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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.51 São Paulo dez. 2010

 

EM PAUTA - PSICANÁLISE E ESCULTURA - PER VIA DI LEVARE

 

Per via di porre, per via di levare, per via di... vivere...

 

Per via di porre, per via di levare, per via di... vivere...

 

 

Ana Maria Brias Silveira*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo propõe que a psicanálise, assim como a arte, se movimenta sempre em direção a uma perpétua redescoberta de si mesma, movimento este que contempla a possibilidade de que o anterior não perca sua validade, seu sentido e sua autenticidade diante da expansão e do enriquecimento com o atual. Para desenvolver esta ideia, é comentado o vídeo Air-Cushioned Ride, de Anri Sala, bem como material clínico de um adolescente no contexto da evolução das teorias psicanalíticas.

Palavras-chave: Psicanálise, Arte, Redescoberta, Processo, Espaço potencial.


ABSTRACT

The piece discusses the idea of a non-static analytical thinking relating to those in art, contemplating multiple approaches to the subject/medium taking into consideration the experience of today, commenting on Anri Sala’s Air-Cushioned Ride video as well as on clinical presentation from a teenage boy.

Keywords: Psychoanalysis, Art, Rediscovery, Process, Potential space.


 

 

O Centro de Arte Contemporânea Inhotim, em Brumadinho, Minas Gerais, abriga em um de seus pavilhões uma obra do albanês Anri Sala que consiste na apresentação de um vídeo filmado de dentro de seu carro, dando voltas no estacionamento de um posto de gasolina no Meio-Oeste americano, frequentado basicamente por grandes caminhões. O artista fazia uma viagem por esta região, escutando música barroca no rádio de seu automóvel, e ao entrar na área de descanso do posto viveu a experiência de sofrer em seu áudio a interferência das emissoras de rádio sintonizadas pelos caminhões, evidentemente todas de música country. O resultado para o espectador é uma espécie de passeio circular, aparentemente sem muito propósito, algo como um pequeno road movie em meio a enormes e moderníssimos veículos de carga, tendo ao fundo um horizonte azul sem fim e ao som de um mix de clássico e country, que às vezes mais se assemelha a cacofonia.

Um adolescente chega para sua sessão de análise e começa a falar sobre a viagem ao Oriente que fará em suas próximas férias. A analista entabula uma conversa continuando o assunto, entram na internet para pesquisar juntos alguns dados históricos e culturais dos países que o jovem visitará. Conversam.

Estes dois registros transcorrem em nossos dias.

Partirei da ideia de que a psicanálise, assim como a arte, se movimenta em direção a uma perpétua redescoberta de si mesma, movimento este que contempla a possibilidade de que o que passou não perca sua validade, seu sentido e sua autenticidade diante da expansão e do enriquecimento com o atual. Sobre esse movimentar-se Freud nos deu um belíssimo exemplo ao construir o arcabouço teórico da psicanálise, a metapsicologia. Esta foi, e continua sendo, desenvolvida a partir da experiência clínica, não como um sistema em que o novo substitui o anterior, mas como um processo em movimento do qual fazem parte hesitações, abismos e crises inerentes a qualquer teoria viva.

Conforme mencionado na carta-convite para a ide 51, Freud, em 1904, em Sobre psicoterapia, apontou o rumo que a técnica psicanalítica deveria tomar:

há entre a técnica sugestiva e a analítica a maior antítese possível, aquela que o grande Leonardo da Vinci resumiu em relação às artes nas fórmulas per via di porre, per via di levare. A pintura, diz Leonardo, trabalha per via di porre, pois deposita sobre a tela incolor partículas coloridas que antes não estavam ali; já a escultura, ao contrário, funciona per via dei levare, pois retira da pedra tudo o que encobre a superfície da estátua nela contida. (Freud, 1904/1989b, p. 244)

Notamos aqui, subjacente a esta proposição, a ideia de uma espécie de emergir da psique que ocorreria a partir do trabalho terapêutico psicanalítico ao libertarmos o analisando das amarras da repressão, deixando surgir o potencial de seu ser, com maiores possibilidades de existência plena, tal como a estátua aprisionada na pedra a partir da qual ela surgiria pelo trabalho do escultor ao retirar o que a encobre. No entanto, para chegar até aqui, um longo caminho já havia sido percorrido.

