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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.51 São Paulo dez. 2010

 

EM PAUTA - PSICANÁLISE E ESCULTURA - PER VIA DI LEVARE

 

Mundo interno e mundo moderno

 

Internal world and modernity

 

 

Deodato Curvo de Azambuja*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Fazendo uso de exemplos clínicos, o autor discute o conceito freudiano per via di levare no contexto de algumas questões emergentes da atualidade, tais como “mundo interno”, “modernidade” e “formação analítica”.

Palavras-chave: Per via di levare, Mundo interno, Modernidade, Formação analítica.


ABSTRACT

Making use of clinical examples, the author discusses the freudian approach per via di levare in the context of some emerging questions of nowadays, such as “internal world”, “modernity” and “psychoanalytical formation”.

Keywords: Per via di levare, Internal world, Modernity, Psychoanalytical formation.


 

 

A proposta para a ide 51 (uma boa ideia), de refletir sobre per via di levare no cotidiano da clínica e do pensamento psicanalíticos, parte da reflexão de Freud em Sobre psicoterapia, de 1904, com o pressuposto de um mundo interno que seria descoberto pelo trabalho escultórico da psicanálise. Para Freud, em oposição à pintura, que operaria per via di porre, a dinâmica da psicanálise estaria mais próxima da escultura, de tal modo que, em cada psicanálise, encontraríamos uma figura singular que teria sempre habitado a intimidade do paciente.

Acompanhar essa analogia do trabalho psicanalítico com o fazer artístico parece, hoje, um pouco mais difícil do que costumava ser, pelas mudanças mais recentes e radicais na sociedade e na arte. Em As vidas dos artistas, Calvin Tomkins (2009, pp. 11-12, 15, 95) comenta como a escultura, modernamente, livrou-se do pedestal, usa materiais diversos e “não nobres”, como refugos de metal e de tecido, e oferece desde experiências espaciais empolgantes e desconcertantes, ao modo de Richard Serra, a choques visuais de um tubarão em formol ou de um crânio humano incrustado de diamantes, à maneira de Damien Hirst. Em uma época em que, como diz ele, “todas as antigas exigências caíram ou se tornaram opcionais”, em que o artista “rejeita a hierarquia e autoridade e acolhe todos os tipos de saber”, o artista é aquele que inventa a si mesmo, “que tem por primeira obrigação inventar ou descobrir uma nova identidade”. Faz sentido, então, falarmos em per via di levare nos dias de hoje? Faz sentido falar de “mundo interno”? Como se constitui, hoje, o “mundo interno”? De que “matéria” é constituído o homem moderno?

Para responder a essas questões proponho alguns curto-circuitos. O primeiro deles será uma reflexão sobre a experiência de um médico recém-formado, que se aventurou pela arte pictórica após ter passado por um episódio de uso de drogas alucinógenas. Ele não estava mais alucinando quando se encontrou com seu analista, mas guardava certa tensão inexplicável. Havia desenhado anteriormente, de forma pouco elaborada, uma caixa craniana aberta expondo as circunvoluções cerebrais, parecidas com um conjunto de alças intestinais; não conseguia se afastar dessa imagem e pôs-se a aluciná-la, e foi se tornando mais e mais angustiado, entrando afinal em pânico, incapaz de se conter. Esse estado de intenso descontrole emocional perdurou por algumas semanas. Posteriormente, quando entrou em análise e conversou com seu analista sobre aquele estado, refletiram que a caixa craniana aberta e expondo o cérebro remetia sem dúvida ao fato de que ele estava na ocasião sentindo-se extremamente desprotegido; ao fato de que seu “mundo interno” parecia inteiramente exposto e sem defesas.

Deparamo-nos aqui com a expressão “mundo interno”, e o cérebro exposto como metáfora de um mundo interno “desprotegido”. Circunvoluções cerebrais semelhantes a alças intestinais seriam também metáforas do mundo interno? Em uma receita médica, quando se prescreve uso interno, o pressuposto é de que o paciente vai ingerir a medicação via oral e de que esta será absorvida pelo tubo digestivo e os intestinos – não basta bochechar simplesmente o remédio, é preciso engoli-lo.

