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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.51 São Paulo dez. 2010

 

EM PAUTA - PSICANÁLISE E ESCULTURA - PER VIA DI LEVARE

 

Reescrevendo o imbricamento da via di porre e da via di levare no trabalho do analista que enfrenta a fúria dos superegos1

 

Interwoven with the via di porre and the via di levare the work of the analyst who faces the wrath of superegos

 

 

Leda Beolchi Spessoto*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora propõe uma contenção mais ativa de movimentos violentos e repetitivos como os da melancolia na tentativa de deter este funcionamento e buscar oportunidades para outros modelos mentais se apresentarem. Através de material clínico, sugere um imbricamento técnico da via di porre e da via di levare nestas situações.

Palavras-chave: Compulsão à repetição, Contenção, Melancolia, Superego, Via di porre, Via di levare.


ABSTRACT

The author proposes a more active restraint of violent and repetitive movements as in the melancholia in trying to stop this operation and seek opportunities for other mental models to be presented. Through clinical material, suggests an overlapping technical per via di porre and per via di levare in these situations.

Keywords: Compulsion to repetition, Restraint, Melancholia, Superego, Via di levare, Via di porre.


 

 

Introdução

Há um século, Freud nos brindou com reflexões sobre a forma de trabalhar do psicanalista e em seu texto sobre psicoterapia (1904/1969b) cita Leonardo da Vinci para ilustrar seu ponto de vista:

A pintura, afirma Leonardo, opera per via di porre, pois ela aplica uma substância – partículas de cor – onde nada existia antes, na tela incolor, a escultura, contudo, processa-se per via di levare, visto que retira do bloco de pedra tudo o que oculta a superfície da estátua nela contida. (p. 270)

Naquele momento Freud aponta uma dicotomia entre métodos sugestivos e o método psicanalítico, identificando a sugestão com a via di porre, pois esta “não se interessa pela origem, força e significado dos sintomas mórbidos, mas, ao revés, superpõe algo – uma sugestão – na expectativa de que será bastante vigorosa para impedir que a ideia patogênica venha a expressar-se” (p. 271). Em outro polo situa o método psicanalítico que “não procura acrescentar nem introduzir nada de novo, mas a retirar algo, a fazer aflorar alguma coisa, sendo que para este fim se preocupa com a gênese dos sintomas mórbidos e o contexto psíquico da ideia patogênica que procura remover” (p. 271).

Esta proposta de modelo de trabalho é a que se coaduna com a forma de pensar o aparelho psíquico até então esboçado em suas teorias e “o tratamento psicanalítico pode, em geral, ser concebido como tal reeducação no superar resistências internas” (p. 277). Há uma ideia de fazer revelar material reprimido do inconsciente para o consciente, “o que deve ter o resultado de corrigir-lhe o desvio da normalidade e de desfazer a compulsão à qual sua mente está sujeita” (p. 276).

Nesse texto, Freud também se dedica a comentar as condições em que o método psicanalítico é indicado. Entre outros cuidados, diz:

Deve-se limitar a escolha dos pacientes àqueles dotados de um estado mental normal, visto que no método psicanalítico isto é empregado como ponto de apoio do qual obter controle das manifestações mórbidas. Psicoses, estados de confusão e depressão profundamente arraigados (poderia dizer tóxicos) não se prestam, portanto, à psicanálise, pelo menos não para o método como vem sendo praticado até o presente. Não considero de modo algum impossível que mediante modificações adequadas do método possamos ser bem-sucedidos em superar esta contraindicação – e assim podermos iniciar uma psicoterapia das psicoses. (p. 274)

Sabemos o quanto se ampliou o conhecimento psicanalítico nesse século que nos separa deste texto de Freud, o quanto ele próprio ingressou no estudo das psicoses e o quanto nossa clínica passou a incluir casos diversos e graves, diminuindo nossa crença no “estado mental normal” dos pacientes e no ponto de apoio que aí poderíamos encontrar para o andamento do trabalho. Aliás, também cabe indagar qual é o trabalho objetivado diante dessa clínica mais ampla. Se pensarmos que nos deparamos com condições mentais que estão aquém da uma estrutura reprimida a ser revelada, então possivelmente a via di porre pode ser necessária para construir algo. Se o analista não espera revelar o que já estaria pronto, na pedra, na sua mente ou na do paciente, o ato de esculpir, ou via di levare, precisa ser postergado, aguardando desenvolvimentos que permitam pensar na análise de desejos inconscientes, no uso da associação livre, dos sonhos e do Édipo. Muitos autores têm desenvolvido suas teorias e observações neste sentido. Bittencourt (2010) faz um interessante apanhado destas modificações ocorridas na técnica sob o vértice de Green (2006), Ogden (2006), Roussillon (1995) e Winnicott (1954/2000).