Freud iniciara sua atividade profissional na qualidade de neurologista, tendo escrito seu primeiro trabalho teórico, sobre afasias, em 1891, no qual, de forma inovadora para sua época, cria os termos “aparelho de linguagem” e “escritura psíquica”. Segue-se em 1895 o Projeto para uma psicologia científica, neste já mencionando abertamente seu interesse em fornecer uma concepção do aparelho da alma, posteriormente aparelho psíquico. Vemos então como rapidamente, no espaço desses quatro anos, foi se desenhando o interesse do fundador da psicanálise pela alma humana, o que o leva ao rompimento com seus mestres iniciais da neurologia, sem no entanto perder a influência do modo de pensar desta ciência.

Faço alusão aqui a esses dois trabalhos, considerados por muitos como pré-psicanalíticos, pois tal como na vida e na arte, nas teorias psicanalíticas é preciso muitas vezes um olhar retroativo para se perceber o que estava em jogo, ainda informe na origem, e que só foi dando fruto às várias possibilidades de sentido na medida em que indagações e surpresas de seu percurso abriram novos caminhos.

De início Freud estava interessado em pesquisar as bases da formação do psíquico e, como a “escritura psíquica” tinha a ver com o “aparelho de linguagem”, este pôde funcionar como o molde para pensar o inconsciente, que será apresentado em A interpretação dos sonhos, publicado em 1901, considerada a obra inaugural da psicanálise.

No trabalho diário de Freud, ao interesse acadêmico somava- se o de atendimento clínico, com novos interrogantes e desafios a cada dia. Neste interjogo enriquecedor surgiram questões tais como qual seria o motivo do adoecer psíquico, da raiz dos sintomas e o que fazer para mitigar esse sofrimento.

Não caberia neste espaço refazer o longo e rico percurso empreendido por Freud e seus seguidores nestes mais de cem anos de psicanálise, uma vez que a intenção aqui não é a de uma retrospectiva histórica, e sim a de refletir sobre o movimento vivo de nossa disciplina. Vale mencionar, porém, que tal como a obra Les demoiselles d’Avignon de Picasso é um marco do modernismo na pintura, e o Ulisses de James Joyce delimita um novo território na literatura, na psicanálise alguns textos mostram-se balizadores de sua construção teórica.

Em 1923, com seu texto O ego e o id, em que define o Eu inconsciente e sua gênese, Freud traz um novo e revolucionário aporte metapsicológico, a segunda tópica. Neste momento a teoria da clínica psicanalítica volta a sua atenção não apenas para a simples tomada de consciência, mas a partir da questão tão claramente explicitada na célebre frase Wo es var soll ich werden − “ Onde estava o id, ali estará o ego (Freud, 1933/1976, p. 102) questões tais como as vicissitudes do trabalho de simbolização vão adquirindo maior relevância.

Não mais era possível falar de “o” inconsciente, pois ficou claro haver várias maneiras de ser inconsciente: o inconsciente funcional, que seria o pré-consciente, o inconsciente recalcado, objeto inicial da psicanálise, e agora também formas de inconsciente dissociado, não estruturado, uma maneira de ser e de não ser na psique, que corresponde ao que não teve lugar, ao que foi vivido e não simbolizado, o traumático que assombra a psique em busca de representação, em busca de poder existir para o psiquismo.

Foi assim que se evidenciou, ao longo do trabalho clínico, principalmente a partir do exame das organizações não neuróticas em que há predomínio do sofrimento narcísico, a insuficiência desta concepção inicial de funcionamento psíquico para abarcar todas as suas possibilidades. No início da teorização psicanalítica partia-se da ideia de um psiquismo já de posse de uma atividade representativa inconsciente, ou seja, de um psiquismo já em condições bastante favoráveis de desenvolvimento, e foi ficando claro que para que isso ocorra determinadas condições se fazem indispensáveis.

