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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.50 São Paulo jul. 2010

 

CARTAS DO LEITOR

 

IDE 49 O sonho e a pele

 

 

Ao corpo editorial da ide.

Ao me utilizar deste espaço reservado pela ide a seus leitores, não posso deixar de estabelecer um paralelo com o espaço reservado às leitoras da revista argentina Idilio, publicada nos anos 1950.

Lá as mulheres, com um mundo restrito a seu espaço doméstico, davam expressão a seus anseios através dos sonhos relatados. Além da resposta às suas cartas, dada pelos editores, elas viam seus sonhos retratados pela lente da fotógrafa Grete Stern, através de fotomontagens. Um trabalho delicado que pressupõe um agudo senso estético, como ressalta Adriana Astutti, a autora do artigo “Grete Stern: mulheres sonhadas”, ao destacar a função do artista como artesão.

O que poderia em um primeiro momento ser interpretado como uma possibilidade de dar expressão a uma feminilidade reprimida, atendendo a uma população feminina, público-alvo desse tipo de revista que até hoje encontra seu lugar, vai além.

A mulher atual está longe desse estereótipo captado pela lente de Stern, o que me faz pensar qual seria o tipo de imagem que poderia ser capturada na atualidade!

Do meu ponto de vista, o analista, no cotidiano de seu consultório, tem-se deparado cada vez mais com um aspecto da vida psíquica da ordem do arcaico, do não representado, o que na visão de alguns autores surge como expressão do feminino, como um elemento puro, comum a ambos os gêneros, ligado à constituição do sujeito psíquico e que se diferencia de uma feminilidade relacionada a aspectos mais culturais.

Caberia ao analista, em sua atitude de rêverie, mais que interpretar o conteúdo manifesto do sonho, dar figurabilidade ao que o paciente traz como expressão de dor e sofrimento.

Nesta sua tarefa, o analista se aproximaria mais do trabalho do artesão ao fazer fotomontagens de um inconsciente não representado, ao se utilizar de uma lente especial para captar o clima afetivo da sessão, dando significado à experiência vivida com o analisando.

Ogden chama a atenção para a função do analista ao “sonhar os sonhos não sonhados do paciente”, como forma de dar-lhes representabilidade, de maneira a que o analisando possa reconhecer elementos da sua vida mental que lhe permitam voltar a sonhar! Algo que requer uma sensibilidade tão acurada quanto a que Stern pôs em seu trabalho, dando àquelas mulheres a possibilidade de repensar o seu lugar.

Obrigada à ide pela oportunidade de resgatar o trabalho de uma artista tão expressiva e a possibilidade de pensar nosso fazer analítico, por meio dos artigos dos colegas, ampliando nosso olhar e afinando nossa escuta.

Parabéns pela escolha do tema!

 

 

Adriana Cortelletti Uchôa
Rua Duque de Caxias, 2325
16018-020 – Araçatuba − SP
tel.: 18 3623-1100
E-mail: driuchoa@hotmail.com

 

Prezadas Heloisa e Myrian,

Muito tempo atrás, ouvi o cantor Tom Zé dar uma entrevista em que ele relatava um fato. Ainda muito jovem, e no interior do sertão nordestino onde vivia, certa ocasião se deparou com uma cena: várias lavadeiras à beira do rio, que brilhava sob sol forte, lavavam e batiam lençóis, que inflavam ao vento, e os recolhiam em movimentos alternados. A cena, vista de longe, provocou um verdadeiro impacto, um enorme sofrimento, do qual não tinha a menor ideia. Anos depois, em um après-coup, o cantor entendeu que tamanha sensibilidade a estímulos sensoriais sem nenhuma reverberação em uma rede que sustentasse a violência e a beleza da experiência estética, e que lhe conferisse um sentido, só poderia ter resultado em muita dor. Como no fragmento do belo artigo de vocês, “Psicanálise e mistério: O sonho de Nick Bantock”, que, diga-se de passagem, li com muito prazer, poderíamos dizer: “Dor e beleza, nossas fiéis companheiras”.