Gostaria agora de repensar a via di porre, inicialmente identificada com um trabalho de sugestão para o paciente. Em textos anteriores (Spessoto, 2010a, 2010b) já discuti a utilização pelo analista de material por ele sonhado na sessão e de novas construções em análise como ferramentas importantes para auxílio em situações de precariedade mental, ajudando a construir o pensamento. De certa forma é um uso da via di porre de forma diferente da ideia da sugestão. Continua presente o interesse pela gênese dos sintomas mórbidos e pelo seu contexto psíquico, assim como pelas ideias produzidas pelo par durante o trabalho analítico. Abordei colocações do analista em que este oferecia produções da sua mente buscando algum sentido para a experiên cia que surgia junto ao paciente, principalmente quando este se mostrava incapaz de exprimir com alguma elaboração mental as emoções presentes na sessão e dar representação simbólica a elas.

Nestes textos introduzo uma proposta de maior gama de ofertas ao paciente, mantendo a ideia de busca de ampliação e/ou instalação algumas vezes da sua capacidade de pensar: refiro-me a colocações ativas de limites em situações de risco e/ou de ações excitadas, repetitivas e violentas que se apresentam também sob a roupagem de fala organizada. Ainda que isto a princípio pareça contrariar o modelo de associação livre, questiono se estamos diante de associações livres ou de ações e descargas através da própria linguagem que nos afastam da possibilidade de instalar ou expandir pensamento, aprisionando não só o paciente como também o analista se este círculo vicioso não for rompido.

 

Reverberações

Como é que o superego se manifesta essencialmente como sentimento de culpa (ou melhor, como crítica – pois o sentimento de culpa é a percepção no ego que responde a essa crítica) e, além disso, desenvolve tão extraordinária rigidez e severidade para com o ego? ... Na melancolia o superego excessivamente forte que conseguiu um ponto de apoio na consciên cia dirige sua ira contra o ego com violência impiedosa, como se tivesse se apossado de todo o sadismo disponível na pessoa em apreço ... o que está influenciando agora o superego é, por assim dizer, uma cultura pura do instinto de morte ... (Freud, 1923/1969a, pp. 69-70)

Pacientes com características melancólicas consomem grande parte do tempo com lamentações e autodenegrimento. O seu pensamento gira em torno de críticas e lamentos por perdas de oportunidades. A insatisfação é sempre uma constante e seu foco o que não atingiram, não realizaram, o que os decepcionou em suas trajetórias.

A luta com o obstáculo de um sentimento inconsciente de culpa não é fácil para o analista. Nada pode ser feito contra ele diretamente e também nada indiretamente, exceto o lento processo de descobrir suas raízes reprimidas inconscientes e, assim, gradativamente transformá-lo num sentimento consciente de culpa ... o resultado de nossos esforços de modo algum é certo. Ele depende principalmente da intensidade do sentimento de culpa; muitas vezes não existe uma força contrária com intensidade de ordem semelhante que o tratamento lhe possa opor. Talvez ele possa depender também de a personalidade do analista permitir ao paciente colocá-lo no lugar de seu ideal do ego e isto envolve, para o analista, a tentação de desempenhar o papel de profeta, salvador e redentor do paciente. Visto que as regras de análise são diametralmente opostas a que o médico faça uso de sua personalidade de tal maneira, deve-se honestamente confessar que temos aqui uma limitação à eficácia da análise; afinal de contas, esta não se dispõe a tornar impossíveis as reações patológicas, mas a dar ao ego liberdade para decidir por um meio ou por outro. (Freud, 1923/1969a, pp. 66-67)

Durante muito tempo examinei de várias formas o que se passava nas sessões de pacientes com este perfil, sem, contudo, notar mudanças perceptíveis do modus operandi da dupla. Como analista também me sentia, tal qual os pacientes, aprisionada em um pântano.

Eu tinha a impressão de que a predominância das críticas encobria uma ausência de cuidados e de sentido para com pequenos gestos amorosos, o que mantinha à distância possibilidades construtivas e aglutinadoras de novas experiências.

A principal ferramenta de trabalho de um analista é a sua personalidade. (Franco, 2008)1

Aos poucos passei a considerar a busca incessante por um couch como a demonstração de certa percepção da ausência de uma função de cuidados destes pacientes. Pensei que se pudesse desenvolver esta função junto a eles talvez saíssemos do atoleiro melancólico, ainda que visitássemos, vez ou outra, desertos desvitalizados. A ideia era lhes oferecer um modelo alternativo identificatório para cuidar de outro modo das próprias vidas. Depois deste modelo registrado, então poderíamos pensar que haveria liberdade de escolha, pois o que se apresentava até então era um modelo único de muita violência. Tornou-se muito importante para mim valorizar cada intervenção em sua forma além do conteúdo.