Tendo como raiz esse quadro teórico, e tentando dar conta do estudo dos processos que permeiam a formação primeira do psiquismo, surgem contribuições como as de Bion, com a função alfa, e Winnicott, com o espaço potencial e a teoria da transicionalidade. Estas, ao retomar por outro viés as teorias da formação de símbolos, põem em evidência a importância do objeto externo: a necessidade não só da existência, mas também de determinadas aptidões do objeto externo, bem como de condições internas do sujeito para que o processo de apropriação subjetiva, simbolização, possa se iniciar e desenvolver satisfatoriamente.

Todo esse encadeamento aparentemente tão lógico como um documentário da TV Escola pode sugerir um deslizar sem atritos de uma concepção teórica a outra, um evolver sem conflitos nem hesitações, ou, ainda pior, pode nos levar a crer na possibilidade de “uma pseudoclarificação baseada num inventário ordenador das ideias e conceitos produzidos em diferentes horizontes ...” (Menezes, 2001, p. 85).

Bem, todos nós sabemos que não é nem de longe que as coisas acontecem assim, na vida, na ciência, e também na arte. Não só a busca de novos caminhos implica a existência de rupturas e sofrimento individuais, como os saberes adquiridos, as ideias estabelecidas, as correntes artísticas e científicas em vigor facilmente se transformam em ideologias e se sentem ameaçadas, opondo forte resistência ao que inova. Assim, não há criador, não há sujeito que não tenha experienciado este choque, em maior ou menor grau na construção, quer de novas ideias, quer de seu verdadeiro self.

Freud, ao partir de determinados pressupostos, construiu suas teorias em contextos que não são os mesmos em que se desenvolveram os conceitos dos que o sucederam, o que faz com que uma mesma questão clínica ou teórica possa ser examinada e desenvolvida a partir de ângulos diversos, enriquecendo e ampliando nosso fazer psicanalítico.

Vamos tomar então as contribuições de Winnicott (1975), que propôs o modelo do jogo, e com isto a teoria da transicionalidade, como forma de exploração das zonas não representadas do psiquismo em direção à representação.

O primeiro ponto essencial da teoria da transicionalidade é que há uma distância entre a experiência e sua representação, entre a inscrição primeira da experiência vivida e sua simbolização representativa.

Bem conhecido é o relato com que Winnicott ilustra esta situação, sua observação do comportamento de bebês que desenvolvem um apego especial por um paninho ou qualquer objeto macio que encontrem casualmente à sua disposição no berço, enfim, algo do universo inanimado que a mãe deixou ao seu dispor. Esta atribuição espontânea de significado ao objeto, que Winnicott denominou de objeto transicional, marca a entrada desta criança no mundo da cultura, da simbolização.

O espaço potencial, esse hiato entre a experiência e a sua simbolização, essa espécie de limbo da mente, contém em germe a potencialidade de uma primeira forma de simbolização das experiências vividas e que pode tanto se desenvolver como fracassar, devido ao fato de que ela não é um dado automático da experiência subjetiva.

Neste último caso, se as angústias extremas, as agonias primitivas que tanto ameaçam o ser, não encontrarem a possibilidade de contenção e elaboração, podem levar a processos dissociativos ou de retirada de si mesmo como forma de buscar proteção para um sofrimento insuportável, anulando qualquer possibilidade de representação dessas vivências. São elas a fonte inesgotável da destrutividade e dos comportamentos antissociais.

As potencialidades criativas, de vida, ao não poderem se fazer reconhecer, irão pouco a pouco gerando uma vivência de desistência, levando a uma espécie de categoria particular do traumático que esvazia e melancoliza o ser.

Ao contrário, se no encontro com os objetos de referência, e a partir dos ecos do meio, houver a possibilidade de investimento e registro representativo, teremos o desenvolvimento do ser e a ampliação das capacidades criativas do viver.

