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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.51 São Paulo dez. 2010

 

ARTIGOS

 

Os olhos da literatura: mitos, figuras, gêneros1− Giusi Baldissone2

 

The eyes of the literature: myths, characters, genres

 

 

Marisa Pelella Mélega*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Giusi Baldissone pertence aos autores de crítica literária que perseguem novas perspectivas de leitura e de interpretação, dando uma visão diversa daquelas conhecidas no mundo da literatura. Neste volume, do qual extraímos e traduzimos o capítulo inicial, ela se ocupa da questão do olhar na escrita, que se estende ao longo dos séculos e nos gêneros literários.

Palavras-chave: Giusi Baldissone, Vista, Visão, Olfato, Tato, Audição, Literatura, Mitos e figuras.


ABSTRACT

Giusi Baldissone is one of the literary critics who seek out new perspectives of reading and interpretation that provide an alternative to those already established in the world of literature. In this volume, from which we selected and translated the first chapter, he deals with the issue of vision in writing, which spans the centuries and genres of literature.

Keywords: Giusi Baldissone, Sight, Vision, Smell, Touch, Hearing, Literature, Myths and characters.


 

 

Sinestesias

Desde sempre, as palavras pintaram o mundo até mais ou melhor que a própria pintura (ut pictura). Pintaram não somente o desejo de ver aquilo que nunca havia sido visto, mas também aquilo que era e é materialmente invisível ao olhar: tanto o mapa do hemisfério austral, como também anjos, diabos, fantasmas.

As palavras, infinitas como o desejo, agregam-se, como os átomos de Demócrito, de Epicuro, depois se desagregam e formam outra realidade. Aparentemente, suas possibilidades são infinitas: podem descrever o indescritível graças à arte retórica, que lhes fornece todas as figuras necessárias à sua mobilidade e liberdade. Exercitam uma magia “calamitosa”, em todos os sentidos; não se pode evitar lê-las: os olhos que as encontram cumprem automaticamente sua vontade.

Seria interessante, embora árduo, tentar fazer um apanhado dos usos das figuras retóricas, pelo menos na literatura, para um cotejamento científico sobre a impressão de que tendem a prevalecer as figuras relacionadas à visão e não ao paladar, ao olfato, ao tato e ao som. Até a sinestesia, que é a figura mais libertadora porque permite à palavra abarcar o campo de todos os sentidos, adensa-se preponderantemente no campo do olhar, que é o que aparece com maior capacidade de evasão, se comparado aos demais. Experimente consultar o Dialogue dans le noir.

Existem, de modo abundante, as visões, os sonhos, as alucinações, mas não há criações fantásticas equivalentes no campo dos outros sentidos, nem no plano quantitativo nem no qualitativo. A palavra então escolheu seu tipo de infinito, ou, pelo menos, um veículo privilegiado para aceder: o do olhar.

Não há descrição do “outro mundo” na qual não prevaleça o olhar. Mesmo no inferno dantesco, que está imerso na escuridão, até além dos Setecentos, indagados do ponto de vista olfativo e gustativo por Camporesi, porque as fontes literárias consultadas por esse estudioso apresentam, em primeiro lugar, imagens visuais.

Não é à toa que “os olhos do homem buscam morrendo/ o Sol; e todos o último suspiro/ mandam os peitos à fugaz luz”. Ver, se não é a última sensação, é certamente o último desejo, a última figura retórica: fechar os olhos eufemiza o morrer; de resto, vir à luz parafraseia o nascer, pelo menos nas palavras. O que se inscreve entre o abrir-se e o fechar-se dos olhos não é simplesmente a vida, mas o que as palavras constituem como vida, através dos olhos e da qualidade do olhar. Tudo isso, apesar de algumas tentativas recentes, muito esnobes, em um congresso em Marselha, de decretar finalmente o Fin de l’ère de l’image.

Pareceria justo partir da seguinte observação: as palavras orais são constituídas de som, as escritas, de imagens; as primeiras têm a ver com a audição, as segundas, com a visão. No entanto, a visão e a palavra parecem quase da mesma natureza, até na origem das poesias, nascidas pelo canto e pela música.

Homero, aedo cego por escolha simbólica, torna-se vidente do além-túmulo e da memória mítica dos deuses para dar luz a imagens até então invisíveis e indescritíveis. Em tempos mais recentes, os trovadores provençais musicaram imagens que desenhavam no ar o retrato das cortes feudais e de seus senhores, de forma mais eficiente que a pintura daquele tempo (que, salvo raras exceções, como aquela que diz respeito ao ciclo de Yvain no castelo de Trento, não se ocupava de sujeitos laicos). Sabemos que muitas daquelas imagens que acompanhavam as partituras não ficaram apenas no ar, mas chegaram à escrita, deixando nos ambientes e na cultura cortesã algo de mais vivo e colorido do que o também riquíssimo nero su bianco.

