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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.34 no.52 São Paulo Aug. 2011

 

EM PAUTA - AMORES

 

Aprendizagem do amor

 

Love learning

 

 

Affonso Romano de Sant'Anna

Endereço para correspondência

 

 

A aprendizagem do amor é interminável.

Como muitos, tentei abordar isto em prosa e verso. Há mesmo uma crônica exatamente com este título: "Amor: o interminável aprendizado". Ali, entre outras coisas, dizia:

O amor soma desejo e paixão, é arte final.
Mas o amor às vezes coincide com a paixão, às vezes não.
Amor às vezes coincide com o desejo, às vezes não.
Amor às vezes coincide com o casamento, às vezes não.
E mais complicado ainda: amor às vezes coincide com o amor, às vezes não.

Transcendendo autorias, ultrapassando gerações e culturas, essa questão permanece.

Até o surgimento de Freud a escrita era inocente. Depois, expulsos do paraíso, tivemos de trabalhar o real e o imaginário com o suor do próprio rosto. E porque não há mais autor inocente, no livro de ensaios O canibalismo amoroso (Rocco) tentei examinar o imaginário masculino através dos séculos e de diversas obras. Mostrei como o desejo, o amor e a paixão se confundem e reverberam fantasmas e alucinações pessoais e coletivas diante da imagem feminina.

Separei para este número de ide alguns poemas que tratam de aspectos vários do amor, do desejo e da paixão. Guardadas as diferenças entre esses termos e as superposições de sentido que ocorrem, lembro algo pouco conhecido: a raiz da palavra amor é egípcia, e não latina. Também nada tem a ver com o ama grego, embora este signifique "juntos". Os gregos também falam de "eros", mas a raiz dessa palavra indica "atividade".

O estudo do vocabulário egípcio traz a raiz MR, MRJ. Parece estranho. Os egípcios não usavam vogal. Mas eles, embora escrevessem assim, na hora de pronunciar, a vogal aparecia. E o fato é que MR se pronunciava "amer", "amor". Já que era escrita com hieróglifos, a palavra MR era representada por uma espécie de pá ou cavadeira de camponês abrindo a terra. Há aí um sentido agrário de fecundação cósmica. Amor, então, era (e é) como um ato de cultivar, semear a terra.

Não parece, portanto, que amor seja um ato aleatório. Uma semente jogada ao acaso pode até brotar. É forte a vontade de vida e fértil o imaginário de cada um. Mas se não for cuidada, perece. Por isto, o ato de amar, mais produtivo e fecundante, implica a ação, o investimento, o semear cavando e movendo a terra. E, para grafar a palavra "amor", os egípcios usavam seu alfabeto nobre e especial, e não o comum e popular, porque sabiam também que com o amor há que tomar cuidado, na grafia e em semeá-lo.

 

Ruptura — "Separação"

Grande parte da literatura amorosa trata da dor causada pela perda da pessoa amada e a consequente perda da própria identidade. Aí configura-se a ruptura entre o eu e o mundo. Descreve-se o esgotamento dramático da relação amorosa.

Separação

Desmontar a casa
e o amor. Despregar
os sentimentos
das paredes e lençóis.
Recolher as cortinas
após a tempestade
das conversas.

O amor não resistiu
às balas, pragas, flores
e corpos de intermeio.

Empilhar livros, quadros,
discos e remorsos.
Esperar o infernal
juízo final do desamor.

Vizinhos se assustam de manhã
ante os destroços junto à porta:
– pareciam se amar tanto!

Houve um tempo:
uma casa de campo,
fotos em Veneza,

um tempo em que sorridente
o amor aglutinava festas e jantares.

Amou-se um certo modo de despir-se,
de pentear-se.
Amou-se um sorriso e um certo
modo de botar a mesa. Amou-se
um certo modo de amar.

No entanto, o amor bate em retirada
com suas roupas amassadas, tropas de insultos
malas desesperadas, soluços embargados.

Faltou amor no amor?
Gastou-se o amor no amor?
Fartou-se o amor?