É fácil perceber em nós o alcance desta necessidade, inerente ao ser, de ter reconhecidas e desenvolvidas suas capacidades criativas: todos nós já vivemos a experiência de nos sentirmos “tratados” a partir da leitura de um poema, ou no contato com uma obra de arte, ou ainda uma peça musical que nos fez entrar em sintonia mais harmoniosa com nosso ser.

O poeta Ferreira Gullar, em entrevista para a televisão, mencionou certa vez que a leitura de poesia não trata dor de dente, não favorece o saldo bancário, mas sem dúvida enriquece e melhora a vida.

Por que isso ocorre? Sem dúvida é quando este encontro movimenta algo em nós que nos leva ao contato com partes nossas à espera de serem formadas e reconhecidas.

Voltemos à sessão de análise do adolescente que mencionei no início.

Por sugestão da escola, ante o seu desinteresse e por vezes aflição diante das tarefas escolares, nas quais geralmente fracassava, os pais desse garoto procuraram ajuda quando ele se encontrava com onze anos. Notavam também que ele não se relacionava livremente com os colegas, levantando a hipótese de que o fato de se encontrar com sobrepeso pudesse estar interferindo.

Nas primeiras sessões de análise, embora demonstrando interesse em estar ali, mostrou-se bastante retraído e contrafeito. Sugeri então o jogo do rabisco, como forma de iniciar uma interação que me permitisse a aproximação. Uma espécie de animais balofos, porém cheios de pontas agudas, foi o resultado frequente desses desenhos a dois, ao mesmo tempo em que surgia na conversa a temática de comidas que ele gostava de cozinhar e dos muitos restaurantes que frequentava com sua família, o que percebi ser o lazer preferido por eles.

Ao término das sessões ele sistematicamente dizia: “Já acabou?! Nossa, como passou rápido, como é bom conversar!”.

Fui tentando sentir quais poderiam ser para ele outras áreas de interesse, além da culinária, e a partir disso comprei diversos livros que, a partir de uma escolha dele, passamos a ler por partes, rindo e comentando juntos, sem que eu fizesse nenhuma alusão direta a questões que poderiam muito bem ser suas.

Nesse percurso, o que mais o fascinou foi um jogo, “Viagem pelo Mundo”, em que os dois jogadores precisam organizar suas rotas de viagem de forma a completar o mais rápido possível o trajeto que é dado a partir do sorteio de cartões que contêm o nome das cidades e no verso uma explicação sobre elas. Para minha surpresa sua curiosidade sobre essas cidades, muitas vezes remotas e desconhecidas tanto para ele quanto para mim, era tão grande quanto seu desejo de vencer o jogo.

Não vou me alongar neste relato, apenas mencionarei que o garoto é agora um adolescente, interessado e bem-sucedido em seu desempenho escolar, que não venceu o sobrepeso, embora pratique esportes com muito prazer, o que lhe possibilita boa integração em seu grupo, e que está se apossando de forma real de seus desejos pessoais.

Sem dúvida este trabalho não pode ser entendido como a tentativa, por parte da analista, de formular ao paciente o que subjaz à sua fantasia inconsciente − per via di levare −, embora isto esteja presente, mas, neste caso, de forma secundária na mente da analista.

O que aqui aparecia de maneira mais fundamental, uma vez que cada atendimento é único e nos mobiliza de formas totalmente diversas, era fornecer as condições para que esse garoto, nesse momento de sua existência, a puberdade, pudesse encontrar as condições de tomar contato com seu desejo, e se apossar de necessidades pessoais, dando assim vida a seu mundo interno, apagado e abandonado, talvez em parte sob o peso de um luto familiar estendido, não encerrado, por uma figura mítica do universo parental.

As potencialidades de ser permaneciam “em suspensão”, evidenciando a impossibilidade de um trabalho de apropriação subjetiva das vivências de sua trama pessoal, formadoras das fronteiras de sua identidade, e os efeitos disso já se faziam presentes.

Como intervir de maneira adequada, ou como adaptar o sentido do trabalho interpretativo de modo a pôr em marcha a retomada dos processos de simbolização, sem no entanto criar um novo campo iatrogênico de intervenção, ou interpretação, que poderia prejudicar o precário equilíbrio narcísico-identitário inerente a esse momento do ciclo da vida?

