SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.33 número50Meu caro SigmundPsicanálise: os próximos 100 anos índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.50 São Paulo jul. 2010

 

EM PAUTA - CARTAS

 

A carta do Dia D

 

The D-Day letter

 

 

Anna Veronica Mautner*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Folha de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Comparo o pensamento de Ferenczi e Freud à diferença entre Viena e Budapeste. Escolho a carta do dia 26 de junho de 1914 por me parecer indicativa do clima reinante entre os psicanalistas, inteiramente envolvidos em suas próprias lutas intestinas, apesar do evento traumático do dia – o assassinato do arquiduque austríaco.

Palavras-chave: Identificação com líderes, Individualismo, Língua do afeto, Língua da razão.


ABSTRACT

I compare the thoughts of Ferenczi and Freud to the difference between Vienna and Budapest. I choose the letter of June 26, 1914, as it appears to be indicative of the ruling atmosphere among psychoanalysts, who were totally involved in their own visceral struggles, in spite of the traumatic event of the day − the murder of the Austrian archduke.

Keywords: Identification with leaders, Individualism, The language of affection, The language of reason.


 

 

Podemos ler a história da psicanálise e a história político-social da Europa como se fossem sincronizadas. O confrontar do indivíduo e seu mundo se refletiria não só na pesquisa sobre a formação do “eu” como nas tentativas políticas de controle desse mesmo “eu” de cada um, tudo sob o título “ego”. As necessidades do “eu” na família e do “eu” do cidadão muitas vezes entravam em conflito – a maior parte das vezes. E é exatamente nesse ponto que encontramos o desenvolvimento da psicanálise enquanto tentativa de solução individual desse percurso. Como tornar tolerável essa dicotomia ora mais, ora menos estressante?

Delimitar a esfera do público e do privado foi o grande conflito psicossocial desde a Revolução Francesa até a Grande Guerra de 1914 a 1918. As agências reguladoras, como a Igreja, o Estado, o sistema educacional e a família, tentaram. Na política, a questão da identificação com líderes ou a do mergulho individualista na massa/multidão ocupou sociólogos, historiadores e – por que não? – psicólogos, que vieram a criar a psicanálise.

Depois de os povos do Império Austro-Húngaro terem vivido seus setenta anos de paz, parece que foi muito difícil encarar a existência da política predatória fora das fronteiras. Os adultos que nasceram no começo do século XX se criaram sem guerra, apenas ouvindo falar de coisas incríveis ocorridas em outros tempos. A habilidade política dos imperadores austríacos evitou climas pesados de oposição dentro de suas fronteiras. Conviviam aí povos de inúmeras nacionalidades, línguas e tradições. A distância entre Moldávia e Viena ou Budapeste e Viena era apenas geográfica, enriquecida pela presença de dois tipos de língua: a local, dos lares, dos afetos, das origens, e a do Império. Não é difícil imaginar por que psicanalistas da geração de Freud tivessem desenvolvido teorias a respeito da língua materna, do afeto, e da língua da razão, do adulto. As línguas não brigavam entre si, complementavam-se, assim como os dialetos. Nesse oásis de paz, nasce a psicanálise. Cidadãos e intelectuais de toda parte do Império afluíam a Viena, pela sua arte, pintura e – por que não? – ciência. As diferenças eram toleradas, a estratificação da sociedade, respeitada. Nem o anti-islamismo, nem o antissemitismo explodiam.

Freud e seus colegas – Ferenczi especialmente – viveram, pois, em um clima sereno, com regras bem estabelecidas. Observaram o mundo, apesar da repressão, das invejas disseminadas entre os vários segmentos. Era uma paz aparente, mas o suficiente para permitir a observação dos fenômenos ocultos que aí ocorriam. Um médico era um médico, um homem de classe média era um homem de classe média, com seus anseios, mas controlado por regras equilibrantes. Freud tinha ambições, mas também condições tranquilas de sobrevivência. A universidade tinha limites à ascensão de judeus, mas nada que os jogasse na miséria. Não era fácil a carreira acadêmica para eslavos, ciganos ou judeus, por exemplo. Mas alguns conseguiam.

Em Budapeste, a calma era ainda maior. Não sendo o centro do Império, os conflitos das outras paragens não afetavam diretamente a burguesia húngara. A vida mundana corria sem perturbações. Os trens em poucas horas levavam a Viena, a Trieste, a Praga, a Bratislava. O correio funcionava.