Na atualidade, tem-se estudado com afinco o tema da oralidade, não somente nas formas por meio das quais se expressa diretamente, mas também naquelas que indiretamente lhe conservam importantes traços.

Se tentarmos um meio de confrontar a visualidade da poesia em relação à prosa, somos levados a generalizar a afirmação de Horácio – ut pictura poesis – e a privilegiar a poesia como gênero visual por excelência, lembrando a importância dos olhos na poesia siciliana e stilnovista até a explosão gráfica do Futurismo e depois da poesia visual.

...

Assim, retornamos ao início, considerando a organização da linguagem, escrita e falada, como uma organização preponderantemente visual. É provável que a formação das figuras retóricas aconteça fundamentada em uma escolha que privilegia o visual.

Poderiam ser as mesmas leis que regulam a ciência óptica e a Psicologia a dar explicações ao fenômeno. São leis que os agentes culturais e publicitários, políticos da “civilização das imagens”, levaram em conta no momento em que passaram a usar a fotografia, o manifesto publicitário e o cinema como meio de comunicação de massa, capazes de convencer por conseguir chegar primeiro e com maior penetração dos olhos ao cérebro, eliminando um processo crítico que a palavra permite. Não podemos esquecer que os antigos gregos haviam sintetizado essa intuição em suas escolhas linguísticas: “sei”, em grego, se diz oida, tempo perfeito da raiz eid, que indica o ato de ver – “sei” porque “vi”.

Por outro lado, o termo “pupila”, atribuído ao orifício através do qual a luz penetra no bulbo ocular, deriva do latim pupilla, que significa “bonequinha” – isso porque, ao olhar alguém nos olhos, os antigos viam a própria imagem reduzida em forma de boneca. Também no antigo hebraico, eshon ayin, vocábulos usados para designar pupila, significam ometto dell’occhio.

Por isso a memória visual é a mais persistente, e é por essa razão que as palavras se organizam para reproduzi-la, em uma perene tentativa de recriar o mundo. Não é por acaso também que as figuras retóricas sejam, então, figuras, isto é, composições relacionadas à imagem, ao que se vê, pois são modeladas por um artesão e recebem uma forma. Aqui entra etimologicamente o tato, mas somente como meio, como procedimento; e o resultado é a imagem que surge. As figuras, então – comparações, metáforas, semelhanças, sinestesias etc. –, vão em busca dos olhos do leitor: os físicos e os da mente.

É suficiente uma rápida observação para compreender o caráter recessivo dos outros sentidos quando comparados aos da visão. Nessa predominância, os olhos podem tocar, lamber, acariciar, cumprir todas as funções próprias do tato; podem, ainda, comer, devorar alguém ou algo; podem ouvir e entender; conseguem falar e cumprir mil gestos que parecem ser da competência do corpo e mil movimentos que afloram diretamente da alma: sentido metonímico que reconduz sempre ao todo, os olhos têm acesso bem além dos limites do corpo e podem transgredir muito mais que os outros sentidos.

É o sentido do excesso, do ir além do limite, seja ao pé da letra, seja metaforicamente: “De todos os sentidos, a visão é o sentido que mais manifestamente é dominado pela impaciência. Uma veleidade mágica, nunca plenamente eficaz, nunca desencorajada, acompanha cada um de nossos olhares: agarrar, dar uma olhada, petrificar, penetrar, fascinar, vale dizer fazer brilhar o fogo do olho em uma pupila imóvel”. Olhar significa sempre poder passar: Coi pie ristetti e con gli occhi passai, disse Dante na presença de Matilda e de seu edênico campo de flores, separado deles por um riacho. Os olhos, portanto, estão sempre além de nosso corpo, são o espírito, a ideia, o êxtase, o infinito.

Eles sempre se excedem porque, ao pousar sobre algo que imponha limites, pedem continuamente mais e, quando chegam a perceber o limite extremo, rompem-no: a vista não basta mais, é substituída pelas visões.

É o procedimento descrito por Leopardi no poema “O infinito”, mas é também aquele de Kant em sua obra A crítica do juízo: a visão que sempre avança leva o homem a harmonizar-se com o todo, a naufragar no infinito, a sentir-se parte integrante do “grande mar do ser”.

