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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.51 São Paulo dez. 2010

 

RESENHAS

 

Alguns diálogos psicanalíticos sobre “patologias contemporâneas”

 

Some psychoanalytic dialogs about “contemporary pathologies”

 

 

José Luiz F. Petrucci*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre

Endereço para correspondência

 

 

Costa, Gley P. e colaboradores. A clínica psicanalítica das psicopatologias contemporâneas. Porto Alegre: Artmed, 2010. 272 p.

Uma excelente abertura para esta resenha será reproduzir o que diz Leopoldo Nosek, em seus comentários de contracapa, no próprio livro: “Devemos dar boas-vindas a este novo livro do psicanalista Gley Costa. Seu estilo agradável possibilita uma leitura fluida sobre temas difíceis e atuais”. E conclui Nosek: “É um livro essencial, nascido em nosso meio, que deve ser lido por profissionais e por todos os que tenham interesse em se atualizar nesse deslumbrante campo que é a psicanálise”.

A expressão de tudo aquilo que sabemos sob o título geral das psicopatologias psicanalíticas tem acompanhado as mudanças culturais. Como escreveu Freud, nossa mente estará sempre a buscar, no mundo externo, algo que seja familiar a suas “necessidades internas urgentes”. Ora, certamente será de aparecimento pelo menos muito raro, hoje, por exemplo, os quadros de histeria como apareciam na época em que Freud começou, com essa patologia, sua busca pelo que hoje é a psicanálise. O que pensar dos tempos atuais, nós, os que vivemos a explosiva mudança da expressão da sexualidade a partir do revolucionário ano de 1968, e que pertencemos à tão conhecida “geração Woodstock”? O que Freud considerou como o “mundo externo” certamente é hoje bem outro. As restrições à sexualidade, aquelas de que tanto nos fala Freud em seus primeiros anos de psicanálise, hoje praticamente não mais pertence à cultura ocidental. No entanto, a forma atual de valorização do corpo, os novos modelos de beleza certamente estarão a influenciar profundamente muitas das novas patologias de que trata o livro de Gley Costa, fundador, membro titular e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.

Desse modo, é sobre toda uma série de novas expressões da patologia, ou da expressão delas, que discorre Gley em seu livro. Em uma conversa pessoal com ele, discutimos sobre as surpreendentes razões que têm trazido pacientes aos consultórios dos psicanalistas. E, mais importante, como a psicanálise tem hoje instrumentação para indicar tratamento psicanalítico para tais pacientes, coisa impensável 30, 40 anos atrás, época em que ele, e eu, começamos nossa formação psicanalítica.

Em busca de uma abordagem para o tratamento dessas chamadas “patologias atuais”, o autor tem uma postura de fato científica, aquela que não tem uma verdade, mas está sempre indo em busca dela. Assim, permito-me, eu que tenho pouca intimidade com os referenciais usados no livro, ir em busca de caminhos teóricos que trilho entender para entender aquilo que, para meu uso pessoal, passei a chamar de “equivalentes psicóticos”. Sim, porque os quadros clínicos que nos são apresentados por Gley Costa acometem pessoas que, em geral, não se apresentam com a exuberância de um quadro de psicose, na forma como a psiquiatria as reconhece, mas, analisados, percebemos neles o estancamento de partes importantes do desenvolvimento de sua personalidade em níveis bastante primitivos, tanto ou mais que em uma psicose franca.

