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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.51 São Paulo dez. 2010

 

EM PAUTA - PSICANÁLISE E ESCULTURA - PER VIA DI LEVARE

 

Mulher penteando os cabelos

 

Woman combing her hair

 

 

Maíra Firer Tanis*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A intenção do artigo é estudar os aspectos envolvidos na captura estética através da análise de um caso de fruição intensa provocada pelo contato da autora com uma escultura de Archipenko. Discorre sobre o fenômeno da recepção da obra de arte a partir do relato de uma experiência singular, procurando compreendê-lo a partir de modelos teóricos específicos tais como Imbasciati e Loureiro. Aborda o paradoxo implícito na fruição estética a respeito do poder de captura e libertação da obra de arte.

Palavras-chave: Captura estética, Síndrome de Stendhal, Engrama, Archipenko.


ABSTRACT

This paper explores some aspects of aesthetic capture by analyzing a single case about intense aesthetic fruition evoked by the meeting with an Archipenko’s sculpture. Talks about the art’s reception phenomenon through the narration of a singular experience, trying to understand it from different theoretical perspectives such as Imbasciati and Loureiro. Approaches the implicit paradox in the aesthetic fruition experience organized around the capture/ disengaging axis.

Keywords: Aesthetic capture, Stendhal Syndrome, Engram, Archipenko.


 

 

Archipenko, Woman combing her hair, 19141.
Photo © The Israel Museum/Einat Arif & Yossi Galanti2.

 

A gente só sabe bem aquilo que não entende.
Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas

 

Começo este artigo com uma confissão − fui vítima da Síndrome de Stendhal em 1976. Fui vitimada de forma benigna e leve, mas só vim a descobrir isso muitos anos depois, ao ler o trabalho de Ines Loureiro (2005). Soube que eu não era a única vítima e que fazia parte de um grupo descrito na literatura psicanalítica com o nome de Síndrome de Stendhal. Os sintomas apareceram em fevereiro de 1976. Eu estava em meu primeiro ano da faculdade de História da Arte em Jerusalém e devia fazer uma breve monografia sobre alguma obra de arte − pintura ou escultura. Passeando pelo jardim das esculturas do Museu de Israel em um dia chuvoso de inverno, vi abaixo de mim, na colina inferior, a escultura negra de uma mulher. Pareceu-me uma grande obra, uma mulher gigante, imponente. Desci as escadarias para vê-la de perto. Ao me aproximar, surpreendi-me com seu tamanho − era muito menor do que me pareceu ao longe. De 1,30 metro de altura, aquela mulher parecia muito grande. Olhei intrigada para aquela estranha figura feminina.

O primeiro impacto foi com a superfície de bronze. Bela, negra, rígida e macia ao mesmo tempo. Mulher penteando os cabelos, de Alexander Archipenko3, é uma figura em pé, com a perna direita levemente inclinada sobre a esquerda, o torso contorcionado para a esquerda, criando uma sinuosidade atraente. As pernas cujos contornos são arredondados exibem talhos convexos nas coxas, que se opõem às concavidades na parte anterior da estátua. Os joelhos são marcados por cortes geométricos, que transformam a parte inferior das pernas em pirâmides invertidas. Um jogo de negativo e positivo faz-se nítido ao contornarmos a obra. Contorná-la é imperativo, pois toda a sua estrutura convida e incita a que nos desloquemos em busca da parte posterior. O rosto é um recorte gracioso no bronze negro, apenas um contorno de face inclinada para a esquerda, com cabelos estriados caindo ao longo do ombro direito, um braço acompanhando o movimento do rosto e o outro caído ao longo do corpo, amputado à altura da cintura. O volumoso seio esquerdo é acentuado pela concavidade que marca o seio direito.