Não podemos esquecer, naturalmente, que o que o olho busca é, por fim, um espelho e que cada um vai em busca de sua própria identidade, perdida no momento em que, com o nascimento, o trauma da separação é reforçado pela passagem do escuro para a luz, do não ver para o ver.

Basta recordarmos a previsão de Dante sobre a viagem de Cristóvão Colombo, ordenando Ulisses a retirar a punição pelo seu querer ver demais, e nos lembrarmos de Orfeu, Narciso, Édipo, Psiche, para compreendermos bem o significado noturno e amniótico desse querer ver demais. Aqui a imensa luz do céu aparece absolutamente idêntica à escuridão dos Infernos. Lá também, embora pareça um contrassenso, nosso olhar tem visões que criam o espelhamento da alma.

Como podemos na escuridão falar de sombras, do momento que, pela consciência do mundo superior, as sombras provêm somente de objetos físicos que impedem a luz? Como podem existir sombras na escuridão? O problema se assemelha muito ao tentar perceber o movimento da própria sombra. Procurar colher um sinal da forma que está atrás das cenas, dessintonizar-se com o que mais está acontecendo naquela que parece uma ação natural ou uma simples conversação, isso significa “procurar ver sombras na escuridão” … A consciência desse tipo é reflexiva, não observa apenas a realidade física que existe nos olhos e através dos olhos, mas vê dentro com os trêmulos modelos que são internos àquela realidade física e internos também ao olhar.

Mas se os olhos sabem calar-se assim em profundidade além do que veem, se sabem afastar-se tanto de nós, eles representam nosso melhor instrumento, não só de conhecimento, mas também de possessão, de domínio do Universo. Não por acaso, a pintura nasceu como arte mágica, não de reprodução, mas de convocação do mundo na presença do homem. Os bisontes de Lascaux representam todo um mundo a ser vencido e comido. Desde então a pintura consolidou a onipotência dos olhos no Universo, deu imagens ao pensamento para que este penetrasse também onde a razão geométrica não podia, seguindo seu infalível esprit de finesse, que a levou a representar também o intocável, o inaudível, o indizível:

O pensamento vira imagem quando quer basear as próprias afirmações sobre a visão de um objeto. Em tal caso, tenta trazer o objeto diante de si para vê-lo, ou melhor, para possuí-lo. Mas tal tentativa, em que cada pensamento arriscaria ser abafado, é sempre uma falência: os objetos são afetados por um caráter de irrealidade.

A pintura representa a superação dessa falência. Nela, a irrealidade é transformada em uma realidade “outra”, que não poderia ser da forma da arte que a materializa. Os sonhos, os pesadelos, os fantasmas, as abstrações e as imagens surrealistas são irreais até que a pintura materialize a sua imagem.

As palavras não bastam: a distância que existe entre as palavras e as coisas, ao mesmo tempo que é sua identidade, confere à palavra um caráter essencialmente abstrato, fugaz. Entretanto, As tentações de Santo Antão, de Bosch, ou L’Incubo, de Füssli, visualizam a realidade do pensamento, que não é irrealidade, mas somente “outra” realidade, que, do contrário, restaria sem imagens (realidade psíquica). A pintura, em suma, tem condição de pintar os fantasmas, ou seja, não o que não existe, mas o que não se toca, não se sente, não faz barulho e não se pode abraçar; essa arte “vê” além da realidade externa sensorial – a rea lidade da percepção. Ao mesmo tempo oferece à visão uma reali dade substitutiva bem mais forte que a palavra: um retrato, um lugar, um objeto, uma situação, que, se pintados, oferecem à memória persistência e emoção que, ao passar através dos olhos, penetram na consciência bem mais fundo que qualquer outro sinal.

Imagine que particularíssima sinestesia era representada pelas chamadas “pinturas de luz” – os vitrais das catedrais medievais –, que contavam com as variações externas da luz para realizar a maravilha da arte. A imagem reproduzida satisfaz e sacia mais que a realidade talvez, porque constitui um aumento da realidade e acrescenta à vista aquilo que está, aquilo que se esconde sob a superfície, aquilo que não está e aquilo que poderia estar.

As imagens de um quadro, de uma fotografia, de um filme convidam-nos a comê-las com os olhos: dão à tal sinestesia a possibilidade de realizar-se. É o alimento da alma que é visualizado, fixado no momento em que se cumpre a metamorfose, a passagem da vista à visão.

Um dos pintores que exprimiram bem tal metamorfose é Arcimboldo: em seus retratos “de comer (e vomitar)” a realidade, ele condensa, sob os nossos olhos, todas as possíveis passagens, evocando todas as metáforas que podem adensar-se diante de um rosto humano, transformando-as em visão.