A delicadeza com que vocês vão, nesse trabalho, desfiando os movimentos de aproximação e recuo − como os lençóis das lavadeiras ao vento – entre Nick e Sabine, tão distantes e tão próximos, tão íntimos e tão estrangeiros, cria um clima, um ritmo que envolve o leitor. Os tocares se desdobram em insinuações, em não ditos, enigmas são vislumbrados e nos provocam, ficamos curiosos, cúmplices, queremos conhecer o livro-sonho, o livro ilustrado Griffin & Sabine. (Posteriormente, quando tive oportunidade de ter o livro em minhas mãos, fiquei encantada.) E tal qual um estímulo evocativo de nossas próprias experiências, ele nos enlaça e nos lança em um terreno comum: o espaço onírico.

Poderíamos pensar que esse tema, tratado assim com leveza por vocês, pudesse resultar em um texto leve e passageiro como o vento. Não é. Vocês vão buscar subsídios na concepção de simbolismo, de natureza de linguagem, de Susanne Langer, e correlacionam: “Assim como a arte, a análise pode ser vista como um processo de encontrar formas para expressar o sentimento humano, que ressoem com a experiência do paciente, permitindo que ela seja contida e posteriormente apropriada, buscando sua expansão”. E, dentre as articulações que vocês fazem, destaco a ideia de objeto transicional de Winnicott, objeto nem dentro nem fora, mas situado no âmbito da criação.

Se o espaço do sonho é por excelência o espaço da criação, da esperança, em sua dimensão terapêutica, ao terminar a leitura do trabalho restou-me um sentimento de abertura, de encontro, de renovação. Como no despertar de um sonho bom, vi-me de alma alimentada.

Comecei esta cartinha com a lembrança de uma entrevista. Vou encerrar com outra. Pouco antes de morrer, Isaías Melsohnn concedeu uma entrevista ao Jornal de Psicanálise. Nela ressalta que “na sessão analítica, devemos estar atentos a dois níveis de linguagem: ao representativo e ao expressivo. O primeiro refere-se à noção de representação como conteúdo mental, que significa vários outros conteúdos, não presentes, mas implícitos no saber. Eu digo árvore, está presente em floresta, madeira, marcenaria etc. Agora, se eu digo árvore!!! (forte entonação), é um bicho que saltou na minha frente. Então, a linguagem de uma sessão pode surgir como verdadeiro mito, por trás do papel de significação representativo da frase, da palavra. E isto é chamado de sensorial ao lado do onírico mítico... Assim, podemos estar atentos ao significado de um texto, em que uma porta é uma porta em sua significação, e depois captar o sentido mais profundo que tem essa porta para abrir-se aos tesouros da alma”.

Muito obrigada, Heloisa e Myrian, pela boa companhia que a leitura de seu trabalho me proporcionou.

Alice

 

 

Alice Paes de Barros Arruda
Rua Capote Valente, 432/106
05409-001 − São Paulo − SP
tel.: 11 3062-0204
E-mail: alicepba@uol.com.br

 

“Conversa com autor”

Gostei muito da escolha da revista IDE 49 O SONHO E A PELE, cujos artigos publicados são de excelente qualidade e muito instigantes.

Como leitora, continuaria conversando com um dos autores, pelas impressões que me causaram. O artigo da autora Silvana Rea, intitulado “Os caminhos da imaginação material”, remeteu-me a lembranças de infância.

A autora fundamenta suas ideias na obra do filósofo francês Gaston Bachelard e afirma:

Reivindicando a legitimidade do devaneio – o sonho do homem desperto, ativo e lúcido – como tema de estudo e método, Bachelard (2006) distingue a imaginação formal, intelectualmente fundamentada na visão, da imaginação material, tributária da mão. Baseada na vontade e no poder de transformação, a imaginação material por ele postulada atua na manipulação da matéria. É, desse modo, uma atividade que se submete à vontade criativa do homem. E é essa manipulação que, em parte, permite um ponto de intersecção entre ciência e arte. Pois, ainda que inicialmente por ele consideradas “opostos complementares”, a aproximação se dá pelo fato de ambas instituírem o sujeito demiurgo, seja pela via artesanal, seja pela onírica. (ide, 49, p. 51)

A princípio, enquanto lia o artigo, não tinha me dado conta da repercussão das memórias que emergiram em meu mundo afetivo.