Fui atraída por esta obra, rodeei-a, aproximei-me, afastei-me, sentia que estava quase conversando com aquela estranha mulher, parada em um jardim de esculturas a pentear os cabelos, imóvel e ao mesmo tempo em movimento eterno. Não sendo monumental, era, no entanto, uma escultura sobre a mulher, qualquer mulher, todas as mulheres. Há pouco havia emigrado para aquele país e aquela foi uma primeira experiência de reconhecimento. O desconhecimento do idioma local, dos usos e costumes, dos papéis esperados, tudo isso parece ter-se dissolvido naquele momento. Havia encontrado uma referência, uma escultura perdida naquele jardim, que parecia estar à minha espera.

Eu era muito jovem e fiquei bem impactada por esta obra. Creio ter ficado bastante tempo parada, sob um leve chuvisco, olhando através da lacuna do rosto, querendo tocar a superfície de bronze, as mãos úmidas de um suor frio, comovida, enfim, por aquela escultura. Havia encontrado a obra sobre a qual faria a minha monografia, mas sabia que ela representava muito mais do que um tema para reflexão.

As convexidades das pernas, o movimento barroco do torso e o vazio da face insinuavam a imagem do feminino que provavelmente minha juventude buscava. A insinuação de Archipenko, sua maneira ao mesmo tempo categórica e sutil de buscar o essencial e apresentá-lo brutamente são parte relevante do estilo deste artista. Curvas suaves marcam o corpo feminino. Angulações estridentes conjugadas às formas arredondadas nas pernas e no braço elevado assinalam movimentos entrecortados, geometrismos e recortes parecem servir de recurso dramático para acentuar ao mesmo tempo o movimento de pentear os cabelos e a imobilidade do meio de expressão escultórico. Para romper com esses limites, Archipenko desenha o rosto da mulher, insinua seu contorno e remete o observador à condição de criador.

Quem admira esta escultura cria para si a face inexistente, ou não cria, apenas aceita o vazio. O artista nos obriga a contornar a figura através da sinuosidade dos movimentos dos membros. A falta representada pela ausência da face, pelo côncavo do seio e pelo braço amputado impele o observador a completar a figura. Diante desta obra não se permanece impassível, seu movimento leva o admirador a movimentar-se. O corpo sai do imobilismo, o observador rodeia a estátua. A mente trabalha para completar a figura insinuante. É neste hiato, neste silêncio pleno de significados individuais que se dá o diálogo criativo. A lacuna pode ser ou não preenchida, mas em si significa o absoluto, aquilo que, por não estar, justamente pela ausência, representa o essencial da face feminina, seu suave contorno, a graciosa inclinação e o cabelo longo sendo penteado.

O gerúndio é o tempo de Archipenko. Muitas de suas obras retratam um movimento incompleto, aludem ao tempo, ao deslocamento. Assim como as pesquisas de Malevitch e outros construtivistas russos seus contemporâneos, Archipenko é artista do movimento. Movimento do observador. Alinhado nesse momento ao movimento cubista liderado por Picasso, a escultura de Archipenko insere-se na busca pelo geometrismo analítico. Krauss, escrevendo sobre Picasso, disse que o artista

rodeia os objetos, considera-os poeticamente sob todos os ângulos, entrega-se a suas sucessivas impressões e as traduz, em suma, exibe-os em sua totalidade e em sua permanência emocional com a mesma liberdade com que os impressionistas reproduziam uma única face e um único momento. (2001, p. 59)

A mesma busca pelo conhecimento da forma, com o olhar penetrante e cortante, faz-se presente nesta obra. Entretanto, as esculturas de Picasso, seus alto-relevos característicos da época, são tão estáticas quanto o suporte no qual estão fixadas. Suas naturezas-mortas não oferecem um signo de unidade por cujo intermédio seria possível apreender a natureza essencial do objeto.

Assim, o observador estacionário do relevo de Picasso não é libertado da frontalidade do objeto e impelido a rodear os lados dele. Não há nenhuma forma singular alojada no núcleo dessas construções que o observador possa ler como a ideia geratriz em ação por trás da desordem dos fatos perceptivos agrupados dela. (Krauss, 2001, p. 60)

O trabalho de Archipenko, entretanto, traz essa busca da forma essencial; por trás desta escultura há uma espiral implícita, um movimento ascendente quebrado pela inclinação do rosto que devolve o movimento para o sentido contrário. Há uma busca do essencial no próprio movimento de mulher penteando os cabelos e a inserção da obra em seu entorno, pontificada pelo vazio recortado do rosto feminino.

