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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.50 São Paulo jul. 2010

 

RESENHAS

 

A imagem em cena

 

The image in the scene

 

 

André Luiz Picolli da Silva*

Universidade Federal do Pará – Campus de Marabá

Endereço para correspondência

 

 

Rivera, Tania. Cinema, imagem e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2008. 76 p.

 

O ser humano é, por natureza, um ser cinematográfico? Uma provável resposta a esse questionamento seria sim, mas, mais do que cinematográfico, talvez ele seja especular, pois só compreende a realidade a partir do enquadramento dado pela sua fantasia. Reflexões como estas, e muitas outras relacionando imagem, arte, psicanálise e cinema, podem ser encontradas no livro Cinema, imagem e psicanálise, de Tania Rivera, no qual, com grande propriedade, a autora relaciona elementos primordiais e atuais presentes na estrutura psíquica humana, a saber, a imagem e sua compreensão e apropriação pelo cinema e pela psicanálise. Trata-se de uma obra extremamente atual, pois o homem contemporâneo, mais do que nunca, está inserido em um universo linguístico baseado em imagens e, sendo assim, nada mais propício para compreendê-lo do que o cinema e a psicanálise, que também são construções contemporâneas e, sobretudo, especulares.

No livro não são realizadas interpretações psicanalíticas de filmes ou de personagens; em vez disso, a autora demonstra o apelo que as obras cinematográficas exercem sobre o espectador, e faz um convite para que o leitor também experimente esse apelo. Semelhante ao filósofo chinês Lao Tsé, que afirmava em seu famoso livro Tao Te King que sem sair de casa é possível conhecer o mundo e que sem olhar pela janela é possível ver o “Tao do Céu”, Tania Rivera mostra de uma forma poética que o cinema se apresenta como uma janela para o mundo. É um livro que vale a pena ser lido, pois apresenta em suas linhas (e entrelinhas) a essência do próprio tema que se pretende estudar, a relação entre psicanálise e cinema/arte. É uma obra ao mesmo tempo sedutora e envolvente, reveladora e encobridora.

Embora não haja divisão formal, o livro aborda três campos marcantes que se entrecruzam continuamente. O primeiro trata da relação histórica entre cinema e psicanálise. O segundo destaca o status do cinema como arte, sendo possível fazer uma analogia entre psicanálise e arte. O terceiro é uma demonstração de como elementos do cinema são análogos à estrutura de funcionamento psíquico, tanto que, a própria autora questiona: “Será que não somos seres cinematográficos?”.

Para Tania Rivera, tanto o cinema como a psicanálise fazem apropriações mútuas, sendo que a relação entre psicanálise e arte não é nova. A própria psicanálise nasce sob influência da arte, como, por exemplo, com Édipo e Hamlet. Claro que muitas vezes ela usa a arte de forma ilustrativa, mas, como a autora salienta, o próprio Freud notava que o artista (Rivera se refere, mais especificamente, à própria obra de arte) detém mais conhecimento sobre o inconsciente que o próprio psicanalista.

Seguindo a trajetória de relacionar psicanálise e fundamentos artísticos, há uma breve narrativa sobre a história do cinema, desde os seus primórdios, em 1895. É revelada a sincronicidade quando apresenta que no mesmo período em que Freud e Breuer lançavam o seu estudo sobre a histeria, os irmãos Lumière faziam as primeiras exposições públicas de seu cinematógrafo, demonstrando assim que psicanálise e cinema nasceram juntos e são, de certo modo, irmãos. Porém, há outro elemento interessante a ser notado nessa relação de parentesco não proposital que a própria autora refere: “É curioso Freud nunca ter feito alusão a essa nova arte, apesar de conceder lugar privilegiado em sua obra a analogias entre aparelhos ópticos e o aparelho psíquico” (p. 11).

Apesar desse fato, percorrendo um pouco a história da psicanálise, é apresentada a íntima relação desta com elementos cinematográficos. São dadas explicações sobre o decorrer do processo analítico, no qual o analisando, entre outros elementos, trabalha um jogo de relações de cenas e imagens, que não necessariamente vem de suas lembranças, mas de suas fantasias. Nesse sentido, a própria ação psicanalítica pode se apresentar como uma obra na qual a fantasia dos pacientes se estrutura como um enredo de uma cena imagética. Muito semelhante ao cinema, entre as imagens e cenas narradas pelo analisando pouco importa se são lembranças ou fantasias, pois são imagens que marcam e perturbam, que atraem ou repulsam o paciente. Entretanto, como a própria autora enfatiza, sempre existe uma “outra cena”, que é “apresentada” pelo sintoma, sendo que o foco de observação do analista está nessa “outra cena” que não se pode ver.

