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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.51 São Paulo dez. 2010

 

EM PAUTA - PSICANÁLISE E ESCULTURA - PER VIA DI LEVARE

 

Lygia Reinach responde1

 

Lygia Reinach replies

 

 

Jorge Schwartz*

Universidade de São Paulo
Museu Lasar Segall

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Os processos de criação da obra da escultora Lygia Reinach são revelados pelas respostas que ela oferece às perguntas de arquitetos, artistas plásticos,paisagistas, críticos e arte, escritores, curadores, fotógrafos.

Palavras-chave: Processo de criação, Escultura, Arte, Escultora.


ABSTRACT

The creation processes of the work of the sculptress Lygia Reinach are revealed by the answers she provides to the questions raised by architects, plastic artists, landscapers, art critics, writers, curators, photographers.

Keywords: Creation process, Sculpture, Art, Sculptress.


 

 

 

Para entrevistar Lygia Reinach2, pensei que, melhor do que mais uma conversa enriquecedora com a artista, seria dar às pessoas que acompanham há anos o desenvolvimento de sua obra a oportunidade de integrarem este exercício de interlocução. Foi assim que arquitetos, artistas plásticos, paisagistas, críticos de arte, escritores, curadores e fotógrafos, entre outros, enviaram suas perguntas à escultora. Para minha surpresa, é como se as pessoas já estivessem aguardando por esta participação que percorre a obra escultórica de Lygia.

No decorrer das páginas que se seguem vemos o resultado concreto de uma feitura vista de várias perspectivas e em suas diferentes etapas, as respostas da artista são reveladoras de um mundo interno, em que a conjectura e o espírito de liberdade criativa são os motores propulsores do processo de construção de uma obra.

Deste exercício de entrevista coletiva saímos enriquecidos, com uma percepção de várias Lygias, que se desdobram e se multiplicam ao longo das mais diversas respostas.

Jorge Schwartz

 

Marcelo Ferraz3. Você começou sua carreira depois de criar cinco filhos. Como foi esse início, o convívio da artista iniciante com a mulher madura?

A maturidade deve ser examinada a partir de um raio mais abrangente de vivências. Não me tornei mulher madura por ter tido cinco filhos. Quanto a ser artista iniciante, às vezes me percebo ainda uma iniciante, é verdade. Principalmente quando se conhece um pouco daquilo que já foi criado nas mais diversas épocas. Arte é conhecimento. E não há limites para a aquisição desse conhecimento. Mesmo se for considerado no “mundo das artes”, todo artista sempre busca novos caminhos, materiais, percepções, desejos. Posso lhe dizer também que criar não depende de envolvimento com o mundo artístico. Para mim não é apenas quando assim designada pelo mercado que uma pessoa torna-se afinal artista. Sou muito livre e meu compromisso é diretamente com meu trabalho, o que é uma grande responsabilidade.

 

Guto Lacaz4. Você tem um mestre?

Sim, tenho. Ou sim, tive. Ou não, jamais tive. Sempre desconfio de respostas fáceis. Enfim, não é minha intenção estender-me por caminhos infindáveis. Mestre do mundo cerâmico: Megume Yuasa. Mestre do mundo das artes: Renina Katz. E com que orgulho sempre os nomearei “meus mestres”! Mas com o passar dos anos e experiências vividas, correm soltas no horizonte outras tantas figuras especiais que fazem parte deste meu mundo de cerâmica e arte. Afinal, há tantos amores! Quero dizer com isso que mestres também podem ser os profissionais que vêm trabalhar no ateliê comigo e me transmitem ensinamentos importantíssimos. São afinidades que vão formando um elo sem fim.

 

Eduardo de Almeida5. Seu trabalho vem sempre me surpreendendo cada vez que me deparo com ele em uma nova situação. Como se deu, em suas obras, a passagem da cerâmica – como material tradicionalmente afeito ao objeto utilitário – para uma escala quase monumental da escultura-arquitetura ou ainda da natureza-cidade?

