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Ide

versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.34 no.52 São Paulo ago. 2011

 

EDITORIAL

 

 

Caro leitor

Uma vez iniciada a viagem dessa aventura de sermos responsáveis pela gestão da ide, chegamos agora ao primeiro número de nossa equipe. Como propusemos na carta-convite uma abordagem plural para o tema, recebemos artigos com grande diversidade de visões, provenientes de psicanalistas, mas também de filósofos, professores de literatura, antropólogos, estudiosos das religiões e, uma novidade, escritores. Assim, também publicamos na seção "Em pauta" poemas, um conto e o depoimento de uma atriz.

Retomamos neste número a publicação de uma entrevista, dessa vez com o cineasta João Jardim, de Janela da alma e Lixo extraordinário. Seu recente documentário, cujo título é Amor?, traz a questão da relação entre amor e violência nos relacionamentos. Poderemos aprender, entre outras coisas, como o cinema documentário constrói um trabalho de investigação sobre determinado tema.

E de que amores falamos? O amor aparece sob diferentes formas e aspectos neste número. Ao lê-lo, passaremos por mitos indígenas de diferentes culturas, os quais trazem nitidamente em seu bojo a questão do incesto, da castração e da diferença dos sexos. Em seguida, adentramos um texto filosófico fundamental sobre o tema – O banquete – de Platão. Um filósofo nos aporta, após situar-nos no contexto histórico em que se deu tal banquete, uma visão recente e inovadora sobre os papéis de Eros e sua relação com o poder (vontade de poder). Um Eros que se torna amor possessivo, mas também outro, que é o amor ao belo.

Na seção "Artigos" uma autora retoma a encenação final do banquete com a entrada intempestiva de Alcibíades, a irrupção mesma do desejo amoroso que ele declara a Sócrates. Lacan, em seu "Seminário sobre a transferência", ocorrido em 1960-1961, dá grande importância a esse momento do banquete, no qual Alcibíades passa do elogio do amor, que vinha ocorrendo no debate, para o elogio de outro, Sócrates, e "considera que Sócrates é esse tesouro, esse objeto indefinível e precioso que vai fixar sua determinação após ter desencadeado seu desejo"1. Estamos aqui no que parece o maior mistério do amor, a relação entre amar e desejar. Essa cena será usada por Lacan para introduzir sua reflexão sobre o objeto do desejo, objeto "a". A noção de amor de transferência, evocada em inúmeros artigos, continua sendo um conceito essencial como o que move o processo analítico. Do lado do analista, nos mostra outra psicanalista que um amor se expressa no que chamou de "o gesto amoroso do analista".

Continuando sua viagem, caro leitor, você vai se deparar com a questão da passagem do tempo e de que o amor pode acabar e a separação se fazer. Vemos, pelas cartas de Ovídio, como célebres mulheres abandonadas expressam a perda de seus amados. Quando amamos ficamos mais expostos ao sofrimento. E, na exclusividade pretendida pelos parceiros, como mostra uma psicanalista, ressoa a não renúncia à ilusão de possuir a fonte do amor incondicional, porque nada seria mais terrível do que perdê-la.

Visitando, com nossos autores, os mitos do herói da Antiguidade, nos deparamos com mulheres que, como muitas das que hoje estão nos divãs, adotam na vida uma "posição heroica", tornando-se heroínas para "renunciar à renúncia" e "manter a todo custo o mundo da totalidade". Aliás, a questão da repressão ao feminino, o constante controle sobre o prazer feminino, marcou profundamente nossa cultura. Hoje, as mudanças em torno da sexualidade estão criando uma nova ética sexual e amor e sexo estão mais separados. Mas isso não impede que estejamos sempre repetindo a busca aos enigmas do amor. Como nos apaixonamos? O que faz nos sentirmos atraídos com plena convicção por outro único, singular?

Um artigo sobre as cartas de amor de Freud, escrito pelo nosso saudoso colega Fabio Herrmann e suas colaboradoras, alerta sobre as consequências da não tomada em consideração do método psicanalítico, que no caso de Freud provoca um deslocamento do método à sua pessoa. Também na seção de artigos Freud continua como personagem central quando se trata de discutir as novas traduções, diretamente do alemão, de sua obra para o português.

