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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.51 São Paulo dez. 2010

 

RESENHAS

 

A psicanálise nas tramas da cidade

 

Psychoanalysis of the wefts of the city

 

 

Suzete Capobianco*

CETEC

Endereço para correspondência

 

 

Tanis, Bernardo e Khouri, Magda G. (Orgs.). A psicanálise nas tramas da cidade. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009. 439 p.

O texto que pretende apresentar um livro a seu possível leitor assemelha- se, em alguma proporção, a um guia de viagem. Não pretendemos ter conhecido o lugar depois de lê-lo, mas antes saber da sua capacidade de nos convidar à visitação.

Essa função fica ainda mais marcada quando o livro em questão é uma reunião de muitos autores, muitas vozes falando livremente sobre as cidades. Há historiadores, arquitetos, escritores, cineastas e, sobretudo, psicanalistas, visto que o livro em questão, A psicanálise nas tramas da cidade, foi organizado por dois psicanalistas, Bernardo Tanis e Magda Guimarães Khouri1. O projeto realizado em parceria procurou pôr em pauta as questões da subjetividade no cenário urbano das grandes cidades.

Imbuída da minha tarefa, comecei a passear pela paisagem que se oferecia e, texto após texto, ia notando uma língua comum. Assim como se alguém tivesse chegado do Maranhão a São Paulo e pudesse entender e se comunicar nas situações, reconhecendo a língua, as palavras, mesmo que as diferenças ressaltassem mais que as semelhanças. Devo dizer que eram os textos dos psicanalistas que me produziam essa sensação. Neles se destacava uma direção, um tom, onde a cidade ou o ambiente urbano era usado como figurante de outro protagonista, a saber, o mundo psicanalítico.

De la misma forma, tenemos que admitir la posibilidad de instrumentar sesiones dobles con el fin de hacer posible un tratamiento de tres o cuatro veces por semana, pero favoreciendo que los tiempos de traslado no entorpezcan las possibilidades reales de a los tratamientos. (Rocabert, 2009, p. 37)

Era como se todos os caminhos fossem levando à “Roma do psiquismo”.

Olhando as fotografias nas paredes da casa de Freud, em Viena, tentamos capturar ... o que teria pensado, sentido, vivido naquelas salas e naquelas ruas, e o que teria se passado naquelas sessões. (Eizirik, 2009, p. 57)

Cidades que atrapalham a rotina de sessões, cidades a que Freud aludiu ou morou, cidades dentro de psiquismos.

cada quien viaja com su propia ciudad internalizada. (Alizade, 2009, p. 67)

Sentada a uma mesa de esquina, o que eu ouvia dos passantes era um sotaque, um viés: uma mesma melodia com letras diferentes.

Porém, como em toda viagem, é quando você está cansado, com a guarda baixa, que algo se dá. E assim foi que alguma coisa aconteceu no meu coração com o texto de Roberto Pompeu de Toledo, em que me deparei com uma grande expressão psicanalítica, produzida por um jornalista. Não cidades dentro de psiquismos, mas o psiquismo da cidade.

O texto se chama “São Paulo e as águas” e peço licença a todos os outros autores para me demorar nele. Conta-nos como nossa cidade teve o seu surgimento contrariando a lógica da colonização portuguesa. Isso pelo fato de ter sido a primeira cidade implantada no interior.

Foi implantada em uma colina circundada por dois rios, o Tamanduateí e o Anhangabaú. Esses rios formavam um ângulo, e para completar o triângulo havia uma vasta área alagada; eram as várzeas, mais tarde chamadas do Carmo e do Glicério. Assim, durante grande parte do ano, São Paulo era uma ilha. Consta que o padre Anchieta chegou a São Paulo atravessando uma ponte sobre essa região alagada. (Toledo, 2009, p. 69)

Aí nos conta que, após três séculos de adormecimento, a cidade acorda no século XIX com uma relação ambígua, ambivalente e conflituosa, além de muito frequentemente hostil, com suas águas. Fala de um documento, um livro escrito por um carioca chamado Henrique Raffard, filho do cônsul suíço no Rio de Janeiro, intitulado Alguns dias na Pauliceia: “Ouvi falar bastante em tornar São Paulo porto do mar”. Espanto! Isso era cogitado por um engenheiro e vereador: transformar São Paulo em porto de mar, a sério. Ele pensava em encurtar caminho, de modo que o escoamento da produção fosse mais rápido.

E aí ele lança a primeira hipótese interpretativa:

Essa história de trazer o mar para São Paulo é, de certa forma, uma resposta, ou uma reação à singularidade que fez de São Paulo a primeira cidade do interior do Brasil. É uma tentativa de revogar a Serra do Mar, e trazer a cidade ao mesmo plano das irmãs/rivais do litoral, como Rio de Janeiro, Salvador ou Recife. Temos aí, para quem quiser enxergar além do nível do mero interesse comercial, uma manifestação do ódio- -amor, desprezo-inveja que marcará a relação de São Paulo – e dos paulistanos − com as cidades do litoral, em tese mais charmosas e nas quais (sempre em tese) se aproveita melhor a vida. (Toledo, 2009, p. 71)

Passa então o autor a contar como a relação de São Paulo com seus rios foi indo de pacífica, com direito a regatas no rio Tietê, a conturbadíssima. O crescimento em escala exponencial exigiu e passou a justificar, para seus planejadores, o desaparecimento do que era uma marca origem.