Ao iniciar meus tempos de cerâmica, não tinha noção do que era trabalhar com o barro. Nem sequer intuía o futuro para o qual me levaria. Mas sabia claramente que não faria utilitários. Por quê? Tinha noção dos meus limites e dos meus quereres. E dois aspectos eram de naturezas diferentes, mas muito claros para mim: queria ser livre àquela altura de minha vida. Queria uma atividade na qual encontrasse silêncio e possibilidades de poder parar e refletir. E sentia necessidade de me expandir, usando meu corpo, minha mente, minha sensibilidade. Mas ignorava que caminho tomar. Cheguei ao barro talvez por ser algo mais à mão. Não sei bem. E, ao manejá-lo, percebi uma forte atração por formatos de grande porte. Fiz potes de um metro e meio, “bichos” grandes. Gostava cada dia mais de manusear desta forma meu material. E percebi que o objeto utilitário exigia doçura, delicadeza, e isto me dificultava a escolha que, aliás, já fora feita. Creio hoje ser escrava de minha almejada liberdade. Quanto a tamanhos ou trabalhos monumentais: estive trabalhando no Japão, como convidada. E lá eu vi que o barro leva os artistas a trabalhos, eles sim, monumentais. Murais e painéis que se apropriam de espaços com grande desenvoltura. Lá as oportunidades para o barro são generosas.

Em que momento ou circunstância a cerâmica passou a ser para você insuficiente como material e a madeira e o metal se fizeram necessários como alternativa de expressão?

É verdade, novos materiais foram sendo pesquisados por mim. Senti necessidade de me expandir para outros mundos. Mas veja que esses materiais – madeira, metal – são todos ligados à terra, de alguma forma têm ligação com o barro.

 

Rodrigo Naves6. Embora você trabalhe com diversos materiais, me parece indiscutível que o barro é o material com que você se sente mais à vontade. Você saberia dizer de onde vem esta relação tão estreita com a argila?

É certo que me sinto muito à vontade com o barro. E não basta saber qual a origem desta intimidade. Seria preciso conhecer para onde me levou e para onde me levará no futuro. A intimidade, segundo entendo, abre caminhos novos, diversificados e, acima de tudo, clareia o pensar, o conhecer, o sentir. O mundo torna-se amplo, pleno de respostas a serem encontradas. Vamos deixar à parte infância, juventude. Vamos caminhar já no futuro. Ao barro devo a ampliação de meus quereres, de meus horizontes. Visualizei novas propostas de vida. Fui conseguindo entender melhor o mundo no qual vivia e vivo. Preconceitos foram minimizados. Não foi a beleza, a maciez, a facilidade que o barro oferece. Aconteceu exatamente o inverso. Ao tocá-lo diariamente, conheci sua resistência, seu “autoritarismo” (não é possível deixar de reconhecer). Então percebi com o tempo que esses aspectos me interessavam, e muito. Havia encontrado um campo de batalha onde poderia discutir tudo e me abster de concluir verdades, onde o silêncio seria denso e eu teria liberdade, dada a natureza do material. Isto aconteceu de fato. Mesmo querer ir ao encontro de outros materiais, foi através do barro. Hoje meu sentimento em relação ao barro é de gratidão.

 

Ricardo Karman7. Perguntas para o barro. O barro pensa? E a Lygia, pensa ao manipulá-lo? Ou ela é pensada pelo barro? O barro modifica a Lygia? Ou ela não é tão plástica quanto o barro? O barro é obediente? Ou a Lygia lhe obedece? Existe um conflito entre barro e Lygia? A obra é o resultado de um conflito ou de um acordo amigável? Ao final da obra, barro e Lygia fazem as pazes? Ou ela fica dias sem querer vê-lo?

Barro pensa? Não! Barro percebe, barro é generoso. Barro está sempre aberto a qualquer proposta. Isto não quer dizer que aceite qualquer proposta. Tenho um ritmo de trabalho absolutamente pessoal. Antes da manipulação, há diversos momentos muito importantes.

O primeiro: desejo. Por desejo entendo o impulso de trabalhar com o barro, a cada obra. Nesta hora faz-se necessário um afastamento do barro, é preciso silêncio, concentração. Ando muito, leio muito também (não necessariamente sobre escultura ou arte propriamente dita). Como se tentasse trazer para a superfície algo registrado há muito, e que precisa ser resgatado do fundo. E então rabisco, mesmo sem sentido. Com noções do projeto, aproximo-me do barro propriamente dito. Trata-se de nova fase do trabalho. Começa aí uma parceria, mas em uma tensão, a partir deste ponto, cada vez mais intensa. Por quê? O barro é maleável, sim. É generoso, sim. Mas apenas na primeira hora. A partir daí, ele começa a tentar se impor, com muita firmeza. Nem todo projeto o barro acolhe. Encontramos resistências concretas: ao secar, faz questão de trincar, mostrando não aceitar qualquer forma, qualquer espessura. Enquanto muito úmido ainda, desmancha-se com facilidade. Exige um ambiente físico sem vento, moderadamente estável. É sensível, muito sensível. Sou também sensível a tudo o que acontece neste clima. Passo então a acalentar o material, tratando-o com mais atenção, chegando mesmo a acarinhá-lo.