Lembrando mais uma vez que cada atendimento é único, é importante ter em mente que a analista considerou que naquela circunstância o melhor seria fornecer as condições favoráveis para que o analisando pudesse recuperar suas condições de pôr em marcha suas potencialidades “em suspensão”. O modelo do brincar, do jogar, segundo Winnicott, apareceu aqui como representativo desse movimento de encontrar/criar, dar vida e sentido a seu agir.

Na situação clínica relatada, a presença da analista, com seu “saber analítico”, os livros, os jogos, a internet, tudo ali estava à disposição para ser achado/usado/criado a partir do “saber de si” inerente ao analisando, embora este saber não tivesse sido ainda enunciado por ele para ele mesmo.

O jogo “Viagem pelo Mundo”, em um registro simbólico, poderia ser interpretado como o jogo representativo da expansão das fronteiras da identidade, a descoberta de novos mundos internos e externos, novas possibilidades, e a legitimação do desejo de si.

Vamos agora ao vídeo.

Air-Cushioned Ride (2006) é o título do vídeo de Anri Sala mencionado no início deste artigo.

Alguns lugares não guardam edifícios ou datas a serem lembrados, mas produzem sua própria trilha sonora.” Com essas palavras, retiradas de suas anotações, Anri Sala descreve a ambientação de Air-Cushioned Ride (2006). ... Numa clara referência ao gênero road movie, Sala investiga a ideia de um lugar intermediário, que nunca é o ponto de partida ou de chegada, mas que desenvolve suas potenciais qualidades a partir do tempo. (Instituto Cultural Inhotim, 2006)

Com estes dizeres, a curadoria de Inhotim apresenta o referido vídeo.

Inhotim é um lugar fantástico não só pelo acervo de arte contemporânea que abriga, mas surpreendente e insólito pela beleza de seus jardins tropicais, com paisagismo de Burle Marx, e pelo local em que se encontra, no meio do nada, pressupondo uma travessia que é por si só significativa da aventura interior que está “por vir”.

a collection of artwoks that would be impressive anywhere but are very nearly magical when placed in a semitropical setting designed in the vaguely surrealist style of the Brazilian landscape architect Roberto Burle Marx. (The New York Times Magazine, 2009)

Já de saída a primeira ruptura que este lugar nos propõe é com o velho conceito de museu tradicional como lugar de abrigo da obra de arte, ao que logo se segue o impacto do contato muito estreito e direto com os novos procedimentos da arte, assim como com as alterações ocorridas na linguagem artística. Da mesma forma que no trabalho analítico vamos criando uma espécie de “situação analítica”, em que a dupla analista/analisando vai sendo envolvida em uma atmosfera que propicie ao paciente encontrar ou reencontrar sua capacidade de dar vida e sentido a seu mundo interno, em Inhotim os grandes espaços e a possibilidade de interagir ou penetrar fisicamente as obras tornam muito evidenciada a ruptura com a tradição clássica, quer pela apropriação de cenas e objetos do cotidiano, quer pelo caráter conceitual e experimental de rejeição aos sistemas clássicos de representação.

Entre tantas obras notáveis que ali se encontram, por que escolhi falar do vídeo de Sala?

Sem dúvida, ao me deparar com este trabalho aparentemente singelo, vivi um daqueles encontros a que me referi, em que algo dentro de nós se movimenta dando sentido a muitas coisas que já sabíamos e pressentíamos sem saber que sabíamos.