Não somente a arte, mas também um saber, transparece do exercício de tal imaginação: concretizar certas metamorfoses (como fez seguidamente Leonardo da Vinci) é um ato de conhecimento; cada saber está ligado a uma ordem classificatória: alargar ou modificar o saber quer dizer experimentar, com operações ousadas, o que subverte as classificações às quais somos habituados; esta é a função nobre da magia “soma da sabedoria natural” (Pico Della Mirandola). Assim procede Arcimboldo, do jogo à grande retórica, da retórica à magia, da magia à sapiência.

A natureza também se diverte falando-nos por sinestesias: é conhecido o fenômeno físico dos círculos concêntricos sobre a água, produção visível dos sons que uma pedra jogada emite à medida que alcança profundidade.

Era previsível que a espécie humana, no processo de evolução cultural, afinasse aquele, dos cincos sentidos, que se mostrasse mais útil ao progresso da aquisição da sabedoria. Era esperado que os olhos se expandissem e que todas as suas sinestesias buscassem, paulatinamente, espaços sempre mais amplos de afirmação, porções sempre mais complexas de realidade. Hoje, onde quer que predomine a visão, para onde quer que o homem olhe, o tato, o olfato, o paladar, a audição regrediram à nostalgia e somente a “nova história” celebra o “revival”. A imagem das coisas, o look, está sempre em destaque: os corpos são mais belos, mais cuidados e mais bem nutridos, mas, em contrapartida, evitam o contato cada vez mais: a pressa, a doença, a liberdade aconselham a deixar falar os olhos e pronto.

As maçãs são mais bonitas, mas envenenadas, e o resto, sabe-se, é literatura. Essa é a sinestesia atual, mais incentivada pela mass media: a publicidade que é despejada aos nossos olhos pela tela da TV apresenta imagens que devem parecer apetitosas, de alimentos perfeitos e sedutores, cujos requisitos devem obedecer às condições de guiar os olhos para além do próprio alimento. As cores e os esplendores são gastos em vernizes, untuosidades exageradas para predispor os olhos à visão pré-confeccionada que acompanha a visão de alimento. A publicidade da TV mata, desse modo, a imaginação, sugerindo, à fantasia do telespectador, fluxos de memória artificialmente produzidos. A madeleine tem seu percurso visionário previsto e codificado, por ter sido transmitido por Proust com algum processo de viragem em sépia. Cada porção de merluza tem sua etiqueta “mar del Nord”, cada atum tem “águas não contaminadas”, enquanto os almoços e espaguetes oscilam entre vozes calmas de uma festa exclusiva no campo toscano e silêncio de mesas arrumadas.

Os olhos são, paradoxalmente, bloqueados por tais imagens que os forçam a ir além. Estão bloqueados porque a repetição dessas imagens acaba por produzir uma coerção à visão, de tal modo que o alimento nos induz a lembrar, sonhar e desejar somente o que seus produtores desejam. Outro exemplo são algumas revistas de culinária, editadas muito mais para os olhos que para o paladar.

Entrar e comprar ou olhar e ir adiante são ações não necessariamente antagônicas. Nas melhores lojas de gastronomia do mundo, o alimento é uma oferta estética para os olhos, e são eles que dão água na boca. As imagens maravilhosas dos alimentos parecem multiplicar-se cada vez mais em uma sociedade e em uma cultura cujo tempo não comporta todas as ofertas. Pode ser que você vá correndo comprar o último livro de Isabel Allende, Afrodite, sobre a relação entre Eros e alimentos, ou vá ler com gosto o último artigo do teólogo um tanto original que propõe a bibliófilos e biblistas as suas palavras parole da mangiare. Pode ser que você sonhe diante de um grande restaurante, mas coma no bar da esquina ou em um fast-food… Os ritmos do trabalho, o culto ao corpo e as dietas acabam frequentemente por delegar aos olhos uma função sempre mais compensatória substitutiva ou sublimativa. As atuais patologias mais recorrentes entre mulheres jovens são a bulimia e a anorexia. Ninguém sonha mais com refeições pantagruélicas ou porosas, nas quais o alimento é o prêmio para a abstinência. São sonhos relegados ao terceiro mundo e extensivamente parodiados pela literatura (o primeiro dos contemporâneos, Marinetti, com Le roi Bombance) ou diretamente assumidos como metáforas de valor psicanalítico e/ou sociológico por meio do cinema dos últimos anos (La grande bouffe, de Ferreri; Il fascino discreto della burghesia, de Buñuel; Il pranzo di Babette, de Axel; Fanny e Alexander, de Bergman, para citar os mais famosos). Quem se arriscará a se exceder na comida com tanta ironia que a circunda pelo mundo afora?