Não será assim também com o escritor, o compositor, o poeta? Ou em outras artes? Daí a essência de um trabalho artístico: ter consciência daquilo que se quer expressar, embora haja muitas vezes conflitos com o material.

E então o conflito se adensa. É preciso paciência de parte a parte. Mas paciência é atributo quase impossível quando se trata de criação. O conflito é real até a hora da abertura do forno (quando se trata do barro). A queima é traiçoeira. Vinga-se facilmente. Ao final da obra sempre acontece o mesmo fenômeno. Se ambos ficam bem, os dois percebem que é preciso avançar mais no sentido de aprimoramento, de aproveitar o potencial de cada um. Se o resultado foi um desastre, arregaçam-se as mangas com vigor e propõem-se novas investidas, novos desafios. Afinal estamos falando de arte do barro. É com paciência e perseverança poética que se consegue tirar do barro algo a mais.

 

Cecira Armitano8. Materiais ancestrais e linguagens contemporâneas se reúnem na sua obra. Desde o início, a relação entre a cor e o volume esteve presente em uma obra eminentemente escultórica. Trata-se geralmente de cores naturais, cálidas, que têm um papel determinante tanto na construção do trabalho no seu conjunto como na sua relação com o espaço tridimensional. Com um sábio tratamento dos tons, você valoriza as oposições entre estruturas maciças e ligeiras manipulando, certamente, outras conotações semânticas. Como define sua relação com a cor?

Viajando pelo Brasil ou por outros países, fui conhecendo e mesmo sendo envolvida pelas cores dos cortes nas montanhas, os fundos dos riachos, as estradas de terra por onde andava, pelas grandes extensões dos desertos, pelas florestas. Em contato com algumas tribos indígenas, conheci as argilas coloridas de Mato Grosso. Creio que esses registros todos me influenciaram de fato. Não poderia ser mais rico este leque que me foi oferecido. Ao iniciar esta viagem tão longa pelo mundo das argilas e dos barros, creio que, conscientemente ou não, fui tomada pelos meus sentidos do olfato, do visual e do tátil. Coloridos, secos, suaves, fortes, agressivos, visuais de extrema beleza – e ali à nossa disposição −, de uma riqueza inquestionável. Sempre generosamente e com simplicidade oferecendo seu espetáculo. Tão íntimo. Impossível estas cores não serem fonte de inspiração. Com o passar do tempo, comecei a pesquisar e analisar como o colorido do barro para mim era importante. E ainda é. Amadurecendo muito lentamente e compreendendo melhor a técnica da cerâmica, percebi que no próprio processo eu encontraria a cor que me seduzia tanto.

 

Raul Pereira9. Como uma metáfora, seu espaço de trabalho fica abaixo do nível da rua. E talvez não pudesse ser diferente. Como uma jazida escavada no chão, junto ao lençol freático, essa materialidade bruta, sem intermediação, serve de suporte para suas obras. A fragilidade da argila, a austeridade do aço corten, o aconchego da madeira, a impessoalidade do alumínio, a radicalidade do fogo, a fluidez da água fazem dessa mistura uma conversa difícil, dissonante e quase impossível. Mas em suas mãos adquirem vida e se transformam em arte, inquieta e visceral. E somente grandes artistas podem concretizar essa magia. Como o desenho se insere no processo de elaboração de sua obra?