Com sensibilidade, Silvana Rea acompanha muitos momentos criativos da artista plástica Flávia Ribeiro em seu ateliê. A descrição dos movimentos de execução e do imaginário da artista é fascinante. Foi aí que comecei a recordar o trabalho de minha mãe em seu ateliê de artes plásticas. Menina curiosa, chegava perto dela e, às vezes, distanciava-me correndo para o quintal arborizado de casa, onde, em contato com a natureza, procurava materiais e, talvez por mimetismo, trabalhando com minhas próprias mãos, expressava as marcas do meu imaginário.

Nessas experiências vivenciadas, senti-me tocada pelo que comenta Flávia Ribeiro, referindo-se à mão obreira: “Acho que a ação, o fazer, o executar, é pouco intelectual. O trabalho intelectual vem depois. Eu sinto que a minha mão é a junção do racional com o emocional. Parece que a mão é que liga os dois; junta. E tem que ser essa coisa obreira mesmo” (Ibidem, p. 52).

Nessa linha de pensamento, dentre outros valiosos aspectos, o Homem é marcado por uma sequência de momentos criativos em sua trajetória de vida; porém alguns se dedicam e transformam o seu fazer em arte, enquanto outros se constituem e seguem por diferentes vias de expressão de si.

Rejane Camara Cutrim

 

 

Rejane Camara Cutrim
Rua João Moura, 627/52
05412-001 − São Paulo − SP
tel.: 11 3085-1685
E-mail: rejanecutrim@yahoo.com.br

 

Cara Rejane,

Foi com enorme prazer que recebi sua carta, com a proposta de continuarmos aqui a conversa já iniciada quando você se dispôs a ler o meu artigo.

O ato de escrever, apesar de solitário, é habitado por muitos interlocutores. No meu caso, a artista, os autores que adotei e, principalmente, o leitor a quem me dirigi. Saber que algo que escrevi tocou alguém que leu completa uma atividade que inicialmente era só minha; coloca-me no mundo.

Foi assim com Flávia Ribeiro. Sua escolha para a pesquisa se deu porque sua obra também me tocou. A partir daí, dedicamo-nos, ambas, a uma longa conversa que durou anos, da qual o artigo da ide é um pequeno recorte. Eu, então, na posição de leitora de seus trabalhos.

Nesse sentido, a opção por um diálogo com Bachelard surgiu como uma exigência de certos aspectos da poética de Flávia. Cada artista mantém uma relação particular com seu trabalho, o que resulta em obras diferentes e diferentes universos poéticos. Para uma poética de “mão obreira”, que necessita do embate físico com a matéria para poder sonhar ou pensar, Bachelard oferece uma compreensão bastante útil.

E, por fim, ter você como interlocutora também não foi fruto do acaso. As memórias afetivas que nos constituem dão sentido àquilo que somos (ou ao exercício de atribuição de sentidos para nosso ser). Eu também busco em minhas lembranças o convívio com meu pai, um pintor de domingo de raro talento. O que provavelmente contribuiu para que eu me interessasse pelas questões da visibilidade, na primeira graduação em cinema e, posteriormente, estabelecendo ligações entre psicanálise e artes plásticas.

Assim, só posso agradecer por este encontro que a escrita, a leitura e as experiências pessoais puderam nos proporcionar.

Silvana Rea

 

 

Silvana Rea
Av. São Gabriel, 149/1104
01435-001 − São Paulo − SP
tel.: 11 2872- 6214
E-mail: silvanarea@uol.com.br

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