Esta obra é datada de 1914 e possui cópias de diferentes dimensões, produzidas em 1915, uma delas exposta no Metropolitan Art Museum de Nova York. Trata-se da primeira obra de uma série de figuras em pé produzidas pelo artista, entre elas as famosas Standing Figure, de 1915, Statuette, de 1915, e Egyptian Motif, de 1917. Todas essas esculturas baseiam-se nas invenções formais inspiradas na sintaxe cubista. Entretanto, Archipenko rejeita a extrema solidez e a continuidade da forma, substituindo-as por lacunas e vazios, revertendo concavidades e convexidades, privilegiando a lógica geométrica sem perder de vista a referência orgânica e anatômica. O exagero dos volumes corporais e os vazios de Archipenko permitem que o olhar possa atravessar a massa escultórica, produzindo uma nova forma de representação das figuras esculpidas.

As proporções dessas estátuas femininas são clássicas, mas a solidez do corpo de bronze é atenuada pelas lacunas penetrantes, pelos seios articulados, pela alternância de volumes positivos e negativos. Algumas obras do artista dessa mesma época, por exemplo a Mulher-Vaso, representam plasticamente a ambiguidade artística de Archipenko.

Suas figuras não são nem abstratas nem figurativas, elas representam a vontade deste magnífico artista que não quis escolher entre estas duas condições estéticas. Ele transita, de fato, entre as duas sem a menor hesitação, sabendo que aquilo que ele obtém de um registro enriquece o outro. (Lemaire, 1997, p. 15)

Goll, no livro Alexander Archipenko, lembra que em 1914 o jovem artista escrevera, em um artigo publicado em alemão na revista Der Sturm, que buscava a escultura pura, a escultura interior. Esta escultura pura busca a essência e o essencial.

O essencial no caso desta escultura da qual falamos é o gesto universal feminino de pentear femininamente os cabelos. Penso em gestos universais do feminino. Mulher penteando os cabelos remete a um tema recorrente na história da arte contemporânea e moderna.

Degas, artista que capturou através de sua obra os gestos femininos, tem uma série de desenhos, esboços e óleos sobre esse tema. Essa cena faz parte da série sobre a toilette feminina, composta de obras cujos temas são mulheres banhando-se, enxugando-se e penteando os cabelos. Archipenko não pretende capturar apenas um momento da intimidade feminina, mas sintetizar, encontrar o essencial nesse movimento. Parece-me que esse gesto cotidiano feminino de algum modo condensa o gestual da mulher. Um movimento delicado, elegante, sutil, mas preciso e pragmático.

Tal qual o gesto de uma mulher espetando uma agulha na roupa depois de costurar, uma mulher ajeitando os cabelos em coque com as mãos, passando batom nos lábios, escovando o cabelo de uma menina, cortando legumes, enxugando o suor do rosto ao fogão com a mão e o pano de cozinha − todos esses são gestos reconhecíveis quase que universalmente. Lembro-me de haver ficado comovida ao ver um filme coreano de que não me lembro nem o nome nem qualquer outra cena, no qual a personagem feminina, com quem até aquele momento não havia me identificado em nada, com cuja vida, valores, emoções e gestos não havia encontrado qualquer intersecção comigo, essa mulher, ao interromper a costura, espeta a agulha na roupa. Esse gesto comoveu-me em sua essência: estava ali uma mulher como eu. Nós, mulheres, espetamos a agulha utilizada em nossas roupas, à altura do peito. Aquela mulher tornou-se conhecida a partir do reconhecimento desse gesto. A arte tem esse poder de falar por universais e chegar ao individual.

