço por ela, e da participação de Anna nos restos diurnos no famoso sonho da injeção de Irma, que ele teve na noite do dia 23 para 24 de julho de 1897. Vários comentadores apontam para o fato de que este sonho de Freud revela e ao mesmo tempo esconde a imperícia de Fliess no caso de Emma Eckstein – você certamente sabe que ele esqueceu um bom pedaço de gaze em sua cavidade nasal, quando a operou em 1895! Freud procurou negar a incompetência do amigo, dizendo, mais tarde, que as dores, o mau cheiro e o sangramento nasal de Emma seriam apenas sintomas de histeria. Nessa mesma época, ele também procurava negar a responsabilidade de seu pai, Jakob, em sua própria histeria; abandonava a hipótese da sedução paterna e ia em direção aos desejos e às fantasias edípicas das crianças. Um momento heroico e de virada. Li ainda sobre quando Freud conheceu Fliess em Viena, isto no ano de 1887, por intermédio de Breuer, e também sobre o rompimento violento entre os dois, quando o otorrinolaringologista acusou Freud de plágio e de ter quebrado a confiança e o sigilo que os unia, ao comentar com um paciente sobre a importância dos fenômenos periódicos e da natureza bissexuada da condição humana. Freud bem que tentou a reconciliação, mas Fliess foi inflexível. Fiquei sabendo da querela sobre a venda das cartas de Freud a Fliess, por Ida Bondy, a mal-afamada mulher de Fliess, a um livreiro de Berlim, Reinhold Stahl, apenas alguns meses após a morte de seu marido em 1928 (embora outras fontes digam que as cartas foram vendidas, em 1936, por seu filho Charles), com a condição de que jamais fossem passadas a Sigmund Freud, que certamente as destruiria, assim como havia destruído as que o marido lhe escrevera. As cartas teriam sido então compradas e guardadas em segurança (a despeito do desejo de Freud, que queria dar cabo delas) por Marie Bonaparte, discípula e analisanda de Freud, por cem libras, e só foram publicadas – ainda que depois da censura obscura dela mesma, de Anna Freud e de Ernst Kris – no ano de 1950, em um livro que recebeu o título As origens da psicanálise. Todas estas informações constam das várias biografias de Freud. Pude comprovar a força desse recalque quando notei que as cartas de Freud que falam de todo o episódio com Emma Eckstein, por exemplo, não aparecem no livro. Só em 1985 foi, enfim, publicada a edição completa das cartas.

Fiquei perplexa diante do preparo de Hélène.

– A senhora evidentemente utilizou muito bem seu tempo livre, frau Lichtheim. Mas, afinal, qual a sua hipótese para as cartas terem sido entregues aos cuidados de Anna, ainda que escondidas na cabeça de Janus? A senhora pensa que o próprio Freud as teria colocado lá?

– Não sei. Não consegui chegar a uma conclusão. As cartas estavam guardadas no oco da peça, isso é certo. O fundo do busto estava bem selado por uma espécie de couro. E, antes da queda, nada indicava que havia algo ali dentro. Elas foram mesmo escondidas, e muito bem escondidas, lá. Por quem? Por Anna? Por Freud? Sinceramente, não sei. Mas, de uma coisa tenho certeza: elas são originais. Consegui datar o papel das cartas, comparei a grafia e a escrita com outros documentos da mesma época...

– E o que pretende fazer com elas?

– Tenho refletido sobre isto também. Pensei em doá-las para a Biblioteca do Congresso em Washington, onde foram depositados os Arquivos Sigmund Freud, mas ainda não tenho certeza se este é o melhor caminho. Tenho lá as minhas críticas em relação ao uso que se tem feito do material biográfico e da intimidade de Freud, considerados sigilosos pela ortodoxia freudiana, pelos guardiões do templo, como dizem, e também fiquei sabendo que o material fica disponível apenas para alguns poucos pesquisadores afortunados que pertençam prioritariamente a grupos vinculados à IPA... Não penso que isto seja correto. Mas, de fato, ainda não sei o que fazer – falou ela, guardando novamente os dois pequenos envelopes na gaveta da mesinha lateral.

Deixei a casa de frau Lichtheim e fui imediatamente iniciar, eu também, as minhas pesquisas.