O que primeiro me cativou foi a possibilidade de o artista como em um brincar, no movimento vivo da vida, se deixar surpreender pelo inesperado e ser capaz de capturá-lo dando-lhe um sentido intuitivo maior, que provavelmente escapa a ele mesmo, mas que pode se revelar pleno de outras aberturas para espectadores totalmente leigos como eu. A promessa, um tanto épica, de liberdade sugerida pela vastidão do horizonte do Meio-Oeste americano ecoou em mim no sentido da liberdade interior disponível para que o artista, assim como o psicanalista, possa se valer de meios e técnicas expressivas que não fazem parte do arsenal tradicional. O encontro do barroco, a música evocando o velho continente europeu, com a country music em uma mistura eloquente, juntamente com o partir e o chegar dos grandes caminhões semelhantes a monstros mitológicos modernos, me remeteu, tal como meu jovem analisando com seu jogo “Viagem pelo Mundo”, ao alargamento e à conquista de novas fronteiras identitárias. A associação que espontaneamente ocorreu ao artista foi o registro mnêmico de um lugar, ou talvez um não lugar, conforme teorização de Marc Augé (2003), que em vez de poder ser evocado por sua paisagem seria evocado, de forma totalmente efêmera, por sua música.

No trabalho de Sala encontrei, em uma linguagem não psicanalítica, aquilo mesmo a que se refere a teoria da transicionalidade quando nos diz que cada ser deve se apropriar e “criar” o mundo que ele encontra em seu meio para que, a partir dali, possa emergir o verdadeiro self, seja ele o self pessoal ou o psicanalítico, construído a partir da riqueza e da diversidade de vivências e teorias em nosso campo.

Quem observar as duas situações mencionadas no início deste artigo, o vídeo de Sala e o fragmento de sessão, desconhecendo todos os procedimentos conceituais que cercam os dois processos, poderá pensar que se trata de situações muito corriqueiras do cotidiano − aliás, este é o tipo de observação bastante comum que se faz diante de muitas obras da arte contemporânea. Basta aprofundar esta pesquisa para perceber o quanto de trabalho e de sutileza é necessário para fazê-las acontecer.

Se na arte os modelos tradicionais da escultura e da pintura já não são suficientes para dar conta de toda a gama de possibilidades expressivas que foram naturalmente se desenvolvendo, no trabalho clínico psicanalítico o modelo inicial de interpretação da fantasia inconsciente também não dá conta de todos os desafios que a clínica nos propõe.

Só podemos então contar com a inesgotável capacidade de criação e renovação do ser: per via di porre, per via di levare, per via di criare, per via di vivere.

 

Referências

Augé, M. (2003). Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. (3a ed.) Campinas, SP: Papirus.         [ Links ]

Freud, S. (1976). Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. Conferência XXXI: a dissecção da personalidade psíquica. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad, Vol. 22, pp. 75-102). Rio de Janeiro : Imago. (Trabalho original publicado em 1933).         [ Links ]

Freud, S. (1989a). O ego e o id. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 19, pp. ). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1923)        [ Links ]

Freud, S. (1989b). Sobre psicoterapia. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 7, pp. 239-251). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1904).         [ Links ]

Instituto Cultural Inhotim. (2006). Air-Cushioned Ride [vídeo]. Acervo Inhotim Centro de Arte Contemporânea. (www.inhotim.org.br).         [ Links ]

Menezes, L. C. (2001). Fundamentos de uma clínica freudiana. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

The New York Times Magazine (2009). Planet Art. Outside a small town in southeast Brazil, a new world wonder is taking shape: an astonishing 3,000-acre shrine to contemporary art. (www.nytimes.com/2009/09/27).         [ Links ]

Sala, A. (2006). Air-Cushioned Ride. Vídeo digital, 6min4s, colorido, sonoro.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Leitura complementar:

Brusset, B. (2005). Métapsychologie du lien et “troisième topique”? Bulletin de la Société Psychanalytique de Paris, 78, 19-88.

Garcia-Roza, L. A. (2004). Introdução à metapsicologia freudiana (Vol. 1). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Roussillon, R. (2000). Atualidade de Winnicott. Trieb, Rio de Janeiro, 9, 55-71. (Trabalho original publicado em 1999).         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Ana Maria Brias Silveira
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tel.: 11 3842-4769
E-mail: anabrias@uol.com.br

Recebido: 04/10/2010
Aceito: 20/10/2010

 

 

* Psicanalista, membro associado da SBPSP.

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