Quando penso no desenho, fico deveras insegura e tímida e sentindo os vácuos existentes em relação ao meu trabalho. Nessa conversa difícil, pressupõe-se que o desenho seria fundamental para amalgamar tantos aspectos, muitos deles contraditórios. Acho que o desenho, somente ele, poderia oferecer a possibilidade de uma unidade de trabalho. O desenho por si mesmo é arte das mais importantes. Mas ser coerente não é um aspecto forte do meu fazer. Iniciei meus trabalhos já bem “amassada” pela vida. Não iniciei pensando em arte ou artista, palavras tão fortes, exigentes e comprometedoras. Queria. sim, me comprometer, mas no meu próprio mundo pessoal. Tenho folhas soltas em que, desde sempre, com um lápis preto, rabisco ideias. Como se fossem lembretes para hoje ou para o futuro. Essas folhas me remetem ao meu fazer, mas não se pode dizer que sejam desenhos. É uma forma em que posso rabiscar, tornar a rabiscar, duplicando linhas, contornos, propostas e pretensões. Muitas vezes linhas finas, quase invisíveis. Outras vezes essas linhas transformam-se em volumes. É um eterno começar, rabiscar, amassar folhas e folhas, cujo destino é um descarte radical. Reconheço ser este um método “grosseiro” de iniciar um trabalho. Reconheço ser uma maneira discutível para se chegar ao final adequado. Com o passar dos anos, tive o gosto de poder trabalhar com arquitetos que me enviavam seus projetos e me propunham idealizar uma escultura. Tenho aprendido muito. Eles ofereciam um espaço onde eu poderia criar. Espaços densos em matéria e medidas nos quais, por meio de meus rabiscos, consigo explicar minha proposta.

Eu queria ser um Rembrandt, um Matisse, um Giacometti. Hoje sei que um dia vou querer muito desenhar. Quando? Como? Ignoro. Sei, sim, de meus limites, das minhas dificuldades. Entre sonhar, querer e conseguir há um vasto caminho. Mas isto me incentiva para o difícil, para o desafio, para o aprendizado.

 

Angel Bojadsen10. Algumas de suas esculturas são de grande formato, e por sua própria tridimensionalidade tornam-se aptas a constar como intervenções na urbe. Penso mais especificamente no destino que você deu à obra que está na estação Ana Rosa do metrô, ou aquela no Parque da Luz. Você enxerga suas obras de início, na própria criação, como inseridas em contextos urbanos ou arquitetônicos, ou você deixa sua faceta pública acontecer como obra do acaso?

Sua pergunta é pertinaz. O fato de um artista criar esculturas de grandes dimensões não o torna necessariamente apto a ocupar espaços urbanos, creio eu. A cidade é um complexo, deve ter a sua identidade, a sua história, a sua cultura. Veja você que a cidade de Nova York exigiu a retirada, de uma de suas ruas importantes, de uma escultura de Richard Serra. Desconheço a razão da retirada, mas aconteceu. Uma pena. Este fato e outros tantos exigem uma reflexão dos escultores, dos poderes públicos, dos arquitetos urbanistas. Não basta exigir praças e logradouros espaçosos. Não basta existirem escultores de grande valor. Creio que a adequação perfeita existirá se de antemão estes aspectos da cidade forem pensados e projetados no longo prazo. A colocação de uma escultura em determinado logradouro não deve surgir apenas como “decoração”, muito menos para dar visibilidade a quem quer que seja o escultor.

Você me pergunta sobre meus trabalhos em contextos urbanos. As figuras que se encontram na estação Ana Rosa foram mostradas na Bienal Internacional de São Paulo de 1991. Ao final da exposição, fui procurada pelo Metrô para conhecer uma estação. Ofereciam, em uma plataforma, um espaço bastante adequado para colocar meu trabalho. Durante a Bienal, ouviram-se opiniões de visitantes comparando as cabeças a usuários do metrô.

Durante a montagem da obra na estação, pessoas paravam e sentiam-se projetadas ali, naquele caminho usado por elas.

Quanto ao “colar” que está no meio das árvores, no parque vizinho à Pinacoteca, também tive outra boa experiência. Ao inaugurar o jardim das esculturas, fui procurada pelo seu então diretor, Emanoel Araújo, para adquirir meu trabalho de esferas. Era um trabalho que estava no ateliê, entre os inúmeros que faço para tentar executar novos projetos.

 

Romulo Fialdini11. Se você tivesse de escolher um espaço para ocupar com sua arte (só pode escolher um), qual destes você escolheria e como você faria: uma rua de Nova York (identificar, se possível), uma rua de São Paulo (identificar, se possível), uma rua de Bagdá (duvido que você consiga identificar alguma), uma plantação de soja em Mato Grosso, a Capela Sistina? Se você quiser fazer uma obra para cada espaço, está bem... eu deixo!