Arcimboldo é, sem dúvida, o símbolo máximo dessa ironia, porque rende todos, impotentes diante da comida (e muitos restaurantes do mundo ostentam, de forma masoquista, seu nome). Hoje, as festas à moda dos templos exclusivos da “cultura material” podem propor novamente a maravilha mais visual que gustativa de alguma quaille en sarcophage. Os olhos buscavam perfeição e a encontraram na ilusão das aparências perfeitas. As sedutoras naturezas-mortas dos séculos XVI e XVII saíram dos quadros para se expor nas vitrines. E os jovens de hoje, que são “fortes e magros”, contentam-se em se saciar somente com os olhos.

Contudo, a situação dos outros sentidos também não é muito privilegiada.

Se nos perguntarmos que fim levou o tato, a resposta será um tanto quanto melancólica: ele foi reduzido a um desejo de fantasmas. Tocar a Mãe-Terra comporta hoje algum risco – significa sujar-se, contaminar-se, envenenar-se. O solo está impregnado de césio, dioxina, atrazina, vários pesticidas e resíduos orgânicos infectados, dos quais é bom proteger-se. Um antigo ritual chinês orientava a colocar os recém-nascidos no solo, para que entrassem em contato com a Mãe-Terra, uma prova que durava três dias e cujo simbolismo remetia a todas as relações humanas e sociais que o bebê desenvolveria no curso da vida. Como observa Marcel Granett, o moribundo, assim como o recém-nascido, tinha a mesma sorte: despedir-se por meio desse contato.

Esses ritos são praticados também pelos povos mediterrâneos, cujos símbolos e estruturas foram estudados pelos antropólogos, enquanto os poetas, como sempre se antecipando, nos deixaram traços e testemunhos pungentes.

Non é questo’l terren ch’io toccai pria? (Petrarca)
Ne piú mai toccherò le sacre sponde. (Foscolo)

Tocar é então a primeira e a última forma de conhecimento e de comunicação: os olhos do recém-nascido vêm sombras incertas, no momento em que seu corpo sente o contato com a pessoa que o alimenta e cuida dele; os olhos do moribundo buscam gemendo a fuggente luce, mas a imagem desaparece com os sons, os gostos e os odores, e a última ligação com a vida é, então, feita pela sensação de ter um corpo, que comprime um solo qualquer, leito ou terra que seja. A obra I letti, de Domenico Gnoli, pode ser um bom exemplo da qualidade tátil do leito, objeto intermediário entre o solo propriamente dito, assim como o conto de Maupassant intitulado “Il letto”.

No entanto, na cultura contemporânea, o tato está completamente deplacé, transferido de sede e metaforizado em sua concretude, mencionado em citações, reduzido à abstração. O tato está em desuso; não por acaso está confinado ao nível da transgressão e da cultura alternativa: toca aquele que rouba, que mata, mas também quem propõe ou já propôs técnicas de vanguarda para fazer teatro (Living Theatre, Grotowski, Barba), para fazer arte (tatilismo futurista e pop art), para parir, dar à luz (Leboyer). São vanguardas prestes a desaparecer. Hoje, o teatro da voz e da palavra é o que prevalece, enquanto todas as artes e técnicas visuais multiplicam suas substituições, declarando, no paroxismo da representação, que o tato não é representável. O cinema mostra corpos que se tocam, transferindo o tato para a vista, transformando- o em imagem. O mesmo continua a fazer a pintura, enquanto a música conserva a tocatta como uma lembrança ancestral dos dedos que apertam as teclas, deixando que a difusão dos compact disc apague da mente de quem ouve a memória da origem tátil.

O tato, em verdade, está conectado com o fazer: tocar significa fazer, além de conhecer. O corpo, como diz Marcel Mauss, é o primeiro e o mais natural instrumento do homem: “Antes das técnicas baseadas nos instrumentos, existe o conjunto de técnicas do corpo”. Por ter sido o primeiro, com o progredir da civilização, foi destinado a assumir o status de primitivo, de originário, antigo, superável e superado.

A forma mais evoluída de conhecimento e técnica tátil é, hoje, expressa pelas teclas do computador, por meio da qual se podem somar experiências de outros com uma intervenção mínima de nossa própria.

Proibições e impedimentos acompanharam o uso do tato desde as civilizações primitivas até hoje. Pode-se dizer que esta seja uma constante cultural presente diacronicamente em todas as civilizações. Os tabus com relação ao tato são mais rigorosos e ameaçadores que os dos outros sentidos. Ele é dotado de uma fisicidade mais obstrutiva e embaraçosa: o contato pode transformar-se em contágio, contaminação e transgressão quando realizado.