Mas essa paz já estava vivendo seus últimos dias. Se dentro das fronteiras não era preciso enfrentar conflitos, começou a se fazer necessário olhar com atenção para além das fronteiras. Em 26 de junho de 1914 os países de fora do Império resolveram acabar com aquela ilha de pseudotranquilidade – os otomanos, os alemães e os franceses não estavam mais a fim de sustentar tal ilha paradisíaca, que mantinha com eles relações de troca não satisfatórias. A certa altura, o excesso de habilidade e décadas de sucesso pararam de funcionar. Mataram, pois, o herdeiro do trono.

A carta que Freud escreve a Ferenczi no dia 28 de junho de 1914 traz, na segunda sentença, o assunto que o preocupava naquele momento: que papel tinha a participação pessoal nos destinos das nações? Reproduzimos abaixo a versão em francês, em publicação de 1992 (Freud, S & Ferenczi, S, pp. 602-602):

Em tradução livre, seria este o início do texto:

Caro Amigo,
Escrevo sob o golpe do surpreendente assassinato de Saravejo, cujas consequências são de fato imprevisíveis.”
(Até aí, tudo bem. Vivia-se naquela época, como já disse, um universo sem violência. Um ato terrorista podia surpreender.)
“Parece-me que a participação pessoal não é muito grande.”
(Isso é tudo, sobre tão grave fato que mudou completamente o mundo e a psicanálise. E Freud continua.)
“E agora, de volta ao que nos diz respeito! Eu creio que você foi severo demais com relação a Ernest Jones.”
(E a carta continua e vai terminar falando sobre as férias que se aproximam.)

 

 

Era muito difícil introjetar a existência de forças para além das fronteiras do Império. Não é à toa que essa é a época de formação, implantação e desenvolvimento de teorias sobre a formação do ego. O ego não seria parecido com o Império? Perfeitamente previsível que, quando o núcleo – Império Austro-Húngaro – estivesse ameaçado, a gente corresse a estudar e observar as condições de defesa e onde era possível fazê-lo: no mundo interno. Era de esperar, inclusive, que os núcleos psicanalíticos que foram se formando no resto do mundo se interessassem por outros assuntos, criando problemas para o núcleo central.

A psicanálise não surgiu para intervir, e sim para compreender o que se vivia no meio dessas violentas transformações de valores. A posição da mulher, a posição da criança, o papel da religião passaram por convulsões e resultaram em um mundo novo, onde a compreensão das emoções podia aliviar os efeitos. Aí entra a psicanálise.

A importância da correspondência Freud-Ferenczi reside especialmente no fato de que ambos estavam implantados em uma mesma conjuntura e à mesma distância do mundo externo. Freud e Ferenczi dialogaram sobre técnica e inserção no social. Da mesma geração, de um mesmo mundo, bilíngues, muito bem entenderam o que estavam propondo. Eram semelhantes em um mesmo lugar, a observar o mesmo mundo e sua própria obra. Foi muito difícil ao grupo de Viena assimilar a resultante do conflito.

Sair do campo da fraternidade para relações desiguais, assimétricas, como mãe e filho, marido e mulher, exigia uma vivência externa desse tipo de conflito. A guerra atraiu para dentro das organizações psicanalíticas um forte contingente feminino, que trouxe consigo uma visão diferente do mundo e de sexualidade. Não havia aparente discordância, mas sim ampliação de horizonte. Da visão desenvolvimentista de seus conflitos para a descrição da relação mãe e filho foi um enorme salto. A próxima geração de psicanalistas já chegou em um momento completamente diferente. A Primeira Grande Guerra mudou as ilusões e abriu novos campos de luta. Entram as mulheres, entra a visão política.

Se olharmos a correspondência entre Ferenczi e Jones, veremos que a ênfase sobre questões de identidade da psicanálise predomina sobre as questões teóricas. A velha guarda discutia suas observações clínicas e elaborações teóricas. Com a disseminação da psicanálise pelo resto do mundo, as questões, incluindo as teóricas, começaram a tomar feições de domínio.

 

Referências

Freud, S & Ferenczi, S. (1992). Correspondance, vol. 1: 1908-1914. Paris: Calman-Lévy.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Anna Veronica Mautner
Rua Tupi, 267/102
01233-000 − São Paulo − SP
tel.: 11 3667-8234
E-mail: amautner@uol.com.br

Recebido: 10/04/2010
Aceito: 25/05/2010

 

 

* Psicanalista, membro associado da SBPSP, articulista do jornal Folha de São Paulo.

Creative Commons License