Não tenho a mínima dúvida: escolheria uma plantação de soja em Mato Grosso. Não por se tratar do Brasil, óbvio. Qual profissional, tendo o espaço como um de seus objetivos, deixaria de optar pelos campos de Mato Grosso? É bem verdade que me foram sugeridas opções muito especiais. Não deixa de ser lisonjeiro: uma rua em Nova York, em São Paulo ou Bagdá... A Capela Sistina está fora de cogitação. A Capela Sistina é de Michelangelo. Por direito, reconhecimento mundial, e pela perfeição de seu trabalho. Como eu faria uma obra de arte em Mato Grosso? Desenharia um círculo de cerca de 500 metros de diâmetro (aproximadamente a distância, na avenida Paulista, entre o Masp e a esquina com a rua Augusta). Com estas medidas, haveria a possibilidade de visualizar o círculo mesmo em uma imagem de satélite. Escavaria este círculo a uma profundidade de 50 centímetros, recobrindo o interior com cerâmicas inspiradas naquelas da região. Estou descrevendo o projeto de maneira simplificada. Essas cerâmicas seriam pesquisadas profundamente, não só quanto aos motivos como também quanto às cores e ao desenho a ser projetado. Creio que seria um projeto complexo, com muitos estudos preliminares e detalhamento específico. Sei do arrojo e do desafio também. Mas para mim seria talvez minha Capela Sistina profissional.

Por que o círculo, o tamanho e as cerâmicas? Em viagens aéreas, a vista nos descortina círculos imensos de terra, de vegetação ou tipos de irrigação construídos pelo homem. E muitas vezes pensei se não se poderia fazer “arte rupestre” atual. No barro encontraria um material específico da região. Essa ideia me interessa. E esse barro trabalhado de maneira rústica mostraria visivelmente a natureza da região antes de haver sido trabalhada pelo agricultor. Aparentemente simples, a ideia, ao se metamorfosear em obra de arte, seria uma homenagem à própria região e também ao homem da terra, ao agricultor que manuseou fundo os campos de Mato Grosso.

 

Jorge Schwartz. Sempre me surpreendeu a sua forma de produção, Lygia. É como se houvesse em seu pensamento uma matriz que produzisse multiplicações incessantes, seja em forma de esferas, de cubos, de superfícies as mais variadas. Parecem tramas que se desdobram de si próprias, como se fossem projeções ou prolongamentos de um mesmo trabalho, que a cada instância renasce renovado. Sempre vi a sua produção como uma engrenagem incessante que, como disse antes, vai-se multiplicando. Gostaria de saber: este processo causa em você a mesma surpresa que ao leitor/espectador da obra?

Desde sempre trabalhei dessa forma. Minha reflexão era a seguinte: qual a relação com o fazer do oleiro ou do industrial? Teria algo em comum? Gosto de produzir uma, duas ou três vezes a mesma ideia. Veja meu trabalho na estação Ana Rosa do metrô, as esferas da Pinacoteca ou certos painéis colocados em prédios, ou mesmo algumas instalações. Estaria sendo influência da gravura? Ou da maneira como os índios trabalham repetidamente o barro? Ou seria uma forma de melhorar, no processo, o produto final? A questão me incomodava bastante. Busquei esclarecimentos. Procurei conhecer melhor nos livros esta questão do fazer. Encontrei Morandi, encontrei Munch, Egon Schiele, Matisse, Rembrandt e um sem-fim de grandes artistas. Punha- me a fazer paralelos (perdoe minha arrogância). Confesso hoje minha tranquilidade em relação a esse aspecto da repetição em minha obra, mesmo sem ter uma resposta clara. Veja Amilcar de Castro ou Richard Serra, Torres García ou Malevitch. Cada artista tem a sua “marca”.