Então, posso fazer um diálogo entre os referenciais usados pelo autor e os meus, e neste diálogo destaco em meu pensamento aqueles pacientes em que se encontraram falhas em um precoce encontro com um objeto capaz de receptividade das suas mais precoces exigências, mesmo aquelas de um estágio do desenvolvimento em que ainda não se haviam criado nem mesmo os espaços corporais e suas sensações mais primárias, como a “do lugar onde a mente e o corpo irão existir como experiência”. Este é, muitas vezes, o nível de evolução explorado pelo autor, usando para isso os referenciais, entre outros, de Maldavsky. Faço um diálogo, como disse acima, com meus referenciais para ir em busca de tais momentos da evolução, diria eu, “pré-psíquica”. Sim, porque é um tempo em que o que vamos reconhecer como “aparelho psíquico”, para usar a linguagem de Freud, é absolutamente incipiente, se é que ao menos existe. Depreende-se disso que a linguagem corporal, nada ou quase nada “psíquica”, seja o que tais pacientes nos trazem. Sigo aqui as manifestações do desenvolvimento precoce detectadas por Margaret Mahler, Esther Bick, Frances Tustin, Joyce McDougall, Donald Meltzer, Thomas Ogden, Wilfred Bion. Por falta de um objeto primário, de um conjunto de ações que poderíamos reunir com o título “aconchego primário”, houve falhas importantes na aquisição das experiências de contiguidade-continuidade, de periodicidade e ritmicidade, de posição proprioceptiva, enfim, de coesão do Ego. Por falta de tais experiências, fundamentos para o estabelecimento posterior do psiquismo, não poderão elas chegar a ser contidas no psíquico, porque nunca chegam a ser “psíquicas”, e não se manifestarão dentro do psiquismo, mas fora dele (como o próprio corpo, ou a mente do analista). Este é o caminho da técnica proposta no livro de Gley Costa. Ora, dizem os analistas, “precisamos modificar a técnica para analisar tais pacientes”. Isso parece a mim um equívoco, não são os analistas que “se decidem” a modificar a técnica, mas os pacientes − este tipo de pacientes − são quem a impõem. Carentes de uma linguagem psíquica, é evidente que não terão capacidade de seguir uma técnica que exija tal linguagem, e certamente não poderão ser contidos dentro de um “setting” tradicional (isso inclui, evidentemente, coisas como introspecção, associação livre, o divã inclusive, claro). Tais pacientes, mesmo quando empregam preferentemente uma linguagem aparentemente verbal, usam uma comunicação não simbólica, “atuada”, portanto, muito mais a ação do que a simbolização. Ora, até bem pouco tempo tais pacientes não encontravam lugar nos consultórios de análise, como agora acontece. Evidentemente eles irão, por tudo o que diz Gley, exigir muito das mentes e dos corpos de seus analistas. Somente com nossa possibilidade de abandonarmos a “segurança” do “setting” tradicional poderemos analisar tais pacientes.

O livro que ora resenho não é uma obra teórica. Embora aborde teorias, elas apenas estão ali para dar sustentação à prática que descreve. E é com a tomada de conhecimento da prática, da técnica utilizada pelo autor nesses casos (pacientes psicossomáticos, anoréticos, portadores de angústia livre, ou automática, como diz o autor, citando Freud), que o livro se torna algo novo. E não só isso: ele nos faz pensar no quanto estamos suficientemente analisados para ir em busca de questões dessa ordem que tais pacientes estimularão em nós.

Finalizando, será importante dizer que tais falhas no desenvolvimento precoce, em graus variados, estão presentes, dialeticamente com as partes evoluídas da personalidade, em todos os nossos pacientes, e em nós analistas também (no genial modelo da equação fundamental, de Freud). Assim, esse livro será importante não apenas para os interessados nas patologias citadas, mas para todos os analistas. Afinal, quem já não teve dolorosas experiências corporais diante de seus pacientes, e quem já não foi acometido por avassaladoras angústias transferenciais, mesmo analisando pacientes ditos “neuróticos”? Hoje, é frequente lançarem-se dúvidas sobre a qualidade técnica e pessoal de analistas que negam isso.

 

 

Endereço para correspondência
José Luiz F. Petrucci
Rua 24 de Outubro, 838/409
Moinhos de Vento
90510-000 – Porto Alegre – RS
E-mail: jopetrucci@terra.com.br

Recebido: 27/09/2010
Aceito: 20/10/2010

 

 

* Médico psiquiatra, psicanalista, formado pela Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (1981). Membro titular fundador e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.

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