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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.51 São Paulo dez. 2010

 

CARTA-CONVITE

 

 

Na verdade, há entre a técnica sugestiva e a analítica a maior antítese possível, aquela que o grande Leonardo da Vinci resumiu em relação às artes nas fórmulas per via di porre, per via di levare. A pintura, diz Leonardo, trabalha per via di porre, pois deposita sobre a tela incolor partículas coloridas que antes não estavam ali; já a escultura, ao contrário, funciona per via di levare, pois retira da pedra tudo o que encobre a superfície da estátua nela contida1.

Foi desse modo, em Sobre psicoterapia de 1904, que Freud apontou o rumo que a técnica psicanalítica tomaria. O psicanalista, tal qual um escultor, se manifestaria per via di levare. Desde então, qualquer que seja a preferência teórica adotada como guia, não há psicanalista que não se reconheça nessa proposição que vem iluminando sua jornada clínica.

Não podemos deixar de notar que, desde muito cedo, Freud tomou a arte como um porto de ancoragem para refletir sobre o fazer psicanalítico. Tantos poderiam ser os exemplos a serem tomados para esclarecer os meandros da relação psicanalista-paciente, mas, não por acaso, a escolha recaiu sobre o modo como um artista se relaciona com seu material de trabalho.

Na tentativa de compreender um pouco mais a preferência de Freud sobre a prática dos escultores fomos em direção às anotações de Leonardo da Vinci em seus famosos Cadernos2. Curiosamente encontramos que, comparada à pintura, a escultura era considerada por ele uma arte menos nobre. São inúmeras as justificativas para elevar a pintura ao patamar de perfeição que, segundo ele, a escultura não alcançava. As anotações do artista não escondem sua preferência. Essa constatação nos leva a pensar que, apesar de tanto a obra quanto a vida da Vinci terem sido alvo de profundas reflexões psicanalíticas − basta lembrar o artigo “Uma lembrança de Infância” − a admiração por Leonardo não turvou a fascinação de Freud por esculturas, uma paixão primeira que se manifestou antes mesmo que a psicanálise tomasse lugar em sua vida.

Peter Gay, ao relatar a chegada de Freud em Paris em meados de 1884, diz o seguinte: [...] Freud se encantou particularmente com o Louvre, onde se demorava nas antiguidades, uma multidão de estátuas, lápides, inscrições ruínas gregas e romanas3.

E mais adiante conclui: [...] Mas seu entusiasmo trai um interesse mais do que acadêmico; ele prenuncia uma predileção pela estatuária antiga do Mediterrâneo e Oriente Próximo, ao qual se entregaria quando pudesse dispor de espaço e dinheiro4.

A paixão pelas esculturas precede e de certo modo acolhe a construção da teoria e prática psicanalítica. Na medida em que a teoria toma força a presença da coleção de peças antigas e sua dedicação a elas, torna-se visível, a quem quer que compartilhe do encontro com Freud, o psicanalista: Era essa floresta de esculturas que seus visitantes e pacientes lembravam com maior nitidez5, nos informa Peter Gay. E diz mais: [...] ao começar a análise, o Homem dos Lobos também considerou extasiantes os objetos antigos de Freud6: [...] havia sempre uma sensação de paz e quietude sagradas nos dois gabinetes anexos e lembrava-lhe não um consultório, mas antes o gabinete de um arqueólogo.

Enfim, caros colegas, há que se pensar que entre Freud, suas esculturas e sua psicanálise não há divisor de águas. De certo modo, a máxima per via di levare expressa essa terra sem fronteiras construída entre estes três elementos.

Vamos de volta um só instante à Da Vinci, no que diz respeito a suas observações sobre as limitações da escultura:

[...] O escultor não pode diversificar sua obra mediante diferentes cores naturais dos objetos [...] As esculturas não têm nenhuma perspectiva aérea, não podem representar corpos transparentes nem corpos luminosos, nem luzes refletidas nem corpos brilhantes (como espelhos e superfícies polidas similares), nem névoas, nem céus escuros, nem infinidades de coisas que não citarei para não resultar entediante7.

Vamos contrapor rapidamente as palavras de Da Vinci a algumas observações sobre a obra de Anish Kapoor8, um dos grandes nomes da escultura contemporânea.

As obras de Kapoor são frequentemente simples, formas curvas, normalmente de só uma cor ou brilhantemente colorida. Em sua maioria, a intenção é prender a atenção do público, invocando um mistério através das cavidades escuras de seu trabalho, normalmente com seu tamanho e beleza simples. Ele usa pigmento em seus trabalhos e em torno deles. Muitos possuem aberturas cavadas e cavidades, e mexendo com opostos (como terra-céu, material-espírito, luz-escuridão, visível-invisível, masculino-feminino e corpo-mente). Seus trabalhos mais recentes são baseados em espelhos, refletindo ou distorcendo o público. Em 2001, “Sky Mirror”, um grande espelho, refletia o céu9.

A partir dessas observações percebemos que os escultores expandiram seu trabalho com a utilização dos mais variados materiais, de modo que já não se nota uma divisão nítida entre a pintura e a escultura que pode, diferentemente do que pensava o grande artista renascentista, espelhar corpos transparentes e brilhantes que possivelmente empurrariam para longe o tédio imaginado.

Em A soma dos dias, instalação de Carlito Carvalhosa no espaço central da Pinacoteca do Estado de São Paulo (agosto a outubro de 2010), encontramos uma escultura concebida para existir de fato por um período de oitenta minutos. Longos e levíssimos tecidos brancos, dispostos em uma espiral, encobrem todo um espaço octogonal da arquitetura do museu. A escultura de tecido esvoaçante se completa com o som minimalista da música vinda pelas mãos do compositor Philip Glass que, ao piano, se encontrava no centro da obra. A escultura existirá enquanto o som chegar aos ouvidos atentos e olhares extasiados dos espectadores. A experiência sensorial diante dessa obra produz efeitos emocionais inusitados. As esculturas, nos dias de hoje, são outras.

Chegamos então à nossa proposta para a IDE 51 − Por que não refletir sobre per via di levare no nosso cotidiano de clínica e pensamento psicanalíticos?

 

 

Cíntia Buschinelli
editora

Corpo editorial
Heloisa Helena Sitrângulo Ditolvo
Marta Úrsula Lambrecht
Homero Vettorazzo Filho
Marion Minerbo
Silvana Rea

 

 

1 Freud, Sigmund, Edição standard brasileira (Vol. VII). Rio de Janeiro: Imago, 1989, p. 244.
2 Da Vinci, Leonardo, Cuadernos (H. Anna Suh, ed.). New York: Parragon Publishing, 2006, pp. 244, 240.
3 Gay, Peter, Freud − uma vida para o nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 60.
4 Id., ibid.
5 Id., ibid., p. 59.
6 Id., ibid., p. 168.
7 Tradução de Marta Úrsula Lambrecht.
8 Nascido em Bombaim em 1954, é considerado um dos grandes escultores que explora novos estilos de arte.
9 Trecho retirado de <http://pt.wikipedia.org/wiki/Anish_Kapoor>, em 20 de julho de 2010.

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