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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.50 São Paulo jul. 2010

 

RESENHAS

 

Miniaturas filosóficas sobre a cultura

 

Philosofical miniatures on culture

 

 

Hang-Ly Ikegami Rochel*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

Matos, Olgária. Contemporaneidades. São Paulo: Lazuli; Companhia Editora Nacional, 2009. 216 p.

 

Quando Olgária Matos menciona “o absurdo em lugar da lógica, porque a lógica não consola” para comentar a linguagem de Guimarães Rosa, ela demonstra o quão profundamente está envolvida com a cultura contemporânea para a qual dirige um olhar agudo, trazendo em sua bagagem autores, entre tantos, conhecidos nossos que vão de Freud a André Green.

Contemporaneidades é uma coletânea de “miniaturas filosóficas” sobre a cultura e aborda temas como a identidade nacional na literatura, nas canções populares, no cinema; o papel das universidades; a filosofia da linguagem e da tradução, bem como os efeitos sociais, econômicos e culturais dos traumatismos das guerras de nosso tempo, gerando a sociedade de massa e o capitalismo de consumo. Nesse novo tempo “prescinde-se de laços duradouros e experiências interiorizadas ... e de uma educação que não dissociava escola e vida”.

Segundo Olgária, a identidade nacional surge com Clístenes, nos séculos VI e V a.C., em Atenas, cujas leis “substituíam os vínculos de sociabilidade ligadas à tribo, ao clã, à consanguinidade e ao parentesco por outro modo de vida, a política, a philia, o laço afetivo entre cidadãos”.

Em “Brasil: a memória em trompe-l’oeil”, “Construção e desaparecimento do herói: uma questão de identidade nacional”, e “Decantando a República”, a autora discute a questão da identidade brasileira. Esta nossa difícil identidade, que começa invalidando uma linha imaginária, a do Tratado de Tordesilhas. Somos “uma cultura em trompe-l’oeil, de ilusão óptica, de forma que passamos a ver a irrealidade como realidade”. “Somos um Brasil que tem muito de barroco, inclusive na paisagem, a escola de samba, esta manifestação barroca e operística, com sua fusão de artes, figurino, alegorias etc.” Um Brasil que se reencontra melhor na ficção: “Brasil paraíso tropical”, “País do futuro”, “Brasil da fartura”, onde “plantando tudo dá”. Um Brasil, portanto, que vive muito mais em função da ilusão do que da realidade, e que ao lidar com sua realidade e com sua história o faz de um modo peculiar: sem rupturas, sem mudanças profundas em sua maneira de convívio social e político, em sua consciência, seus valores e comportamentos.

Há, portanto, uma “imposição do esquecimento” que leva a uma “neutralização moral e indolor do acontecido”. Mas essa “desmemória” brasileira, que envolve uma aptidão ao esquecimento, também gera uma concepção linear do tempo e a permanência de violências e injustiças não reparadas.

Ao tratar do herói ou instituições heroicas como fonte de identidade coletiva, a autora detecta na nossa realidade um heroís mo convertido em espetáculo (mesma raiz de especulação) pela mídia que tende a dissolver a memória, a reminiscência identificadora de um nós social. E cita como exemplo o episódio da agonia, paixão e morte de Ayrton Senna, quando a missa mortuária é transformada em entretenimento público, a dor exposta em estetização. Aqui “a questão não se coloca diretamente sobre o espetáculo, mas sobre o que com ele sucede quando capturado, produzido e enviado pelos meios de comunicação de massa” (Chaui, 1992).

Olgária vai buscar em Sérgio Buarque de Holanda e seu Raízes do Brasil a ideia de uma nossa identidade bovarista. Esse bovarismo consistiria em um desvio, uma falha em se conceber outro, diferentemente do que se é; falha presente na personalidade de todos os personagens de Flaubert, autor de Madame Bovary. Costumamos, aqui e ali, imaginar um Brasil diferente do que é: um Brasil liberal, europeu ou americanizado, “país grande e do futuro”. “Esse ‘bovarismo de desenraizados’ parece ser a precária identidade brasileira com seus mitos e heróis de circunstância, sem circunscrição ou memória duradoura” (Souza, 1992).

Construímos, a partir daí, uma espécie de “cidadania negativa”, em que “os heróis que povoam nosso imaginário resultam em paixões sem verdade, verdades sem paixão, heróis sem heroísmo, história sem acontecimentos”. Olgária, pensamento refinado, propõe que esse “bovarismo significaria uma espécie de ‘alucinação negativa’: se na alucinação produzimos a presença de um objeto ausente, aqui, na presença do objeto alucinamos sua ausência, isto é, não o vemos, não o reconhecemos e, nos moldes de André Green, podemos compreendê-la ‘não como a ausência de representação, mas como representação da ausência de representação, aquela que espera algo que não vem’”.