A captura da qual fui sujeita deu-se nesse território. Era uma escultura de bronze de um artista russo, cubista em sua expressão formal, representativa de uma mulher a escovar seus cabelos. Mas era também uma mulher essencial, com a qual a jovem que fui pôde identifi car-se, procurando imi tar o gesto e ser também esse feminino insinuado. Entre todo o repertório disponível para que uma jovem se torne uma mulher, entre todas as possibilidades inconscientes e conscientes, havia encontrado algo de essencial, de monumental, no pequeno gesto de pentear os cabelos.

A história da arte moderna e contemporânea traz muitas representações de mulheres penteando os cabelos. Esta em particular, por buscar a pureza geométrica, a visão multifacetada cubista, e, ainda assim, conseguir transmitir leveza gestual, torna- a notável. O vazio da face deixa entrever o espaço no qual a escultura está, evoca o mistério − há sempre o mistério da existência do outro, que se deixa ver, mas que é sempre lacunar. É justamente no registro de fronteira que esta obra se encontra. Archipenko circula entre o registro figurativo, representacional, e o registro do abstrato, do não representável. Nesse movimento entre os dois registros o escultor produziu sua vasta obra e o analista equilibra-se no seu cotidiano.

Creio ter descrito com bastante acuidade uma experiência de fruição estética intensa, levando-me a questionar o que seria essa vivência. Guardadas as proporções, lembrei-me da “Síndrome de Stendhal”. Como já registrado, fui apresentada a esse conceito pelo artigo de Ines Loureiro. A autora apresenta o trabalho de Graziella Magherini, psicanalista italiana que analisou pacientes internos em um hospital de Florença cujas crises parecem ter sido disparadas por experiências estéticas limítrofes. A referência a Stendhal deve-se a seu livro Rome, Naples et Florence, de 1826. Neste livro, um relato apaixonado para viajantes, o autor relata experiências de apaixonamento e certo grau de confusão mental. Traduzo aqui livremente pequenos trechos do livro em questão, em edição de 1987. Ao chegar a Florença, impactado por Santa Maria Del Fiori, Stendhal escreve: “Enfim, as lembranças se comprimiam em meu coração, sentia-me sem condições de raciocinar e entregava-me à minha loucura como junto a uma mulher amada” (p. 450); “Saindo de Santa Croce, meu coração batia forte, o que em Berlim se chamaria nervos; a vida esgotara-se em mim, eu andava com medo de cair” (p. 451).

Para um psicanalista, estes são relatos de uma experiência quase psicótica, da qual me reconheci vitimada naquele instante relatado aqui. Para compreender esse tipo de vivência, encontrei abrigo na obra de Loureiro. A autora desenvolve em muitos trabalhos a noção de estética e fruição estética na obra de Freud e na literatura psicanalítica mais contemporânea. O texto “Notas sobre a fruição estética a partir de sua experiência-limite: a Síndrome de Stendhal” (2005), servirá de guia para a reflexão sobre o que seria essa vivência estética experimentada tão intensamente em relação à escultura de Archipenko.

Para introduzir o tema, Loureiro propõe que a obra de arte seja considerada dentro do paradigma do chiste e não do sonho, no qual a forma deixaria de ser um acessório, tornando-se determinante do conteúdo. As

obras então não serão tratadas como simulacros; não se distinguirá entre sua forma e seu conteúdo libidinal; compreenderemos que seu poder de gerar fruição está inteiramente no trabalho formal que as produz (a montante), e nos trabalhos de toda natureza que elas suscitam (a jusante). (Loureiro, 2005, p. 99)

Para dar conta de um fenômeno como o descrito acima, similar aos efeitos da Síndrome de Stendhal, é preciso estender a concepção freudiana de uma teoria da arte em termos de solução de compromisso.