Bion nos traz um exemplo de intervenção concreta do analista que pode levar em conta sua necessidade de tentar conter impulsos destrutivos do paciente se quiser salvaguardar condições para sobrevivência e possível análise.

Pode ser muito importante como você arranja a mobília em seu consultório. Por exemplo: esta questão da janela. Eu gosto de estar em uma posição em que eu possa ficar rapidamente entre o paciente e a janela, no caso de ter a sorte de um paciente querer se lançar por ela. (Bion, 1978, tradução livre da autora)

 

“Uma flor nasceu na rua!”

Gradativamente reconhecia nas sessões algumas aberturas para novas formas de interações e a introdução de outros temas, ainda que sem plena continuidade. Deparei-me, então, com uma poe sia de Drummond que exprime com beleza e estética semelhante a que vivia nesses momentos.

Uma flor nasceu na rua! Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. Uma flor ainda desbotada Ilude a polícia, rompe o asfalto. Façam completo silêncio, paralisem os negócios, Garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe. Suas pétalas não se abrem. Seu nome não está nos livros. É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco da tarde E lentamente passo a mão nessa forma insegura. Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se. Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico. É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

(Andrade, 2007, p. 28)

Procurei considerar os fragmentos que surgiam como nuvens esparsas que pudesse considerar com o exercício da imaginação e compor hipotéticas histórias e enredos que as unissem. Em um conjunto integrado eu as apresentava para exame do paciente, incluindo sua participação na busca de algum sentido para o que dizia. Muitas vezes me surpreendi com relatos que pareciam ilustrar minhas apreensões. Minha função era criar junto aos pacientes a condição de apreciar o significado de suas experiências para que eles as integrassem em uma rede com interligações afetivas.

O discurso do paciente (fronteiriço) é um colar de pérolas sem fio, cabendo ao psicanalista, por meio de seu próprio trabalho psíquico, juntá-las. (Green, 1988, p. 85)

Penso que em pacientes com falhas de continência primária devido à relação inicial com mães com dificuldades de rêverie, e consequentemente deficiên cia de constituição de um “aparelho para pensar pensamentos”, a incapacidade para enfrentar a realidade os leva a defender-se de seu contato por terror de enlouquecer. (Haudenschild, 2010, p. 2)

Sonhos foram então surgindo e os considerei muito significativos por seus conteúdos e pela possibilidade de tecê-los durante as sessões. Inaugurava-se na análise alguma representação originária do paciente que podia nos remeter a seus sentimentos e pensamentos em articulação e expansão. Seus sonhos permitiam avançar lentamente para maior percepção e integração que começavam a se vislumbrar de seus afetos.

 

Comentários finais

Através de situações clínicas desenvolvi minha ideia de que uma contenção mais ativa de movimentos violentos repetitivos como da melancolia, se encontrar mínimas condições de resposta do paciente, pode abrir possibilidades para apresentação de outro modelo de funcionamento mental, ainda que precário e mais fragmentado. A revelação dessas condições é passo fundamental para a tentativa de lidar com elas. A via di porre é aqui reconsiderada em sua função e mostra-se necessária, pois o analista coloca limites, suas apreensões, capacidade para sonhar, integrar experiências emocionais e narrá-las à disposição do paciente enquanto ele não dispõe desses recursos.

Uma técnica em que o analista tem que emprestar recursos que o paciente ainda não tem (Haudenschild, 1993, 1997), para que ele possa se escutar, e assim ir adquirindo autocontinência para terrores ainda não tornados “experiência emocional”, pois ainda não vividos em parceria com alguém capaz de os acolher. (Haudenschild, 2010, p. 2)

A via di levare revela modos de funcionamento mental de diversas ordens, nem sempre organizados pela repressão, mas muitas vezes fragmentados, com ou sem núcleos de atração gravitacional, o que faz com que o trabalho vá além de uma revelação e se estenda por uma construção, imbricando assim as duas vias.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Leda Beolchi Spessoto
Rua Dr. Cardoso de Melo, 1470/411
04845-005 – São Paulo – SP.
tel.: 3849-3630
E-mail: ledabspe@hotmail.com

Recebido: 10/09/2009
Aceito: 20/09/2009

 

 

* Psicanalista, membro efetivo da SBPSP.
1 Palestra proferida em 25 de fevereiro de 2008, em que retoma a mesma ideia apresentada por Virgínia Leone Bicudo em aula inaugural no mesmo Instituto em 1974.

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