No quarto dos filhos
outra derrota à vista:
bonecos e brinquedos pendem
numa colagem de afetos natimortos.

O amor ruiu e tem pressa de ir embora
envergonhado.

Erguerá outra casa, o amor?
Escolherá objetos, morará na praia?
Viajará na neve e na neblina?

Tonto, perplexo, sem rumo
um corpo sai porta afora
com pedaços de passado na cabeça
e um impreciso futuro.
No peito o coração pesa
mais que uma mala de chumbo.

 

Harmonia — "O amor, a casa e os objetos"

Já se disse que a felicidade não produz obras de arte. São realmente raras, sobretudo na literatura, as obras que louvam a harmonia amorosa valorizando a continuidade e a paz.

No amor o eu e o mundo se con/fundem.

O amor, a casa e os objetos

O amor mantém ligados os objetos.
Cada um na sua luz,
no seu restrito ou volumoso
– modo de ser,

O amor, e só o amor, arquiteta
paredes duplas, vigas mestras, telhas vãs,
condutos e portas, justapondo
à luz interna o sol exterior.

Quando há amor, os objetos
tornam-se suaves. Não há asperezas
em suas formas e frases.

Como um gato, o corpo
passeia entre arestas e não se fere.
Nada lhe é hostil.
Nada é obstáculo.
Nada está perdido
no trânsito da casa.

É como se o corpo, além de frutas e flores,
mesmo parado, criasse asas.

Daí uma certa displicência dos objetos
na mesa
na estante
no chão
como corpos derramados nos tapetes
ou cama,
que esta é a forma de estar
quando se ama.
O que não for isto, não é amor.

É ordem exterior às coisas.
Pois quando amamos, os objetos nos olham
sem inveja. Antes, secretas glórias afloram de suas formas
como o corpo aflora os lábios,
e a poltrona, o pelo de sua fauna, aflora.

As casas têm raízes
quando há amor.
Até ratos, baratas e cavalos,
além de plantas e pássaros
antenam vibrações nos subterrâneos
da casa de quem ama
.

O corpo trescala aroma após o banho,
almíscar flui dos sexos, alfazema
banha os gestos. Enrolados em suas toalhas
os corpos como as ondas
se desmancham em orgasmos no lençol da tarde.

Os objetos entendem os homens, quando há amor.
Vão às festas e guerras, e se acaso
suicidam caindo das prateleiras
são capazes de ostentar sua vida
mesmo numa natureza-morta.

O amor não submete, o amor permeia
cada coisa em seu lugar e, como o Sol,
passeia iluminando as espirais de ouro e prata
que decoram nossos corpos.

Não há limite entre a casa e o mundo, quando há amor.
Os amantes invadem tudo a toda hora
e a paisagem do mundo à paisagem da casa
se incorpora.

 

Amor imaginário — "Arte final"

Grandes artistas que tiveram uma vida amorosa variada e múltipla surgem aos olhos dos leitores como uma espécie de amantes ideais. Não é bem assim. A competência em escrever, pintar, musicar grandes paixões não é simétrica à prática amorosa.

Arte final

Não basta um grande amor
para fazer poemas.
E o amor dos artistas, não se enganem,
não é mais belo
que o amor da gente.

O grande amante é aquele que silente
se aplica a escrever com o corpo
o que seu corpo deseja e sente.

Uma coisa é a letra,
e outra o ato,
quem toma uma por outra
confunde e mente.

 

Presença/ausência: a falta — "Intervalo amoroso"

A falta e as tentativas (estéticas e eróticas) de preenchimento do vazio.

Intervalo amoroso

O que fazer entre um orgasmo e outro,
Quando se abre um intervalo
Sem teu corpo?

Onde estou, quando não estou
No teu gozo incluído?
Sou todo exílio
?

Que imperfeita forma de ser é essa
Quando de ti sou apartado?

Que neutra forma toco
quando não toco teus seios, coxas
e não recolho o sopro da vida de tua boca?

Que fazer entre um poema e outro
olhando a cama, a folha fria?