Ao estudar o relato de Stendhal, Loureiro (2005, p. 102) aponta alguns aspectos tradicionalmente associados à experiência de prazer estético:

a) prazer experimentado (quase se poderia dizer padecido) corporalmente − “meu coração batia com força”, “a vida esgotara-se em mim” etc.;
b) afetos intensos e complexos: prazer extremo, mas também certo desprazer que chega às raias do doloroso (menções à loucura e à fraqueza);
c) experiências eróticas e sexuais − “entregava-me à minha loucura como junto de uma mulher a quem se ama”;
d) considerável diminuição da racionalidade − “sentia-me sem condições de raciocinar

Pode-se dizer que experimentei todas essas vivências, embora sem tal intensidade nem talento literário para descrevê-las. O impacto estético, no entanto, foi poderoso, a ponto de marcar indelevelmente minha memória. Ao pensar em escrever este artigo, imediatamente pensei em Archipenko, e pensar nele foi ao mesmo tempo recuperar memórias antigas de mim mesma − não apenas memórias de fatos, mas engramas poderosos, plenos de significados, todos eles envolvendo a identificação feminina de uma jovem atravessada pelo encontro com a feminilidade proposta por uma determinada escultura, em determinado contexto e tempo. Utilizo aqui o conceito de engrama desenvolvido por Imbasciati (2004). Segundo esse autor, o conceito de percepção pressupõe uma representação, ou, em sua teoria do protomental, o chamado engrama, que seria um traço mnêmico, um significante essencial para o reconhecimento de qualquer significado, para qualquer leitura. “Quero precisar que uma leitura não comporta necessariamente uma percepção adequada do real: o significado conferido pela leitura é consoante ao próprio sistema e a seus processos de elaboração interna” (Imbasciati, 2004, p. 190).

Ao lembrar-me de Archipenko, lembrei-me de mim. A lembrança da escultura no jardim emergiu em uma rede de significados associados, não apenas da percepção da obra, como do entorno, das percepções do mundo interno no qual estava imersa naquele momento, diria que até de percepções táteis como do chuvisco daquele dia, do frio que sentia, e da impressão tátil de maciez e rigidez que a obra provocou. A percepção da obra de arte à qual tenho me referido foi produzida por um encontro entre minhas expectativas já enunciadas ao ver ao longe uma grande mulher, ao verificar que não era grande, mas que trazia em si o que a mim, naquele momento, pareciam ser os atributos essenciais do feminino, provavelmente elementos latentes em minha busca adolescente por modelos femininos com os quais me identificar − houve uma percepção já predeterminada daquilo que constituía uma procura pessoal.

Segundo Imbasciati, o processamento das informações sensoriais (físicas, externas) pode acontecer com certa quantidade de sobreposição e de mistura com a elaboração dos processos interiores. Retomando o conceito de Bion de “aprender da experiência”, ou seja, a passagem da sensorialidade para o pensamento, Imbasciati descreve um processo complexo, o processamento de informações, que metaboliza tanto o que é recebido de fora, do ambiente, os chamados inputs polissensoriais, quanto o que é produzido internamente pelo sujeito, uma percepção intermediada pelo sujeito que a processa, gerando o que se chama de experiência afetiva. “O conjunto de processamentos dos dois tipos de informação − integrado de modo variável conforme o indivíduo e o momento − dá lugar a uma ‘experiência’ e ao aprender a partir da experiência” (Imbasciati, 2004, p. 190).

Comparando minha experiência com quadros extremos descritos por Magherini na descrição dos sintomas implicados na Síndrome de Stendhal, pode-se perceber que há pontos de semelhança no intenso encontro entre conflitos identitários latentes e aquele objeto de arte. O encontro depende tanto das características próprias da obra quanto do fluir das emoções íntimas que procuram uma forma, e ao encontrá-la, formata-se. Ideias e emoções, até aquele momento informes e fluidas, parecem ter encontrado um continente adequado, uma estrutura estruturadora, uma possibilidade de significação que a arte proporciona. No caso aqui descrito, houve uma ruptura de paradigmas estruturais referentes à busca da identidade feminina em questão, reações de efêmeras alucinações quanto ao tamanho, consistência, forma e significado da escultura deram-se estrondosamente, mas produziram um efeito de aprendizagem. À diferença dos pacientes internos no hospital de Florença, a ruptura não foi radical, a cura deu-se espontaneamente, mas a natureza da experiência assemelha-se. Não saí daquele museu a mesma menina que nele entrou.