Isso significa que existe mesmo “mundo interno” ou estamos lidando, apenas, com metáforas? Existe alma, existe espírito? Desde Freud os psicanalistas trabalham com a crença de que existe um aparelho psíquico. Ou, poderíamos dizer, com a crença de que existe alma, existe espírito. E, na verdade, quando pensamos em espírito pensamos em essência. O espírito, ou a alma, remete ou lembra a essência desta ou daquela pessoa, grupo ou situação. Quando pensamos em um pensamento religioso pensamos também nas inúmeras relações grupais que se estabelecem entre as pessoas e as relacionam e ligam, ou religam, entre si. E podemos testemunhar que essas ligações existem mesmo, independentemente da existência de fato de alma, espíritos ou fantasmas e assombrações.

Igualmente em psicanálise, quando falamos em transferência e contratransferência estamos falando de movimentos inconscientes que ocorrem entre analista e analisando. E deduzimos que tais movimentos têm suas origens em antigas estruturas ligadas ao que chamamos pulsões, ou, novamente, “mundo interno”. Ocorre, porém, que nem todos os analistas trabalham com essa noção de que transferências guardam uma relação tão direta com as pulsões. Existem os que trabalham com as transferências como movimentos que se dão apenas no presente, que não podem ser referidos às estruturas do passado ou do “mundo interno”. É o que ocorre com os que apostam nas teorias das relações de objeto, para os quais é a partir delas que se constituem as estruturas do mundo interno, e não o contrário. Algo parecido com o que dizia Sartre (2010, pp. 23-42): “A existência precede a essência”, significando que “o homem não é nada mais que seu projeto, que ele não existe senão na medida em que se realiza e, portanto, não é outra coisa senão o conjunto de seus atos, nada mais além de sua vida”.

Nesse sentido existencial não existiria concretamente “mundo interno”, e assim podemos voltar à pergunta: faz sentido falar em “mundo interno”, atualmente? Por que não faria sentido? O que tem os dias de hoje de tão diverso?

No livro Sociedade excitada, recém-lançado no Brasil, Christoph Türcke (2010, pp. 238-248) faz uma reflexão interessante sobre esse tema acompanhando a transformação do significado original de sensação – nada mais que “percepção” − na marca de orientação da vida atual e “nas batidas do pulso da vida social como um todo”. Chama a atenção para a tendência generalizada da criação de um mundo de sensações – uma acumulação, um congestionamento da cultura visual que inclui a televisão, o cinema, a propaganda e a moda, e também as artes plásticas, que torna o processo de constituição social “uma massa de excitação”. Seja no domínio da sensation seeking – atividades arriscadas e vivências intensas como montanhismo, paraquedismo; seja na esfera da experience seeking − novas experiências obtidas por meio de viagens, apreciação artística, novidades gastronômicas, pessoas interessantes; seja no terreno da disinhibition e da boredom susceptibility – tendência à desinibição, autoexposição e atividades tendentes a evitar situações, atividades e pessoas monótonas – em todos esses aspectos sobressai a égide de um sistema nervoso dependente e viciado em sensações. Essa flexão do ser a um modo de sonhar material sacraliza o imediatismo, e conduz a um excitamento social contínuo causado pelo excesso de imagens, um frenesi viciante semelhante a injeções sensuais, a “choques” imagéticos como metralhadoras. Herdeiro da Escola de Frankfurt, que fundia marxismo e psicanálise, Türcke conclui que a sociedade da sensação se materializa no fetiche. Pois, diz, “fetiches são sintomas de abstinência, substitutos de algo de que se foi dolorosamente privado...”.