Na sequência, Tania Rivera discorre como a psicanálise se tornou objeto do cinema, ou melhor, um objeto de desejo do cinema, que tentava retratá-la em suas telas. A autora mostra como Freud via com desdém a constante insistência de reproduzirem a psicanálise nas telas, e de como considerava que o cinema faria uma caricatura grotesca da psicanálise, pois, como salienta, “como poderia materializar-se em um filme mudo a talking cure?” (p. 24). Nessa mesma perspectiva, discute que talvez as primeiras imagens cinematográficas, por serem demasiado limitadas e caricatas, não tenham causado grande impressão em Freud, que sempre foi muito analítico e clássico com relação à obra de arte.

Porém, apesar dessa relação de rejeição inicial com o cinema, o próprio Freud cede e autoriza a realização de um filme baseado na psicanálise. Assim, em 1926 estreou em Berlim o filme Segredos de uma alma, inspirado em um caso clínico do psicanalista Hanns Sachs. O filme não se propunha a ser uma explanação da teoria freudiana, mas concretizou o desafio de apresentar o conflito entre “o que se revela e o que fica escondido”. No livro é realizada uma breve explanação do filme, apresentando seus aspectos mais relevantes como marco formal e inicial da relação psicanálise-cinema. É a partir da narração desse primeiro filme que Tania Rivera analisa, com grande propriedade, muitos elementos da psicanálise e do cinema, como sonho, imagem, desejo e realidade.

Entre todos esses elementos, é marcante a profunda relação que a autora faz entre cinema e sonho. Ela discorre sobre o fato de que foi justamente com o estudo do sonho que a psicanálise se tornou uma teoria sobre o homem e não apenas mera forma de compreensão de patologias. Ela esboça o interessante fato de que tanto o cinema como o sonho surgem de uma complexa rede de relações entre o sujeito e a imagem. O sonho põe em questão a posição do “eu”, assim como pode fazê-lo a imagem e, em particular, a imagem cinematográfica.

Realizando uma profunda reflexão sobre as relações, as aproximações e os distanciamentos entre cinema e sonho, destacando que o sonho é uma trama complexa e não linear, a autora descreve como o narrativa do sonho foi recriada em uma segunda obra cinematográfica, O cão andaluz, de Luis Buñuel, cujo roteiro foi escrito em parceria com Salvador Dalí, Em seguida faz uma bela descrição da estética do filme, bem como uma análise geral da estética da construção de filmes e de diversos diretores que construíram suas obras usando uma narrativa cinematográfica bem próxima da narrativa onírica.

Debatendo sobre a relação e a estrutura dos métodos utilizados para realizar a obra cinematográfica, bem como a ação psicanalítica, registra que a psicanálise, ao contrário do cinema, cerceia a visão, interditando o olhar para se centrar na escuta do sujeito. Apesar disso, ela busca reviver cenas para que o tratamento possa ser realizado e, quanto mais vívidas forem as cenas, melhor. Isso mostra que tanto na ação psicanalítica quanto na elaboração cinematográfica é necessário observar de vários ângulos, pois a cena original sempre é articulada com uma lembrança mais aceitável, ou encobridora.

Dando sequência a essa forma de relacionar elementos psicanalíticos com cinematográficos, é possível encontrar uma demonstração de vários filmes que se relacionam explicitamente com elementos descritos pela psicanálise. A narrativa de Tania Rivera é tão envolvente que o leitor se sente no mínimo tentado (ou quase impelido) a ver os filmes relatados no livro, para ter um gozo completo com relação ao que está sendo explicitado. É uma leitura que desperta o desejo, o desejo pela experiência, pelo contato.

Toda essa demonstração, tão essencial aos que trabalham com ou estudam o entendimento humano, é realizada de modo sutil e ao mesmo tempo tão concreto que no fim do livro o leitor é levado a pensar: Seria o cinema uma psicanálise concretizada? Ou pelo menos a concretização dos processos psíquicos decifrados pela psicanálise? Estas são perguntas cuja respostas terão de ser encontradas individualmente.

Por fim, como o livro não tem divisão formal, não é dividido em capítulos, e, em uma sequência que se aproxima da narrativa de uma história, é uma obra que se assemelha a um sonho, encobridora e reveladora, que em sua estrutura combina elementos artísticos e psicanalíticos.

 

 

Endereço para correspondência
André Luiz Picolli da Silva
Rua São Francisco, 2401/B
68501-690 – Marabá – PA
E-mail: picolli@ufpa.br | anpicolli@yahoo.com.br

Recebido: 28/10/2009
Aceito: 10/02/2010

 

 

* Psicólogo e mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); professor de Psicologia na Universidade Federal do Pará – Campus de Marabá.

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