Na cultura da visão, também para os não videntes, os cegos, o tato não representa mais uma visão substitutiva adequada: experimentam-se novas técnicas, capazes de fazer passar os estímulos do ouvido ao cérebro mediante sinestesia, produzindo assim as imagens que os olhos não têm condições de fornecer.

O tato hoje está relegado substancialmente à nostalgia. Pensemos no filme dos irmãos Taviani, Good morning, Babilonia: o cinema, que se oferece à visão como produto acabado, típico da cultura da imagem, é celebrado como o ato de fazer, tato e contato de mãos que constroem, sentem e manipulam concretamente objetos e corpos, destinados à visão de um público carente de contato. Atualmente, o contato, por definição semiológica, é o canal, o meio pelo qual uma mensagem é veiculada do remetente ao destinatário. É, portanto, o sentido que substituiu a Mãe-Terra original, que coloca os homens em contato social uns com os outros. O telefone, o jornal, a televisão e o cinema são o substituto de nossos corpos. “Contato” é também o nome de um preservativo.

Mas se este é o tempo da nostalgia, é por meio dela que o tato colhe seus triunfos. A civilização do asséptico e dos desodorantes indaga, com paixão, sobre a mentalidade e a cultura material, produzindo histórias sociais dos odores, histórias de alimentos, de ervas, de sangue e até de merda.

Hoje, o escândalo mais extraordinário no campo artístico consiste na produção de obras virtuais. Fred Forest, em outubro de 1996, vendeu, por 15.800 francos, o primeiro quadro virtual, Parcelle/Réseau, produzido via internet, o qual, pela sua total imaterialidade, é visto somente por seus compradores, mediante código secreto de acesso. Trata-se de uma revolução fruitiva: enquanto outrora a reprodução sobre CD-ROM não podia substituir a aura anímica do original, agora o original é uma visão e, se for impresso sobre suportes de papel ou outros, serão estes a ter uma função de reprodução.

O tatilismo futurista torna-se uma proposta contracorrente:

Enquanto os olhos e as vozes comunicam entre si as suas essências, os tatos de dois indivíduos não se comunicam quase nada em seus choques, entrelaçamentos ou esfregamentos. Daí, a necessidade de transformar o aperto de mão, o beijo e o acasalamento em transmissões contínuas de pensamento.

Mas também o tatilismo é um produto da cultura. Por enquanto, vaguemos na cultura das imagens como Dante em sua viagem em outros mundos: os corpos que vemos estão todos envolvidos por um tipo de “Noli me tangere”; podemos tentar abraçá-los, mas nossos braços envolverão o próprio peito.

Que os olhos, com o passar do tempo, substituam também o olfato é uma realidade tanto concreta quanto literária. Tudo tende a tornar-se imagem, primeiro na escrita, depois na representação visual propriamente dita.

De todos os órgãos dos sentidos, o olfato é o mais recessivo. Desapareceram de nossa cultura os odores desagradáveis e isso faz parte de uma evolução da civilização, que, desde o século XVIII, introduziu práticas higiênicas, nunca antes conhecidas. Mas, com elas, desapareceram também os cheiros do Eros, os da cozinha, o cheiro da pele, do óleo das frituras. Vivemos na era dos “sem nariz” (snasati). “As rosas não falam, simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti…”, esses versos são de autoria de um compositor que perdeu o sentido do olfato por causa da leishmaniose: Cartola.

Um dos romances mais típicos desta era é O perfume, de Patrick Suskind, cuja história descreve um ser diabólico, nascido sem odor humano, que passa a vida tentando fabricar um odor que o torne semelhante aos homens. Os homens e principalmente as mulheres passam o tempo a perfumar-se e desodorizar-se, alimentando a riqueza dos fabricantes de perfume. Des Esseintes, em sua mania de colecionar, prestava mais atenção às preciosidades das formas dos vidrinhos de perfume que às essências neles contidas, e os versos de “Correspondences”, de Baudelaire, vão além do magnífico soneto e invadem vitrines com suas cores alusivas, assim como os “Voyelles”, de Rimbaud, preencheram jogos polimatéricos da infância e monumentos pós-modernos à poesia. A poesia futurista é a última a ter convocado todos os sentidos de forma igual. Hoje, a poesia visual é a vanguarda.

