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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.51 São Paulo dez. 2010

 

EM PAUTA - PSICANÁLISE E ESCULTURA - PER VIA DI LEVARE

 

Fusão e dissociação corporal para os Lobi de Burkina Faso

 

Corporal fusion and dissociation among the Lobi of Burkina Faso

 

 

Rogério Cezar de Cerqueira Leite*, I, II; Helena Cerqueira Leite Pimentel**

I Universidade Estadual de Campinas
II Folha de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Os Lobi, uma etnia de Burkina Faso caracterizada por uma estrutura social estável e bem desenvolvida, tem como principal manifestação religiosa e estética a criação de uma estatuária extremamente expressiva, pois incorporaria os espíritos dos seus ancestrais e a própria memória histórica de seu povo. A rara estátua dupla analisada recorre a uma forma de expressão comum a muitas culturas do passado, a fusão de diferentes personagens, mas aqui alcança níveis de intensidade na expressão e na tensão psíquica raramente observados nas artes de culturas primordiais.

Palavras-chave: Arte africana, Lobi, Fusão corporal.


ABSTRACT

The Lobi, an etnie of Burkina Faso characterized by a stable and well developed social structure has as its main religious and esthetic manifestation the creation an extremely expressive statuary once that it incorporates the spirits of their ancestrals and the historical memory of their own people. A rare double statue, analyzed here, resorts to a form of expression common to many past cultures, the fusion of different personages, but which, however, reaches here levels of intensity in expressivity and psiquic tension rarely observed in the arts of primordial cultures.

Keywords: African art, Lobi, Body fusion.


 

 

O princípio que é proposto, neste artigo, para distinguir as noções de fusão e de dissociação em um objeto de arte é inspirado em conceitos da biologia. Na dissociação os dois ou mais indivíduos que se discernem são idênticos ou muito parecidos. Se, ao contrário, os dois ou mais seres que emergem são significativamente distintos, nos deparamos mais provavelmente com uma fusão do que com uma dissociação.

Representações de fusão e dissociação de seres, tanto míticos quanto naturais, constituem um meio universal de expressão, observado em quase todas as culturas que nos tenham deixado um legado significativo e extenso. Antropozoomorfismo é possivelmente a mais generalizada forma de fusão. Desde os míticos centauros, faunos, minotauros etc. greco-romanos até o deus degolador Mochica, Ai Apaec, do Peru (Fig. 1), cuja face é uma composição de traços humanos com os do jaguar, desde a fusão indiana do todo poderoso Shiva dançante com sua bem-amada e leal esposa Parvati (Fig. 2) até o explícito antropozoomorfismo de míticos pássaros, felinos, serpentes e humanos, abundantes na cultura Nasca (Fig. 3).

 

 

 

 

Exemplos de dissociação não são tão comuns quanto os de fusão. O mais antigo exemplo encontrado na literatura é possivelmente aquele da Vênus bicéfala de Valdívia (Fig. 4), uma cultura que se desenvolveu no sul do Equador entre 3500 e 1500 a.C. Demonstração mais decisiva de dissociação é observada na sequência de progressivo distanciamento entre as duas cabeças e os torsos emergindo de uma única figura humana em pequenas esculturas em cerâmica de Tlatilco (Fig. 5) (de 1000 a 300 a.C., México).

 

 

 

Todavia, nenhum desses exemplos projeta luz sobre esta intrigante estátua de homem e mulher fundidos proveniente dessa enormemente rica tradição cultural, os Lobi, de Burkina Faso, mostrada na Figura 6. Este deve ser um objeto extremamente importante. Atestam sua altura avantajada (1,50 metro) em comparação com outras esculturas Lobi, sua pátina rugosa que revela o uso de líquidos sacrificais (libações), as faces severas e de belos traços, as naturalísticas e bem-proporcionadas dimensões de todas as partes dos corpos e o bem cuidado e artístico esforço dispensado. Tudo contribui para a convicção de um papel incomum em atividades sociais e rituais dessa rara estátua dupla Lobi.

 

 

Ambos os indivíduos, masculino e feminino, mostram certa tristeza e compunção (arrependimento?) com a inclinação tanto das cabeças quanto dos torsos. As expressões severas das duas fisionomias indicam, não obstante, nada senão resignação. A oposição das duas pernas, uma ligada ao personagem masculino e outra ao feminino, em movimento, indicam que os dois atores partem em direções opostas, embora a separação seja obstaculizada pela base comum do corpo.

Não se deve esquecer que esculturas (os Lobi não produzem máscaras), para este povo altamente religioso, incorporam a eterna presença dos espíritos de ancestrais. Em suas moradias há cômodos especiais para abrigá-las. Por vezes um ancestral específico parece ser indicado na escultura por certos traços ou gestos. Este cômodo especial, o Thilkuur, ocupa o centro da moradia e, de acordo com descrições de Bognolo (2007), é um espaço altamente reverenciado em que estas estátuas representando ancestrais são depositadas permanentemente. Esculturas de seres míticos também podem compartilhar este espaço privilegiado. Portanto, a intenção dos autores e/ou dos proprietários desta estátua foi a de reter a memória de episódio específico ou certa disposição. Todavia, não há arte quando a representação de um acontecimento ou objeto não inclui algum comentário universal. Podemos, portanto, concluir que algo importante que merece ser lembrado está inscrito na estátua dupla, de maneira que os descendentes e outros membros do clã dela pudessem aprender.

