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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.34 no.52 São Paulo ago. 2011

 

EM PAUTA - AMORES

 

Do amor à cidade

 

About the love for the city

 

 

Jorge Ricca Junior*

Departamento de Patrimônio Histórico da Prefeitura de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O nome amor abriga sentimentos vários. Um deles, o amor às cidades. O texto aborda essa relação do ponto de vista da ação, do pensamento e do sentimento de três homens - Le Corbusier, Claude Lévi-Strauss e Mário de Andrade – e uma cidade - São Paulo. Cada um deles amou essa cidade a seu modo, mas poderiam amar todas as outras.

Palavras-chave: Amor, Cidade.


ABSTRACT

The term love is comprised of many different feelings. One of them is the love for the cities. The text approaches this relation from the point of view of the action, the thinking and the feeling of three men - Le Corbusier, Claude Lévi-Strauss e Mário de Andrade - and one city - São Paulo. Each one of them has loved this city in his own way, although they could have loved all the cities.

Keywords: Love, City.


 

 

A palavra amor é velha; o sentimento mais ainda, portanto. Desgastada pelo uso, é o único signo que temos para designar os vários sentimentos abrigados sob seu guarda-chuva. A imprecisão da palavra amor reflete precisamente a nossa incapacidade de defini-lo.

Admirar o mestre que reflete em nós sua humanidade é uma forma de amor. Quando tocados por ele, somos tomados de alegria e esperança. Amar meus pais, que inventaram uma vida possível para mim, é outra intensa forma do amor, como o amor à mulher e ao filho, em quem prolongo minha vida transitória.

Amar uma ideia é uma elevada forma do sentimento. Quantas empolgaram gerações e, transformadas em ação, alteraram a máquina do mundo! Ao marxismo, muitos dedicaram a vida: maneira de amar a humanidade em geral, como atesta o André Malraux d'A condição humana. Já a freira recolhida ao Convento da Luz, em São Paulo, tem amor religioso, que denomina , outra pobre palavra imprecisa.

O retrato pendurado na parede quer conservar em nós o amor por seres ou lugares, como uma Itabira que dói. Na memória carregada de afeto, o amor pode ressurgir repentinamente. É um combustível poderoso, o amor; sua energia move pessoas e famílias, ligando-as; se fenece, elas podem murchar, como rosas pálidas. Os elos se soltam, algo se apaga; às vezes de repente, às vezes lentamente.

O amor atravessa barreiras do tempo e do espaço. Sou capaz de amar e compreender a humanidade de Dom Quixote, de reviver sentimentos medievais, mas atuais porque humanos. Amar a Capela Sistina pintada por Michelangelo: o teto, cheio de luz e vitalidade juvenil; o altar do Juízo Final, sombrio e carregado do pessimismo da velhice. A coragem de Charles Chaplin, a exibir-se na tela como o garoto arrancado ao pai/mãe, ou discursando contra o ditador em plena guerra. Somos capazes de amar Hans Castorp, n'A montanha mágica de Thomas Mann, ao vê-lo desaparecer na fumaça das bombas da Primeira Guerra Mundial, e sentir que toda uma civilização adentrava a névoa com ele.

Uma das mais elevadas formas do amor é a praticada pelos que se dedicam às coisas coletivas, como as cidades. Em São Paulo, no Largo da Memória, existiu um obelisco com uma inscrição gravada na pedra, em 1817, pelo seu construtor: "Ao zelo do bem público". O obelisco marcava o início/fim da Estrada dos Pinheiros (hoje Rua da Consolação), onde homens e animais se abasteciam de água para a longa jornada para o interior.

A paixão faz das pedras inertes um drama.
Le Corbusier

 

Em 1929, Charles-Édouard Jeanneret-Gris, vulgo Le Corbusier (1887-1965), chegou a São Paulo a convite de Paulo Prado, atraído pela perspectiva de projetar a cidade de Planaltina, no interior do país, que três décadas depois viria a ser Brasília. Na sua coluna no Diário Nacional, Mário de Andrade escreveu que a "presença de Le Corbusier na América do Sul nos honra". No ano anterior, Corbusier e mais 24 arquitetos europeus fundaram o Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, CIAM, base da "arquitetura racionalista". Corbusier, segundo Giulio Argan, foi um grande artista, um magnífico agitador cultural, uma inesgotável fonte de ideias. Sua obra de arquiteto e escritor transformou o urbanismo em um dos grandes problemas da cultura do século XX.