Passemos, em um plano mais elevado do amor, ao amor à cidade, nossa cidade tão maltratada de São Paulo. E, enfim, nessa cidade, hoje, adentraremos a intimidade/não intimidade dos relacionamentos amorosos contemporâneos, com uma liberdade maior, mas que também acarreta muita angústia e maior responsabilidade.

O papel importante da transgressão na sexualidade confere ao erotismo um grau de selvageria que tentamos conjurar e o amor nos protege do sentimento de morte, como nos mostra uma de nossas autoras por meio do exemplo de um livro de Hilda Hilst. Por outro lado, o limite tênue entre amor e perversão é abordado na análise de uma obra cinematográfica de David Lynch, artigo cujo título já nos diz muito de forma poética: "Mais azul que o veludo era a noite".

A longa história do amor, citada em vários artigos de nosso número, mostra que o peso, que ainda carregamos, de séculos de história de repressão da mulher, do feminino e do prazer, nos abre atualmente a grandes mudanças e novas formas de crises nos relacionamentos amorosos. Nós, homens e mulheres desse mundo globalizado, teremos de lidar com maiores contradições e conflitos, teremos também de nos reaproximar da dimensão poética do homem. Dimensão essa que reúne amor e poesia, como verão pelo percurso da leitura feita por uma psicanalista do poético conto de Guimarães Rosa, "Desenredo". Dimensão poética como a do grande poeta Fernando Pessoa, que aparece por meio de uma preciosa contribuição para os psicanalistas de uma estudiosa renomada desse autor, na qual propõe um aprofundamento da noção freudiana de sublimação.

No amor se entrecruzam destino e escolha, poderes objetivos e subjetivos, e, não esqueçamos, liberdade. Idealizamos o amor, mas quando ele ocorre surge muito medo, o medo da entrega, porque Amor, Eros, pode trazer um prazer tão intenso que nos aproxima da morte! Desfazer um muro, abrir uma porta, é correr um risco. O de ficar sem defesa: nu. É quando aceitamos essa fragilidade que o brilho do amor pode se irradiar. É difícil manter o calor e a intensidade do amor durante o passar do tempo e continuar dentro do sonho. Mas, convenhamos, não viver encontros amorosos seria sem dúvida um empobrecimento para a experiência de vida de um indivíduo.

A moral de todos os últimos séculos, moral do dever, abstrata e racional, que absolutamente não evitou os crimes de massa da humanidade, nos afasta do consentimento quanto à existência em nós de um ponto que precisa de ternura. O único caminho que nos resta daqui para a frente, para nós homens e mulheres do século XXI, é permitir a existência desse ponto de fragilidade em nós, de nos deixarmos levar pela ternura do amor. Enfim, o amor nos aproxima da loucura, mas também da sabedoria, como nos fala Edgar Morin:

Se a sabedoria nos incita ao desapego do mundo da vida, será que ela está sendo verdadeiramente sábia? Se aspiramos à plenitude do amor, isso significa que somos verdadeiramente loucos?
... reconhecemos o amor como o ápice mais perfeito da loucura e da sabedoria, ou seja, que no amor, sabedoria e loucura não apenas são inseparáveis, mas se interpenetram mutuamente. Reconhecemos a poesia não apenas como um modo de expressão literária, mas como um estado segundo do ser que advém da participação, do fervor, da admiração, da comunhão, da embriaguez, da exaltação e, obviamente, do amor, que contém em si todas as expressões desse estado segundo.
...
O amor faz parte da poesia da vida. A poesia faz parte do amor da vida. Amor e poesia engendram-se mutuamente e podem identificar-se um com o outro.
Se o amor expressa o ápice supremo da sabedoria e da loucura, é preciso assumir o amor! (Morin, 1997, p. 9)2.

Boas leituras nesse terreno misterioso do amor, caro leitor!

 

 

José Martins Canelas Neto
editor

 

 

1 Lacan, J. (1991). Le Séminaire, Livre VIII: Le Transfert, p.182. Paris: Éditions du Seuil.
2 Morin, E. (1997). Amor, poesia, sabedoria. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.