 

Ana Maria Belluzzo12. Observo carinhosamente sua obra, enquanto ela me toma de inquietações. Indago: que ordem você impõe à própria experiência? Noto que suas peças não se submetem tanto às leis da visão. Revelam-se, sobretudo, táteis. Propõem primordialmente um elogio à matéria. Como escultora dedicada ao tratamento das massas, você anima a substância e se dedica à passagem de uma forma à outra. Modela. Ao manejar a matéria, estaria atenta ao peso, ao equilíbrio, à densidade. Poderá testemunhar metamorfoses... do plástico ao rígido... do cru ao cozido..., assim como admirar acasos. E o “mesmo” se repete em uma permanente variação. A “espécie” cresce e se multiplica. Indago ainda como suas obras acontecem no espaço, como se distribuem, como se compõem. E como se dispõem? Sejam aquelas grandes contas geométricas que ornamentam árvores, ou volumes sólidos que formam conjuntos ao ar livre, ou ainda pequenas superfícies que revestem muros... Estaríamos diante de uma gramática ornamental? O que dizer dessa arcaica dimensão do moderno? Entre as soluções encontradas, seriam todas descendentes da plástica cerâmica? Em que momentos sua obra responde às provocações da matéria? E quando é que sua obra encerra um tempo encantado sob a égide da técnica?

O que seria uma gramática ornamental? O conceito de gramática leva-nos à ideia de regras que regem implicitamente o mundo das palavras. Mas se estendermos o termo gramática aos outros significados, a gramática regula atividades da linguagem. E tendo as artes visuais ou musicais, teatrais, literárias ou cinematográficas, cada uma com suas “regras”, a gramática ornamental deverá ser a linguagem que rege os ornamentos. Surge então uma eterna e presente discussão: todo ornamento deve ser tomado como negativo? Positivo? Será que existe ainda hoje uma arte conceitual totalmente despojada de uma ideia ornamental? Entre artistas da cerâmica essa discussão existe, mas os pontos de vista são um pouco diversos. Se você considera o barro um material de fundição absoluta, não tratado como capa ou adorno, há aceitação. É na fundição, através da temperatura, que esse processo permite a exceção. Minha opinião? Não consigo ter uma percepção clara sobre todas as teorias do ornamento. Mas respeito essas ideias, tratando-as com muita atenção. Afinal o barro aceita, deseja, pede, oferece, seduz pela sua natureza tátil, maleável, doce. Características visuais até quando nos aproximamos de um torrão de terra seca, junto de uma estrada desfeita pela chuva ou pelos ventos.

Essa arcaica dimensão do moderno em um tempo encantado sob a égide da técnica lembra-me um amálgama – elementos diferentes formando uma única, nova e verdadeira fusão.

 

Ricardo Caruana13. O que é um clássico? Que “ingredientes” são comuns nas criações universalmente reconhecidas como clássicos? A cerâmica produziu clássicos?

Clássico não tem a ver com o estigma de ultrapassado. Remete à ideia de permanência. A cerâmica é ancestral. Veja as ânforas, os mosaicos bizantinos maravilhosos, azulejos que decoram as catedrais. É tudo absolutamente clássico. Ainda para responder à sua pergunta, se tentarmos definir o que é clássico, na esteira de Borges e Calvino, para quem o texto clássico é aquele que os leitores estabelecem ou canonizam ao longo do tempo, e que nunca termina o que tem para dizer, eu diria que o barro, entre todos os materiais, tornou-se o “meu clássico”, não somente por ter sido a minha escolha predileta, como por se tratar de um material que, como disse anteriormente, nunca termina de se expressar.

 

Eduardo Giannetti da Fonseca14. O crítico literário inglês Walter Pater, na trilha do filósofo alemão Novalis, afirma que toda arte aspira constantemente à condição de música. Você acredita, Lygia, que exista alguma espécie de afinidade profunda entre essas diferentes modalidades de expressão artística? E, no seu caso em particular, que outros gêneros de criação artística teriam maior afinidade com o seu trabalho, ou poderiam traduzir aquilo que você expressa por meio da composição em cerâmica e metal? Se suas esculturas se transformassem em sons e harmonias, o que nós ouviríamos?

 

 

Se organizarmos uma relação de sentimentos díspares, contraditórios, perceberemos que a música poderá fazer nascer em nós todas as emoções. Imagino que estas ideias façam parte de infindáveis polêmicas filosóficas. Daí concordar que as mais diversas expressões artísticas têm sempre em comum afinidades que possam dialogar de modo bastante íntimo. A música é a arte maior, por muitas razões: essencialmente por ser a única expressão artística que não necessita de algo palpável.

Muitas vezes eu associei meu trabalho à arquitetura, às escritas antigas (aquelas executadas em pranchas de barro), aos desenhos rupestres inscritos nas cavernas e, para a minha surpresa, à geometria. Se minhas estruturas se transformassem em som, pretensiosamente eu diria que poderiam não só ser um “Tico- tico no fubá” como passear pelo mundo das óperas, pelas músicas interpretadas ao piano ou violoncelo, chegando mesmo a Philip Glass.