O poema, avulso gesto de amor,
é vão recobrimento de espaços.
O poema é dúbia forma de enlace,
substitui o pênis
pelo lápis
– e é lapso.

 

Incompletude dos casais — "Antropologia cultural"

Os amantes sempre se acasalaram e sempre tiveram de lidar com a completude relativa.

Há um casal moderno? O que diferencia o homem da mulher e vice-versa? O casal – uma solução/ problema intemporal.

Antropologia sexual

Pela Natureza o homem é um ser polígamo.
(Há exceções. Poucas.)
Pela Natureza a mulher é ser monógamo.
(Há exceções. Muitas.)

Há quem discorde.
De qualquer maneira
a biologia comportamental dá provas.

Pela Cultura o homem tenta ser monógamo.
(Tenta.)
Pela Cultura a mulher tenta ser polígama.
(Tenta.)

Nisto já se vão muitos mil anos.

Convenhamos,
a passagem da Natureza à Cultura
e a tentativa de se chegar a um acordo
têm sido
um notável esforço do casal.

 

Narciso diante do tempo — "Rugas"

É comum encontrar poemas de amor à pessoa amada quando jovem ou idealizada. O que narciso tem a dizer quando as rugas surgem na (sua) face alheia?

Rugas

Estou amando tuas rugas, mulher,
Algumas vi surgir, outras aprofundei.

Olho tuas rugas.
Compartilho-as, narciso exposto
no teu rosto.

Ponho os óculos
para melhor ver na tua pele
as minhas/tuas marcas.

Sei que também me lês
quando nas manhãs percebes
em minha face o estranho texto
que restou do sonho.

O que gastou, somou.
Essas rugas são sulcos
onde aramos a messe do possível amor.

 

Amor na velhice — "Velhice erótica"

Simone de Beauvoir, estudando a velhice, já assinalava que os jovens tendem a achar que os mais velhos são assexuados, que a eroticidade é um privilegio da juventude.

Velhice erótica

Estou vivendo a glória de meu sexo
a dois passos do crepúsculo.

Deus não se escandaliza com isto.

O júbilo maduro da carne
me enternece.
Envelheço, sim. E
(ocultamente)
resplandeço.

 

Referências

Sant'Anna, A. R. de. (2003). Amor, o interminável aprendizado. In A. R. de Sant'Anna. Melhores crônicas de Affonso Romano de Sant'Anna. São Paulo: Global.         [ Links ]

Sant'Anna, A. R. de. (2003). Antropologia sexual. In A. R. de Sant'Anna. Poesia reunida (Vol. 2, p. 236). Porto Alegre: L&PM.         [ Links ]

Sant'Anna, A. R. de. (2003). Arte final. In A. R. de Sant'Anna. Poesia reunida (Vol. 1, p. 330). Porto Alegre: L&PM.         [ Links ]

Sant'Anna, A. R. de. (2003). Intervalo amoroso. In A. R. de Sant'Anna. Poesia reunida (Vol. 2, p. 200). Porto Alegre: L&PM.         [ Links ]

Sant'Anna, A. R. de. (2003). O amor, a casa e os objetos. In A. R. de Sant'Anna. Poesia reunida (Vol. 2, p. 67). Porto Alegre: L&PM.         [ Links ]

Sant'Anna, A. R. de. (2003). Rugas. In A. R. de Sant'Anna. Poesia reunida (Vol. 2, p. 200). Porto Alegre: L&PM.         [ Links ]

Sant'Anna, A. R. de. (2003). Separação. In A. R. de Sant'Anna. Poesia reunida (Vol. 2, p. 191). Porto Alegre: L&PM.         [ Links ]

Sant'Anna, A. R. de. (2003). Velhice erótica. In A. R. de Sant'Anna. Poesia reunida (Vol. 2, p. 235). Porto Alegre: L&PM.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Affonso Romano de Sant'Anna
Rua Nascimento Silva, 7/1504
22421-001 - Rio de Janeiro - RJ
tel.: 21 2523-5184
E-mail: santanna@novanet.com.br

Recebido: 18/04/2011
Aceito: 04/05/2011