Sem nariz, mas coloridos! Também as rosas da serra, sempre mais refinadas em mais cores, não têm perfume. No passado, a liturgia, a filosofia, a literatura ligavam o perfume à alma, à mente, às faculdades mais elevadas do homem, e o nariz era veículo para o sobrenatural; hoje, no entanto, o incenso raramente é queimado nas cerimônias religiosas. Nenhum nariz literário reportaria à mente o sinal perdido, recolhido em ampolas, como Ariosto indica a Astolfo para fazê-lo por Orlando, e nenhum Cornélio Agrippa afirmaria mais que “alma filha e imagem do mesmo Deus, deleita-se ela também aos perfumes e às fumigações”.

Napoleão escrevia à Giuseppina pedindo para que ela não se lavasse, quando estava para visitá-la. Hoje, tal pedido seria considerado transgressivo e anti-higiênico.

Desaparecidos os cheiros, o triunfo dos desodorantes e dos perfumes não aconteceu sob o controle do nariz, mas, sim, porque o perfume e as essências foram levados aos olhos. A publicidade, com seus procedimentos retóricos, por analogia, comparações, semelhanças, associou à ausência de cheiro e ao perfume imagens sempre mais intensas, numerosas, sedutoras, mais do que o próprio perfume em si, até o ponto de substituí-lo.

E o nariz? Ele também desapareceu, a não ser para fungar: da digitalle purpúrea à cocaína, passando pelo nariz de Freud inchado pelo tumor. O nariz desapareceu como símbolo e medida do sexo masculino – Le Nasei, dos séculos XVI e XVII, Naso, de Gogol, o de Pinóquio, o de Cyrano. Desapareceram porque a rinoplastia removeu literalmente o problema, tornando- o anacrônico.

Melhor sorte tiveram a audição e o ouvido, ainda que sob a ênfase musical da cultura jovem. Tudo parece proceder mesmo na direção dos olhos; a civilização e o progresso fazem dos outros sentidos faculdades em declínio. A poesia, como sabemos, nascida da oralidade como som puro, vai à escritura e passa a ser vista cada vez mais como imagens. Orfeu representa o emblema na passagem de Homero e Dante (atravessando Strabone) e todos os escritores intermediários; também a experiência de Ulisses se reduz à visão do marido além das colunas de Hércules e das estrelas do outro polo, perdendo, no caminho, a voz das sereias e todo o resto. Eco, ridicularizada e humilhada pelo seu amor infeliz, parece representar o desespero de algo que é insuficiente, que falta: um som puro, privado de essência autônoma, sem consistência. O que de mágico e primordial existe no som procede lentamente e inexoravelmente para a razão, a luz, a “arte de silenciar”. Não há mais cítaras para acordar os mortos, flautas mágicas e pífaros diabólicos, porque a orelha perdeu, pouco a pouco, seu caráter simbólico de orifício sexual e mental ao mesmo tempo. Nesta acepção, no Oriente, na China e na Índia, o som era entendido como a origem do cosmo. Se a palavra, o verbo (vak), produz o Universo, isso acontece pelo efeito das vibrações rítmicas do som primordial (nada). Tudo o que é percebido como som é potência divina (uma referência a essa concepção encontra-se também no evangelho de São João, cujo trecho descreve “No princípio era o verbo”). O conhecimento primordial era, então, não uma visão, mas uma percepção auditiva (luz auricular é definida no Trattato del Fiore d’Oro. Podemos encontrar um fragmento dessa comunicação primordial também na cultura ocidental, nas festas religiosas em que se diz que a Madona concebeu pelo ouvido. Quem escuta sons inaudíveis o faz, como Brahma, com o olho do coração. Há várias técnicas hindus de percepção do som interior, comparado ao dos sinos e da concha. Esse tipo de escuta verifica-se também em certas práticas muçulmanas (Dhikr). Desse conhecimento primordial perderam-se progressivamente os traços, e a visão do coração foi se tornando, pouco a pouco, uma percepção visual. “O terceiro olho” pode ser testemunho dessa perda no âmbito cultural oriental, enquanto, no Ocidente, as sereias deixaram de cantar desde que Orfeu distraiu os argonautas com contos e Ulisses se fez amarrar no mastro para não ser encantado.

Pode parecer paradoxal afirmar que, na evolução da civilização, sobretudo ocidental, se manifesta uma perda de som: a música aparentemente assumiu uma importância extraordinária, invadiu práticas e níveis culturais antes inacessíveis.