Devemos, por outro lado, reconhecer que a organização social e política dos Lobi é bem desenvolvida, estável e justa. O fato de que esta é uma sociedade matrilinear dá à mulher uma posição de relativo respeito. Ambos os papéis, masculino e feminino, são valorizados, bem definidos e têm naturezas complementares. Embora na maioria das representações de casais pelos artistas Lobi a figura masculina tenha uma estatura ligeiramente maior, em poucas se observa o contrário. Na estátua dupla aqui descrita homem e mulher têm quase a mesma altura.

Do ponto de vista da psicanálise esta é uma peça fascinante, na qual o artista foi capaz de exprimir na ricamente condensada figura vários elementos do processo de separação que são essenciais para o crescimento emocional. Podemos discernir representada a perda da fusão corporal, uma fantasia primitiva, característica da relação primeva bebê-mãe, ao lado da perda da bissexualidade infantil (e consequente desenvolvimento da identidade sexual) maravilhosamente expressa no distanciamento entre o macho e a fêmea, juntamente com a representação de uma separação dolorosa entre marido e esposa em uma relação madura.

Ao contemplar esta escultura, percebemos o profundo pesar que acompanha o movimento de afastamento e progressiva diferenciação das duas figuras representadas. Melanie Klein (1940) descreve o processo de desenvolvimento psíquico na posição depressiva, em que a maior capacidade de integrar as experiências boas e más permite a formação de uma imagem mais inteira de si mesmo e também do objeto (objetos totais). Isto, se por um lado permite maior diferenciação de si em relação ao objeto, por outro gera intensa angústia pela crescente percepção de que aquele objeto a quem foi dirigido tanta hostilidade, e que fora percebido como cruel nos momentos de frustração, é o mesmo objeto que é bondoso e profundamente amado nas experiências de gratificação. Esta nova percepção gera sentimentos dolorosos de culpa e angústia pela fantasia de que ataques dirigidos ao objeto agora amado e odiado, tenham-no destruído irreparavelmente, o que gera intensos sentimentos de perda. Quando a dor da perda e o sentimento de culpa não podem ser tolerados, pode ocorrer uma paralisação ou mesmo um retrocesso no desenvolvimento da imagem mais integrada de si e do objeto, assim como da diferenciação em relação ao objeto.

Quando a dor e a culpa podem ser toleradas, a capacidade de se separar do objeto preservando o apreço e os sentimentos amorosos pode ser alcançada através de um processo doloroso similar ao luto. O desejo de reparar o objeto bom danificado pode então se expressar de forma criativa. Na cultura dos Lobi, assim como em muitas outras, a produção de imagens através da escultura e a existência de rituais elaborados para cuidar dos ancestrais com amor e dedicação revelam o desejo de reparar o objeto amado e de preservá-lo, o que permite que o desenvolvimento psíquico e social prossiga.

Nesta excepcional escultura Lobi, tristeza, culpa e arrependimento impõem uma sensação de sempiterna e inexorável perda, a perda de algo essencial, espiritual e materialmente. E embora este tipo de “ocidentalização” seja sempre perigosa, podemos interpretar esta escultura Lobi como uma representação da condição humana. Os homens são condenados à liberdade mas não a toleram, procurando, consequentemente, de maneira obsessiva, limites, cadeias, ligações que, não obstante, se voltam contra ele próprio, oprimindo-o. Escapar dessas cadeias é impossível sem o doloroso sentimento de deixar para trás parte de nós mesmos. E isto é uma condição universal, seja no casamento, seja na vida monástica, ou no simples convívio social (amizade), somos todos simultaneamente ávidos de liberdade e prisioneiros conformistas sentimentais. E é a este conflito primordial, tão bem expresso nesta dupla estátua Lobi, inconscientemente por certo, que chamamos de “Condição Humana”.

 

Referências

Bognolo, D. (2007). Visions of África: Lobi. Milan: 5 Continents.         [ Links ]

Klein, M. (1940). Mourning and its relations to manic- depressive states. International Journal of Psychoanalysis, 21, 125-153.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rogério Cezar de Cerqueira Leite
Av. Papa João Paulo I, 1111
13101-506 − Campinas − SP
tel.: 19 3253-1280
E-mail: cerqueiraleite@uol.com.br

Helena Cerqueira Leite Pimentel
Rua da Paz, 195/521
80060-160 − Curitiba − PR
tel.: 41 3262-9522 r. 521
E-mail: helenacerqueiral@uol.com.br

Recebido: 20/07/2010
Aceito: 10/08/2010

 

 

* Professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro do Conselho Editorial da Folha de S.Paulo.
** Psicanalista clínica, mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

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