Existiria em nós um objeto de desejo (um país justo) e um desejo de objeto (que não se sabe exatamente qual é), e o sujeito tem que se situar na diferença entre ambos. Ali onde a imagem do Sujeito (de um Brasil) deveria surgir, nada se mostra: ... “só é visível um espelho no qual nenhum traço se inscreve”. O Sujeito vive a ausência de si; o que falta ao Sujeito não é o sentimento de sua existência, mas sua aprova especular. Essa ausência de representação do Sujeito é semelhante à angústia de uma perda. Não há como reconhecer uma representação, falta o poder de imaginar, de representar ... o espelho devolve o seu próprio reflexo vazio: o outro que sou não aparece mais. (p. 29)

Seu ensaio “Decantando a República”, reafirma a nossa falta de história, substituída por uma geografia e deslocamentos; uma “geografia do lugar nenhum, sem ponto de partida ou de chegada nos sentimos estrangeiros, estamos sempre a caminho”. Como exemplos, entre tantos da MPB que o ensaio traz, temos “Roda-viva”, de Chico Buarque e “Encontros e despedidas”, de Milton Nascimento, no qual fica evidente que, em vez da linearidade, o que predomina é a temporalidade do acaso.

No belo ensaio “Guimarães Rosa e a filosofia da linguagem”, analisa a literatura rosiana em seu aspecto filosófico – teoria da linguagem e comunicação –, destacando o fato de este autor considerar a língua não como um simples sistema de comunicação, mas como experiência expressionista, um modo de ser, de sentir e de pensar. Rosa neologiza a língua e transgride suas regras, “arrancando o idioma de sua tacanha tranquilidade ... com palavras que inventava ou trazia de outros idiomas, como o alemão”, no dizer de Márcio Seligmann-Silva. Uma linguagem capaz de dizer “o não senso... este não senso que reflete por um triz a coerência do mistério geral que nos envolve e cria”. Guimarães Rosa evoca línguas literárias e também orais, particularmente uma língua do encontro com o Outro, em que a experiência afetiva, ética e intelectual se apresenta na conversação recorrendo às “transgressões” linguísticas: os “falantes do sertão rosiano” são incultos, mas têm retórica e estilo.

Olgária Matos chama de exofilia (amor ao outro) na obra de Guimarães Rosa – “antídoto a todo nacionalismo e ao monolinguismo que caracteriza o modo fascista de pensar” – a visitação às línguas estrangeiras, que não constitui uma limitação à nossa, mas é o que favorece descobrir o segredo do intrínseco, do próprio. Ademais, toda cultura é híbrida, trata-se de se assumir esse lado precário e dinâmico da identidade. Daí surge uma importante contribuição à questão da tradução.

Permeia todos esses ensaios uma oportuna questão: a maneira como o homem moderno trata o tempo e a memória. Em “História e memória” ela discute, por exemplo, como se lidava com a morte na Grécia arcaica: morte era o esquecimento, o silêncio, a obscura indignidade. “Ultrapassa-se a morte acolhendo-a em vez de sofrê-la, tornando-a aposta constante de uma vida que toma, assim, valor exemplar e que os homens celebrarão como um modelo de glória imorredoura.” Por outro lado, se a mentalidade do grego era acolher a morte para ultrapassá-la, “nossa modernidade lhe retira a cidadania, a possibilidade de sua experiência e de sua posteridade”. O luto passou a ser uma doença que é preciso medicar, abreviar, apagar.

A sociedade de nosso tempo destrói a experiência vivida – amor, dor, felicidade, a morte – a fim de utilizar suas energias a serviço do “princípio de rendimento”. A temporalidade nas sociedade modernas tornou-se a “instituição de um presente opaco, sem passado ou futuro, plasmado, petrificado”. Hoje temos coisas humanizadas e homens reificados; mesmo que toda reificação seja um esquecimento. Daí surgir uma amnésia decorrente da passagem vertiginosa do tempo que leva a uma “descontinuidade fundamental da trama de nossa vida, [e que] substitui as evoluções lentas por mutações brutais”, forçando o indivíduo a lutar sem descanso (quando pode) contra este ininterrupto de mudanças e rupturas, ou recorrer à neurose compensatória ou sucumbir à psicose.

Em sua crítica ao esquecimento ela traz Marcuse, em Eros e civilização: “Esquecer é também perdoar o que não seria perdoado se a justiça e a liberdade prevalecessem ... As feridas que saram com o tempo são também as que contêm o veneno. Contra essa rendição do tempo, o reinvestimento da recordação ... em seus direitos é uma das mais nobres tarefas do pensamento”.

Segundo Olgária, “nas ‘miniaturas filosóficas’ desta coletânea remanesce o apreço frankfurtiano pelos bens culturais e pela literatura em particular, a utopia de que possam constituir uma barreira contra a violência e fazer os homens mais felizes e melhores”.

 

Referências

Chaui, M. (1992). Mídia e democracia. Aula inaugural. São Paulo: Departamento de Filosofia, FFLCH-USP. (mimeo).         [ Links ]

Souza, E. M. de M. (1992). Relatório de Atividades”. Araraquara: Departamento de Sociologia, FCL-Unesp. (mimeo).

Seligmann-Silva, M. (2009, 3 de outubro). Autora vai à MPB em análise da cultura do esquecimento. Folha de S. Paulo, São Paulo, Caderno Ilustrada.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Hang-Ly Ikegami Rochel
Av. Dr. Eugênio Salerno, 123/121
18035-430 – Sorocaba – SP
tel.: 15 3202-7207 | 15 3221-7373
E-mail: hprochel@gmail.com

Recebido: 30/03/2010
Aceito: 20/04/2010

 

 

* Psicanalista, membro associado da SBPSP.

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