Nesse processo teve lugar uma investida que eu chamaria de furiosa contra os rios, riachos e córregos da cidade. ... O objetivo final, a solução final desejada por São Paulo parecia ser apagar suas águas até o ultimo vestígio. (Toledo, 2009, p. 72)

Praticamente todas as avenidas em que trafegamos diariamente são construídas em cima de cursos d’água (cerca de dois terços, segundo apurado na Prefeitura).

Isso significa que transitamos em São Paulo sobre uma enorme sepultura de rios. (Toledo, 2009, p. 72)

E assim prossegue, contando do riacho do Ipiranga, do Tororó, que se perdeu em cantigas infantis, que já houve um Tamanduateí que justificasse ao botânico francês Saint-Hilaire descrever a bela vista que se descortinava do Palácio do Governo em 1822, e até uma ladeira Porto Geral que encimava um porto de rio (de verdade), que trazia a produção dos beneditinos de uma fazenda que tinham em São Bernardo a São Paulo.

O autor toma seu objeto de estudo e escuta sua história desde uma origem submetida a atender o ideal de seus fundadores (ideal mercantil de escoar mercadorias por um mar que não tem) e, para cumprir tal vocação, imposta à revelia daquilo que lhe era constitutivo (situar-se no interior, contrariando a regra das cidades coloniais), descuida, negligencia o que é seu, passa a viver e a identificar-se com esses ideais, ganhando progressivamente uma fachada feia e distorcida como costuma ser a cara das doenças, dos seres mal constituídos, que se assentam sobre seus mortos mal enlutados, enterram os fluxos e transitam sobre suas sepulturas. Compensam essa negação de si com um ritmo frenético confundido com vida, fazendo crer que dinheiro circulante é igual à riqueza. É a neurose, a doença dessa cidade que surge por uma escuta acurada.

Para finalizar, diz:

A interpretação disso... Não, não vou arriscar uma interpretação a uma plateia de psicanalistas. Vou dar uma explicação. (Toledo, 2009, p. 76)

Que pena ele não saber que essa já foi uma grande interpretação, no melhor sentido psicanalítico.

Outro bom ponto de visitação nesse livro-paisagem-urbana-subjetividade encontra-se sob a batuta de José Miguel Wisnik, que aborda a necessária estratégia de sobrevivência diante do excesso de estímulos que se tornou viver nas grandes cidades. Fala da figura do blasé que vigorou no século XIX como resultado da vida na metrópole que, obrigando o indivíduo a responder continuamente a estímulos, levaria a uma indiferença anestesiante.

como se a couraça psíquica ... fosse um excedente de proteção e de insensibilização já socializado no mundo da metrópole pelo fato de estar-se exposto ao meio traumatizante. Ou seja, a vida na metrópole redobra o caráter defensivo da consciência. (Wisnik, 2009, p. 108)

Cita Benjamim e Freud para falar da memória consciente que, ao registrar uma experiência, põe em ação um dispositivo de apagamento que a queima ao guardá-la. Wisnick nos fala dos avatares da poesia moderna, perguntando como se dá a lírica em um mundo em que a memória involuntária tornou-se problemática. Entrelaça sujeito e metrópole de maneira indissociável. Um fruto do outro, gerando problemas, gerando perguntas, gerando um modo de ser. A memória é o aspecto que se transforma: entre o protagonista proustiano que se deixa conduzir por ela − uma memória involuntária −, que está na antessala da modernidade, e o poeta moderno que usa a consciência reflexiva, pois foi banido do solo traumático pela via de tornar-se indiferente, de ter cauterizado o nervo afetivo que a memória inconsciente faz emergir, temos um novo poeta e um novo sujeito, como indica o último parágrafo da página 115:

São questões que implicam a psicanálise, que lhe apresentam um sujeito e um mundo embrenhados em uma luta com seu século. Luta cujos efeitos ainda reverberam, enquanto um século XXI já cercou nossas fronteiras nos sitiando em novos não saberes e novos seres que perguntam sobre vida e morte artificiais, imediatismo versus duração, sozinho versus junto, que espécie de agrupamento somos, e com que equipamento sonhá-lo?

Caro leitor, esses trechos são uma provinha. Quem quiser que se anime à viagem.

 

Referências

Alizade, A. M. (2009). La ciudad interior y los otros (diferencias- indiferencias). In B. Tanis & M. G. Khouri (Orgs.), A psicanálise nas tramas da cidade (pp. 61-68). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Eizirik, C. L. (2009). A presença da cidade no analista. In B. Tanis & M. G. Khouri (Orgs.), A psicanálise nas tramas da cidade (pp. 53-59). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Rocabert, J. V. (2009). La práctica psicoanalítica en las megaciudades. In B. Tanis & M. G. Khouri (Orgs.), A psicanálise nas tramas da cidade (pp. 31-51). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Toledo, R. P. (2009). São Paulo e as águas. In B. Tanis & M. G. Khouri (Orgs.), A psicanálise nas tramas da cidade (pp. 69-78). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Wisnik, J. M. (2009). Cidade, subjetividade, poesia. In B. Tanis & M. G. Khouri (Orgs.), A psicanálise nas tramas da cidade (pp. 105-116). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Suzete Capobianco
01239-020 – São Paulo − SP
tel.: 11 3231-3983
E-mail: suzy@capobianco.com.br

Recebido: 10/08/2010
Aceito: 25/09/2010

 

 

* Psicanalista, mestre em Psicologia Clinica pela PUC-SP, membro do CETEC.
1 Coordenadores das diretorias de Comunidade e Cultura da Federação de Psicanálise Latino-Americana (FEPAL) e da SBPSP, Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

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