Hoje posso descrever esse momento como de captura − sentime capturada por aquele olhar inexistente, no entanto presente de algum modo misterioso naquela mulher sem rosto. Era como se nós nos olhássemos. Creio que foi justamente essa essência do feminino, do gestual feminino universal de pentear lentamente os cabelos, o agente capturador. Aquela pequena mulher essencial dizia algo a meu respeito também.

Segundo Pareyson, verifico que atravessei os dois momentos de apreensão estética. Um primeiro momento é de apreensão imediata, direta, bruta. O segundo momento “é o momento da congenialidade, que significa pessoalidade, isto é, similaridade de pessoas que conseguem assemelhar-se sem nada sacrificarem da própria independência” (Pareyson, 2001, p. 104). Após ser capturada pela obra, tentei capturá-la, fotografando-a, estudando- a, mergulhando nos dados biográficos do artista, aprendendo sobre o contexto artístico e cultural no qual ele esteve imerso.

Reconheci-me ao ler o livro de Ada Morgenstern, Perseu, Medusa e Camille Claudel. Nessa obra, Ada estuda a experiência descrita como captura estética apontando para esses dois momentos. Dialogando com Green, afirma:

podemos vislumbrar a densidade e a complexidade que formam a experiência de captura. Momento estético − um momento de síntese, de fusão, um tempo da emoção, seguido, por sua vez, por um tempo de reflexão, um tempo de análise. São tempos de naturezas distintas, ainda que ligados por um mesmo fio − se consideramos a análise como um desdobramento do momento de apreensão. (Morgenstern, 2009, p. 39)

O mistério, entretanto, permanece. O que provocou tal captura, justamente daquela obra, naquele indivíduo, naquele contexto?

Esta não é uma escultura que apela à emoção diretamente, nem por seu tema nem por sua técnica. Ao contrário do trabalho de Rodin, Claudel e outros, não é emoção que brota da matéria bruta. Esta obra é cerebral, alusiva, interessante ao intelecto, e ao mesmo tempo tem um apelo estético cativante. Depois de nosso primeiro encontro, procurei saber mais de seu autor, o que só acrescentou interesse. Esse artista quase desconhecido hoje em dia foi muito famoso e influente na Paris dos anos 1920, participando ativamente dos movimentos artísticos da época, como o cubismo e o futurismo. Creio que a liberdade e a autonomia do artista expressam-se também em sua obra. Embora fazendo parte de movimentos fundamentais para a constituição da arte moderna e contemporânea, Archipenko sempre preferiu a liberdade criativa à apropriação aos cânones de qualquer grupo, permanecendo durante toda a sua longa vida à margem do prestígio e da fama que seus colegas alcançaram.

O que seria esta captura da qual fui “vítima”?

Uma experiência instantânea, um momento-síntese, como um insight às avessas, dado que nesse instante da captura nós somos − ainda que temporariamente − interditados no ato de pensar ... Pois não resta dúvida de que se trava uma espécie de diálogo − um diálogo de encantamento, de fascinação e, por que não?, às vezes de petrificação − entre o espectador e a obra de arte. (Morgenstern, 2009, p. 32)

Essa captura, inicialmente petrificadora, de algum modo sofre uma inversão, e ao final do percurso, se é que existe final, a obra foi capturada pelo espectador. Haveria, portanto, dois momentos nesse processo de captura aqui descrito − um tempo da desconstrução seguido de uma reconstrução, que, nesse caso, não levou ao mesmo lugar onde estava antes da captura, mas a outra compreensão de mim mesma e do lugar que ocupava e poderia vir a ocupar naquele momento e espaço. Birman, ao analisar o fenômeno da leitura, traz uma descrição útil para a reflexão aqui iniciada:

esse efeito de surpresa tem o poder de estabelecer uma ruptura na sequência e na continuidade da leitura. Com isso, o leitor entra num estado de suspensão, pois se estabelece um corte na continuidade do tempo. Ele é conduzido para uma posição de fantasmar e de refletir sobre o que aconteceu, para poder retomar a leitura logo em seguida. Nesta retomada, a continuidade temporal se restabelece e o eu do leitor se recompõe novamente. (Birman, 1996, p. 57)