Os comentadores eram unânimes: consideravam francamente neurótica a relação entre Freud e Fliess. Fliess teria ocupado um lugar transferencial de alta voltagem, propício para o desenrolar da autoanálise de Freud (a Psicanálise inaugural, inspiração para todas as que se seguiram), na qual sentimentos ambivalentes, de amor e ódio, com relação ao pai e à mãe foram vivenciados. Fliess foi descrito como o alter ego de Freud, como o seu duplo, o seu professor, o “sujeito do suposto saber”, o amigo desejado por sua parte feminina, aquele capaz de “saciar sua fome e sua sede”, enfim, o modelo idealizado para o psicanalista do pai da Psicanálise. E só tendo em mente a magnitude e a qualidade narcísica da energia investida nessa relação é que seria possível compreender que teses extravagantes como aquelas de Fliess, que relacionavam a estrutura da mucosa nasal à dos órgãos genitais e que afirmavam a importância exclusiva da bissexualidade e da periodicidade de 23 e 28 dias para a compreensão da etiologia e para a cura das doenças psicológicas, apesar de serem inconciliáveis com as novas ideias psicanalíticas, tenham sido sustentadas, e sem qualquer crítica, por Freud.

Com relação a Anna Lichtheim, obtive poucas novidades. Ela era filha do estimado professor de religião de Freud, Samuel Hammerschlag, que o sustentou por algum tempo, e foi uma de suas pacientes prediletas, a ponto de ele ter lhe concedido o lugar de madrinha de sua filha Anna. Enviuvou cedo e trabalhou como professora de crianças. Compõe, junto com Emma Eckstein, outra paciente querida de Freud, a figura de Irma, no famoso sonho da injeção de Irma, considerado o primeiro sonho analisado de Freud.

Com relação às cartas descobertas por Hélène Lichtheim, pude me certificar de que a segunda carta de Fliess por ela traduzida era certamente uma resposta à famosa carta 69, que Freud escrevera em 21 de setembro de 18971. Todavia, demorei muito a descobrir a correspondência de Freud a que Fliess respondia na primeira das cartas. Isto só aconteceu quando, muito tempo depois, ao retomar a biografia escrita por Jones, encontrei parcialmente transcrita uma carta de Freud datada de 7 de julho de 18972 (Jones, 1979, p. 309). Esta carta não constava do volume que eu possuía de As origens da psicanálise.

Jamais mencionei o episódio das cartas. Não divulguei qualquer informação, pois assim havia prometido à senhora Lichtheim. Não sei se ela as vendeu ou se as doou para a Biblioteca do Congresso em Washington, e se, assim, mais uma vez o processo de recalcamento na história da psicanálise se manifestou. Não sei se as guardou novamente na cabeça de Janus3 e deixou que, simplesmente, a sorte fizesse das suas. Hélène Lichtheim faleceu com quase cem anos e deixou suas posses para sobrinhos, mais ou menos afastados, e também para instituições judaicas. Falamo-nos ainda algumas vezes, mas nunca voltamos ao assunto.

De toda forma, vivemos hoje um momento importante, no qual as obras de Freud caíram em domínio público. Teremos a chance de ler sua obra em traduções inéditas, a partir do original em alemão, que, provavelmente, deixarão de ter a coloração cientificista da Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud e lhe darão novas e múltiplas vozes. Quem sabe, nós, que não dominamos a língua alemã, poderemos enfim compreender o porquê de Freud ter sido recompensado, em 1930, com o prestigioso prêmio Goethe, como “escritor e cientista em igual medida”, aliás, a única premiação que recebeu em vida. Quem sabe, afinal, não seja esse o momento certo para termos acesso àquilo que permanece até hoje censurado (a série Z dos Arquivos Sigmund Freud, que foi, a partir de 2000, renomeada como séries “restricted” e “closed”, permanecendo guardadas na Biblioteca do Congresso4), e que só será integralmente disponibilizado, pela Sigmund Freud Copyrights, a partir de 2100. Pensei, portanto, que esta poderia ser uma boa hora para também tornar públicas as minhas versões daquelas cartas.

Deixo aqui minha pequena e parcialmente ficcional5 contribuição aos novos tempos e a minha homenagem a Anna e Hélène Lichtheim e a Margot Moritz.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Noemi Moritz Kon
Rua Augusta, 2445/2
01413-100 − São Paulo − SP
tel.: 11 3083-6193
E-mail: kononi@aclnet.com.br

Recebido: 30/03/2010
Aceito: 30/04/2010

 

 

* Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, mestre e doutora de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da USP, autora de Freud e seu duplo: reflexões entre psicanálise e arte; A viagem: da literatura à psicanálise, e organizadora e apresentadora de 125 contos de Guy de Maupassant.
1 “… Confiar-lhe-ei de imediato o grande segredo que lentamente comecei a compreender nos últimos meses. Não acredito mais em minha neurótica [teoria das neuroses]. Provavelmente, isso não é compreensível sem uma explicação; afinal, você mesmo considerou crível o que lhe pude dizer.... Se eu tivesse deprimido, confuso ou exausto, as dúvidas desse tipo deveriam, por certo, ser interpretadas como sinais de fraqueza. De vez que estou num estado oposto, devo reconhecê-las como o resultado de um trabalho intelectual honesto e esforçado e devo ter orgulho, depois de ter ido tão a fundo, de ainda ser capaz de tal crítica. Será que essa dúvida simplesmente representa um episódio prenunciador de um novo conhecimento? Também é digno de nota não ter havido nenhum sentimento de vergonha, para o que, afinal, poderia haver uma justificativa. Certamente, não vou contar isso em Dan nem publicá-lo em Ascalon, na terra dos filisteus. Mas, perante você e perante mim mesmo, tenho mais um sentimento de vitória do que de derrota − e, afinal, isso não está certo.” (Freud, 1895/1976, pp. 350-352). O ato falho na citação feita por Freud é apontado na nota 1 da p. 352 e discutido em artigo de Renato Mezan (1988). “Que sorte a minha sua carta ter chegado precisamente nesse momento! Oferece-me a oportunidade de adiantar uma sugestão com a qual me propunha concluir minha carta. E se, durante esse período de escasso trabalho, eu escapasse num sábado à noite até a estação Noroeste, poderia estar com você no domingo ao meio-dia, retornando na noite seguinte. Você poderia então dedicar todo o dia a um idílio de dois, interrompido por um de três ou de três e meio? É isto que eu queria perguntar a você. Prossigo agora com minha carta. Quero mudar um pouco as palavras de Hamlet: To be in readiness: “tudo é estar contente”. Por certo que poderia sentir-me muito desanimado: era tão bonita a perspectiva de fama eterna e de seguro bem-estar, a plena independência, viajar, tirar de meus filhos as graves preocupações que tanto atrapalharam minha própria juventude!... Tudo isto dependia de que a histeria fosse solucionada. Agora tenho que me acostumar novamente a calar e ser humilde, a me preocupar e a poupar, e, ao dizer isto, me lembro de um desses pequenos ditos que tenho em minha coleção: ‘Tira esse vestido, Rebeca, que as bodas terminaram!’....” (Freud, 1975, pp. 217-218 [minha tradução]).
2 Só consegui a versão completa desta carta em 1986, já depois da abertura ao público da maior parte dos Arquivos Sigmund Freud, quando A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess (1887-1904) foi publicada. Algumas partes merecem ser retomadas: “Viena, 7 de julho de 1897. Querido Wilhelm. Sei que, no momento, estou imprestável como correspondente, sem nenhum direito a pleitear coisa alguma, mas nem sempre foi assim e nem continuará sendo. Ainda não sei o que está acontecendo comigo. Algo proveniente das mais recônditas profundezas de minha própria neurose insurgiu contra qualquer progresso na compreensão das neuroses e, de algum modo, você foi envolvido nisso. Isso porque minha paralisia redacional me parece destinada a inibir nossa comunicação. Não tenho nenhuma garantia disso, apenas sentimentos de natureza altamente obscura. Não terá nada desse tipo acontecido com você? ... O que mais me interessa com respeito ao verão é onde e quando nos encontraremos. O fato de que nos encontraremos está fora de dúvida. ... Tudo tem corrido bem em Aussee. Estou muito ansioso por receber notícias suas. ... Seu, Sigmund” (Freud, 1986, pp. 255-257).
3 Sabe-se que Freud adquiriu, em 1899, uma cabeça de Janus, de origem romana, com duas faces esculpidas em pedra. Esta imagem era, normalmente, colocada sobre os portões das residências, de tal forma que uma das faces mirava o interior e a outra olhava para o exterior (Gamwell, 1994).
4 Para mais informações sobre a atual política de restrição ao acesso aos originais de Sigmund Freud, vale conhecer o site do Sigmund Freud Archives. <http://www.freudarchives.org/index.html>.
5 A fim de evitar equívocos, esclareço que Hélène Lichtheim e as duas cartas supostamente escritas por Fliess só existiram em função de alguma pesquisa e trabalho de imaginação. As outras informações contidas no texto, inclusive as relativas a Anna Lichtheim, são fidedignas. Com relação à discussão da im portância da potência heurística da ficção para a compreensão da clínica e da metapsicologia psicanalíticas, ver minhas publicações de 1996, 2003 e 2005.

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