Duas ideias essenciais à reflexão de Türcke podem ser aqui destacadas. Uma delas é de que vivemos, hoje, envolvidos pelo metralhar das sensações audiovisuais. A outra é a ideia do fetiche, o que nos conduz de volta à ideia de pulsão, à psicanálise e a Freud.

Pensando na teoria das pulsões a partir de Freud, lembramos que a pulsonalidade nada mais seria que metralhas no nosso interior. Teríamos portanto dois tipos de metralhadoras: uma dirigida de fora para dentro (correspondendo ao estímulo de múltiplas sensações), e outra de dentro para fora (correspondendo à pulsionalidade). Freud costumava repetir que dos estímulos externos poderíamos fugir ou nos defender – mas que dos estímulos internos não poderíamos fugir, e com eles deveríamos lidar. Penso – e aqui voltando aos dias de hoje – que na verdade não é possível fugir de nenhum desses dois mundos, seja o interno, seja o externo. Estamos presos de ambos os lados.

Uma saída seria talvez através da linguagem, da simbolização que, até certo ponto, pode nos transformar ou libertar, como acredita a psicanálise. Algo próximo à ideia da “alavanca para o freio de emergência” de Walter Benjamin, lembrada por Türcke quando relaciona a arte de vanguarda como um arquétipo da resistência moderna.

E aqui lembramos a letra de “Paciência”, de Lenine e Dudu Falcão: “Mesmo quando tudo pede/ Um pouco mais de calma/ Até quando o corpo pede/ Um pouco mais de alma/ A vida não para.../ Enquanto o tempo/ Acelera e pede pressa/ Eu me recuso, faço hora/ Vou na valsa/ A vida é tão rara...”.

Ficamos distantes do modelo de per via di levare? Creio que não, se pensamos que per via di levare e per via di porre, na verdade, não sobrevivem separadamente em psicanálise, na medida em que são modelos que também nos ajudam a refletir sobre a existência de um mundo interno separadamente do mundo externo. Essa questão − ou, dito de outro modo, a questão da organização do psiquismo em torno dos estímulos ou sensações externas e dos estímulos internos pulsionais – transparece de um modo bem interessante no caso de um jovem paciente. Ele passou há tempos por uma experiência difícil no relacionamento com a namorada. Ela lhe comunicou que queria viajar para a Austrália por cerca de seis meses, e depois para os Estados Unidos por mais um período de um ano, passando por um programa de estágios e intercâmbios antes da formatura em sua faculdade. O jovem sentiu-se paralisado, sem saber como se posicionar, pois tinha planos de construir uma vida em comum e via-se diante de planos que pareciam bastante diferentes. Ao questionar e expor à namorada seus objetivos e desejos, ela o confrontou com o fato de ele ter passado sozinho alguns dias em outro país, esquiando. Ele argumentou com a desproporção entre as situações, entre uma separação de alguns dias e uma separação por um ano e meio. Evidenciou-se que ela estava pensando em se divertir pelo mundo, ou com as sensações do mundo, assim como ele se divertira descendo montanhas cobertas de neve. Deixando de lado a imagem de montanhas cobertas de neve, que podem lembrar seios maravilhosos, eis que estavam contrapostos dois projetos: um em torno da imagem de um casal construindo a vida junto; e outro em torno da imagem de um dos parceiros sair sozinho pelo mundo alimentando-se de sensações prazerosas. Princípio do prazer e princípio da realidade em oposição, o que nem sempre acontece desde que seja possível o primeiro imbricar-se no segundo, e vice-versa.

O desencontro, nesse caso, talvez esteja ocorrendo em torno das diferentes ideias do que seria bom para o “mundo interno” de cada um, ou para alimentar o “mundo interno” de cada um deles. Poderíamos pensar que estamos diante da opção por duas formas de viver: uma mais tradicional ou conservadora, e outra mais em linha com o jeito de ser contemporâneo dos jovens adolescentes de classe média, em busca do descompromisso.