 

Beatriz Bracher15. Lygia, sei que você gosta de ler. Quais são os autores que mais a visitam quando você está criando ou pensando sobre uma nova obra? Você tem alguma ideia de por que são justo estes e não outros? Não digo autores que influenciam, porque sei que isso tem mais a ver com o lugar a que você gostaria de chegar, digo os autores que de repente você lembra, quando está pensando ou fazendo uma obra.

Tenho uma pequena biblioteca. Um conjunto de livros de crítica de arte escritos por artistas. Não são muitos. Mas ler, reler e pensar nesses textos me deixa muito atenta para criar, para o fazer artístico. Muitas vezes releio Matisse, Chillida, Paul Klee, Rodin, Jean Dubuffet, Paul Cézanne, Kandinsky, Tàpies, Giacometti. Veja você que o leque é amplo, construído durante épocas diversas. Sinto-me envolvida e atraída por estes e tantos outros artistas. No mundo da literatura é diferente. A “palavra” é a própria arte. Sempre penso nesta diversidade de situações. E me lembro de gostar de ler Foucault, Sartre, Ferreira Gullar, Baudelaire e inúmeros outros. E na música há ainda outro meio de comunicação. Nem a palavra, nem a arte visual; aqui o som é comunicador. Trata-se de temas, como tentei explicar, que com frequência levo para o ateliê ou, melhor, para a minha vida.

 

Luiz Eduardo Cerqueira Magalhães16. Sou admirador de sua obra, por isso a convidei para criar um painel e uma peça escultural a serem expostos de forma permanente no foyer do Teatro Santa Cruz. O quanto você se preocupa no ato de criação de uma obra com os críticos de arte, ou com um número seleto de pessoas que constituem os admiradores de sua arte? Durante seu processo criativo você tem o seu pensamento voltado para como sua obra será recebida?

Gosto de olhares críticos, independentemente de serem positivos ou negativos. Neste aspecto, concordo com Igor Stravinsky, que escreveu certa vez que a crítica é também uma arte e que, sendo assim, não deveria ficar imune à nossa própria crítica. E também estou de acordo com ele quando afirma que a crítica deve ser totalmente livre em seu terreno próprio. Assim como a arte que, quanto mais trabalhada, discutida, comentada, mais livre se torna.

 

 

Endereço para correspondência
Jorge Schwartz
Museu Lasar Segall
Rua Berta, 111
04120-040 – São Paulo – SP
E-mail: jschwartz@mls.gov.br

Recebido: 10/10/2010
Aceito: 25/10/2010

 

 

* Professor titular de Literatura na Universidade de São Paulo e atual diretor do Museu Lasar Segall.
1 Cesar Hirata (Ed.). Lygia Reinach. São Paulo: Imprensa Oficial (no prelo).
2 Lygia Reinach, escultora que adotou a cerâmica como meio de expressão”. Com esse material desenvolveu projetos de grande porte, nos quais muitas vezes a argila aparece combinada com a água em movimento. É autora de instalações destinadas à ocupação de espaços urbanos, públicos, como o Metrô da Cidade de São Paulo (Estação Ana Rosa) e o Museu de Arte Contemporânea. Entre as várias exposições destaca-se sua participação na XXI Bienal de São Paulo, em 1991. Em 1992, participou da exposição “Barro de América”, no Museu de Arte Contemporânea Sofia Imber, em Caracas, Venezuela. Em 1999, representou a América Latina na Bienal de Cerâmica de Tóquio.
3 Arquiteto.
4 Arquiteto, artista plástico, designer e cenógrafo.
5 Arquiteto, professor da Escola da Cidade.
6 Crítico de arte, professor e escritor.
7 Arquiteto e diretor de espetáculos multimídia.
8 Museóloga e curadora independente.
9 Arquiteto e paisagista.
10 Editor, diretor da Ed. (?) Estação Liberdade.
11 Fotógrafo.
12 Pesquisadora, crítica de arte e professora titular da FAU-USP.
13 Arquiteto, professor da Escola da Cidade.
14 Economista, professor e escritor.
15 Escritora e roteirista.
16 Diretor do Colégio Santa Cruz, falecido em julho de 2010.

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