Quando Adão foi iniciado na arte do amor, no jardim dos sentidos, foi também educado para a música. I gioielli indiscreti (As joias indiscretas), de Diderot, emitem confissões secretas, retomando antigos “fablieux” e associado de novo à simbologia sexual, à velha imagem da orelha e do som. Há muitos poemas que parecem construídos mais para a escuta que para a leitura (pensemos no poema “La pioggia nel pineto”, di D’Annunzio, mas depois se pode olhar, sentir, cheirar aquele poema anti-D’Annunzio, do futurista Paulo Buzzi). Os futuristas devolveram a dignidade às sensações auditivas da poesia e da arte de modo geral; basta nos lembrarmos do instrumento musical de Russolo e de todos os instrumentos criados ou revisitados para obter os efeitos sonoros mais divertidos e raros.

A civilização contemporânea sofre de poluição sonora, e o excesso, nesse caso, gera não um discernimento ao nível superior ou um deslocamento para a visão, mas, sim, surdez, ou seja, o excesso de som e barulho gera silêncio. Como diz Huxley:

As emoções negativas diminuem a visão em parte, por meio de uma ação direta sobre os sistemas nervoso, glandular e circulatório, em parte enfraquecendo a eficiência da mente. É literalmente verdadeiro que nos tornamos “cegos de raiva”, que o medo faz ver tudo preto ou faz dançar tudo diante dos olhos, que a angústia pode aturdir a ponto de reduzir a visão e a audição, com consequências práticas, frequentemente graves. E os efeitos de tais emoções negativas nem sempre são transitórios.

Em compensação, os sons se transformam em imagens: a música é produzida em videoclipe, os discos de vinil se transformam em imagens a serem exibidas no salão da música de Turim, pagos a preços caros porque podem ser expostos como quadros na parede, em vez de estarem em toca-discos, estes destinados a desaparecer por causa dos aparelhos para compact disc.

Expressões como “visão do coração”, “comer com os olhos”, “roçar com o olhar” celebram a sinestesia como reino da visão, arrancando aos outros sentidos o terreno que lhes é próprio e transfigurando-os em imagens. Reconhecer que a civilização caminha para uma negação do corpo pode ser inadequado, mesmo se aparentemente irrefutável? Seria como reconhecer que o corpo está em progressivo estado de censura, apesar das várias formas de liberação produzidas pela psicanálise, pelo exercício físico e por todos os componentes mais variados da cultura contemporânea. Se o corpo tende a resumir-se na visão e todos os órgãos dos sentidos nos olhos, fica um problema ao qual provavelmente podem dar resposta somente várias formas de conhecimento, provenientes de várias disciplinas consideradas de forma sinóptica. Se o olho é o único dos órgãos dos sentidos a produzir metamorfoses na passagem do concreto ao abstrato, o único a produzir “visões” das ciências físicas, provavelmente a explicação resida na conhecida lei da velocidade: enquanto os outros sentidos têm necessidade de um contato entre remetente e destinatário, entre o objeto a ser percebido e o órgão de percepção (tato, paladar, olfato, audição), as imagens chegam sem conta, sem molécula, da matéria. Estamos sempre no modelo do cão de Pavlov: os olhos agarram tanto sem contato, como de forma abstrata. É o único a fazê-lo e a se comunicar com nosso cérebro mais velozmente que todos os outros órgãos dos sentidos. Por isso influencia também as escolhas mentais e a elaboração da linguagem; a vista é o nosso sentido dominante. Este é o motivo, talvez, pelo qual os histéricos aconselham a ter cautela e distância ao se examinarem não somente os fatos, mas sobretudo as ideias que se manifestam em histórias nas quais estamos (ou podíamos estar) envolvidos. Se as coisas tomam esse rumo, os outros sentidos acabarão por manifestar-se na história da cultura humana como recessivos, progressivamente substituídos pelos olhos, que podem reassumi-los todos simbolicamente e por sinestesia. Se tudo, em nós e ao nosso redor, se transforma em vista e visão, um dia, talvez, sejamos somente olhos, olhos infinitamente projetados como desejo de superar todos os confins, olhos que irão, sobretudo, indagar e acabarão também por nos vencer: seremos só olhos a explorar outros olhos no silêncio e na imutabilidade.

 

Endereço para correspondência
Marisa Pelella Mélega
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E-mail: pmelega@uol.com.br

Recebido: 10/06/2010
Aceito: 25/08/2010

 

 

* Psicanalista da SBPSP e doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP (2004).
1 Capítulo extraído do livro Gli occhi della letteratura, miti, figure, generi e adaptado para publicação na ide por Marisa Pelella Mélega.
2 Docente de Literatura Italiana para Línguas Estrangeiras na Universidade do Piemonte Oriental. Il male di scrivere, Il nome delle donne e Benedetta Beatrice são algumas de suas obras.

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