E aí temos a ideia de compromisso como interposta às sensações do mundo externo, ou à busca de sensações; ou o princípio de realidade versus o princípio do prazer.

No entanto, em um plano mais geral não somos passivos diante das sensações, mas, ao contrário, podemos buscá-las ativamente. Não somos vítimas das sensações, ou, se quisermos, das drogas que nos atingiriam como metralhadoras. Somos seres desejantes, o que nos remete de outro modo à ideia de um “mundo interno” com o qual podemos nos relacionar de modos diversos. No limite, não existe um “mundo externo” sobre-excitado sem o correspondente no mundo interno. No limite, só existe o mundo interno, narcisista, ou carregado de pulsionalidade no mundo moderno. Ao contrário da aparente preponderância de um mundo externo superexcitado, o que teríamos, nesse caso, seriam apenas frutos das projeções da pulsionalidade.

Para terminar, cabe a pergunta: e como fica o analista? O analista tem “mundo interior” ou é apenas uma tela em branco? Pode-se projetar, ou descobrir, ou ainda esculpir o analista dentro de determinada pessoa? Tal esculturação poderia ser um processo de formação analítica, ou este deveria dar-se per via di porre? Ou ainda: a formação analítica, na prática, faz-se tanto per via di porre – com seminários e supervisões − como per dia di levare, via análise do analista?

Essa é uma questão bastante interessante para a formação analítica, pois, como se sabe, ao analista em seu processo de formação é exigido que se submeta a um processo de análise. Tal exigência desde logo se torna uma aparente contradição com o espírito da psicanálise, que se espera esteja livre de imposições. Contudo, sem tal exigência não se formará verdadeiramente um novo analista. Mesmo com tal exigência pode acontecer de não se formar verdadeiramente um novo analista, se, por processos de identificação do candidato com seu analista, ocorrer um processo de clonagem, de repetição ad infinitum dos mestres e dos mestres e dos mestres. O analista, nesse caso, se formará como tal apenas com processos per via di porre, ou seja, por via de imitação hipnótica de discípulos de mestres como Freud, Bion Lacan, Winnicott, Melanie Klein e outros. Não tentará verificar se em seu interior dormita um analista embrionário, singular, a ser desenvolvido. Pois sem análise e autoanálise permanentes não se esculpe jamais o sonho, ou o projeto, ou o desejo de ser um analista singular, criativo, não um mero repetidor.

Além disso, analistas precisam estar inseridos em uma coletividade científica, vale dizer, crítica. Assim, ele desdobra-se em pelo menos dois lados: um voltado para seus analisandos, e outro voltado para seus pares. Porém, quando receber o analisando, ele e mais ninguém terá de se posicionar e dizer: para analisá-lo quero vê-lo tantas vezes por semana e mais uma série de condições de que precisa para trabalhar – pois somente o analista pode e deve inaugurar o setting analítico. Para isso ele precisa possuir um setting internalizado, e é também esse lugar que precisa ser descoberto, esculpido em seu interior no decorrer de sua própria análise. Assim, o trabalho per via di levare de sua análise deverá ser extremamente diferenciado do restante da formação per via di porre – o que é essencial para que a análise se mantenha como análise, e para que a instituição analítica cresça forte e saudável.

 

 

Referências

Freud, S. (1972). Sobre psicoterapia. In S. Freud, Edição standard brasileiras das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Vol. 7, pp. 263-278). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1904).         [ Links ]

Tomkins, C. (2009). As vidas dos artistas. São Paulo: BEI.         [ Links ]

Türcke, C. (2010). Sociedade excitada: filosofia da sensação. Campinas, SP: Editora da Unicamp.         [ Links ]

Sartre, J.-P. (2010). O existencialismo é um humanismo. Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Deodato Curvo de Azambuja
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tel.: 11 3064-5165
E-mail: deodato.ca@uol.com.br

Recebido: 25/09/2010
Aceito: 10/10/2010

 

 

* Analista didata da SBPSP.

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