No caso aqui relatado, a origem dessa captura não está na obra, não está na intenção inconsciente do artista, nem na beleza ou técnica apurada, não está no espectador. Creio que nos situamos no caminho entre, naquele instante fronteiriço durante o qual o observador comunica-se com a obra e a obra comunica-se com o espectador. Não é qualquer obra “que tem a capacidade de fazer submergir um espectador nessa experiência, assim como não é qualquer espectador que ‘realiza’ a potência de uma obra” (Morgenstern, 2009, p. 43). Cito o próprio Stendhal quando afirma em seu romance autobiográfico de 1890, A vida de Henry Brulard, que “um romance é como um arco de violino, a caixa que produz os sons é a alma do leitor”, assim como a obra de arte ressoa quando toca “a alma” do fruidor.

Concluo este texto deixando muitas interrogações. Ainda há muito a ser estudado sobre a natureza da fruição estética, os elementos associados à captura e ao poder de transformação e de libertação que o encontro com a obra de arte pode provocar. O relato da experiência individual de captura pela obra e de posterior captura da obra, através de um processo de reflexão e análise, procura ilustrar um fenômeno que fala sobre o poder transformador ocorrido na relação intensa e íntima entre observador e obra de arte. A relação paradoxal de captura e libertação envolvidas na fruição estética ainda merece novos estudos. Embora sem concluir, espero ter apontado alguns aspectos envolvidos neste processo, deixando muitos outros em aberto. Termino com a citação inicial de Guimarães Rosa: A gente só sabe bem aquilo que não entende.

 

Referências

Birman, J. (1996). Por uma estilística da existência: sobre a psicanálise, a modernidade e a arte. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Goll, I. (Org.). (1997). Alexander Archipenko. Paris: Maeght É         [ Links ]diteur.

Imbasciati, A. (2004). Um suporte teórico para a transgeracionalidade: a teoria do protomental. Revista Brasileira de Psicanálise, 38(1), 181-201.         [ Links ]

Krauss, R. E. (2001). Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Lemaire, G. (1997). À la découverte d’Archipenko. Alexander Archipenko (pp. 9-15). Paris: Gallimard.

Loureiro, I. (2005). Notas sobre a fruição estética a partir de sua experiência-limite: a Síndrome de Stendhal. Psychê, 9(16), 97-114.         [ Links ]

Magherini, G. (1989). La síndrome di Stendhal. Firenze: Ponte alle Grazie.         [ Links ]

Morgenstern, A. (2009). Perseu, Medusa e Camille Claudel. São Paulo: Ateliê Ed.         [ Links ]

Pareyson L. (2001). Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Stendhal (Marie-Henri Beyle). (1987). Rome, Naples et Florence. Paris: Gallimard.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Maíra Firer Tanis
E-mail: mtanis@uol.com.br

Recebido: 10/08/2010
Aceito: 20/08/2010

 

 

* Psicanalista.
1 Alexander Archipenko (Ucrânia, 1887− Nova York 1964). Woman combing her hair, 1914, bronze, 178 x 40 cm. The Billy Rose Collection. Collection The Israel Museum, Jerusalem.
2 Agradecemos ao Museu de Israel a autorização para publicação dessa imagem.
3 Alexander Archipenko nasceu na Ucrânia em 1887. Mudou-se para Paris em 1908, associando-se aos artistas cubistas. Participa em 1910 e 1911 do Salon des Indépendants. Em 1921 expõe no MoMA, em Nova York, mudando-se para lá em 1923, onde continua a desenvolver seu trabalho como escultor, pintor e professor.

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