No gabinete do prefeito, Corbusier examina o mapa da cidade. Da janela, observa o Parque do Anhangabaú em pleno esplendor, atravessado pelo Viaduto do Chá ligando as duas colinas. No avião, vê a topografia da cidade: colinas ao lado de colinas, os vales entre as colinas, as casas nos vales e nas colinas. Recomenda ao piloto: "Voe em direção ao centro; gostaria de ver o perfil da cidade, onde ela se levanta, onde superpõe seus andares por efeito do crescimento irresistível dos negócios". De carro, faz experiências: mede o tempo que leva para ir de um ponto a outro pelos vales e encostas. Observa a topografia generalizada de altos e baixos, "o sufoco de uma rede de ruas que tenta inutilmente caminhar em linha reta" (Santos et al., 1987, p. 92).

Subitamente, em alguns anos, São Paulo cresceu vertiginosamente, o diâmetro da cidade se estendeu por 45 quilômetros. No centro da cidade não se circulava mais, porque os escritórios invadiram as casas, porque demoliram as casas para construir prédios, até mesmo um arranha-céu, o Martinelli. Vendo pendurada na parede do prefeito a imagem de ruas embaralhadas, e medindo o enorme diâmetro da cidade, Corbusier exclama: "Vocês têm uma crise de circulação; não podem ligar rapidamente uma cidade assim construindo ruelas neste dédalo" (Santos et al., 1987, p. 92).

Ele expõe então sua proposta para a cidade: construir, de colina a colina, duas avenidas retas de 45 quilômetros de extensão, que se cruzam no centro e atravessam toda a cidade. "Estas avenidas que proponho são viadutos gigantescos construídos sobre edifícios que serão escritórios no centro e habitações na periferia. O volume desses escritórios e habitações será imenso, de acordo com o espírito do tempo; trata-se de uma magnífica valorização" (Santos et al., 1987, p. 93).

Os automóveis atravessarão a cidade extensa, "sobrerodando- a". Do nível superior das avenidas, descerão até as ruas. Os fundos dos vales não serão construídos, mas deixados livres para a vegetação, parques para lazer e contemplação. Ao invés de arranha-céus, "arranha-terras" sustentando as duas extensas avenidas. O solo urbano é um parque contínuo em que pedestres circulam à vontade em meio às "alegrias essenciais": sol, espaço, vegetação. "Que aspecto magnífico tomaria o local! Que gigantescas pontes do Gard! O lirismo tem aí lugar. Há algo mais elegante que a linha pura do viaduto em meio ao sítio movimentado, e mais variado que as subestruturas enterrando-se nos vales ao encontro do solo?" (Santos et al., 1987, p. 94).

Transportado por Saint-Exupéry, Corbusier sobrevoou o Rio de Janeiro. Vislumbrou uma cidade linear natural, uma estreita faixa ao longo de sua corniche, o mar de um lado, as rochas do outro. Esboçou uma extensão do Rio na forma de uma via costeira, cem metros acima do chão, e, debaixo dela, prédios de quinze andares. Certo de que o desenvolvimento da cidade acabaria com o esplendor panorâmico e criaria problemas insolúveis de circulação e conforto das habitações, concebeu uma ordenação arquitetônica monumental capaz de absorver as futuras inversões imobiliárias e viárias. No Rio, Corbusier subiu aos morros das favelas. "Do alto das favelas vê-se sempre o mar, a baía, os portos, ilhas e montanhas ... o vento reina útil ... o olho do homem que vê vastos horizontes é mais altivo e digno; esta é uma reflexão de urbanista" (Santos et al., 1987, p. 88).

Em São Paulo, Corbusier deixou alguns croquis; um deles, que pertenceu a Tarsila do Amaral, mostra seu projeto para a cidade de 1929, em um momento crucial da sua construção: o edifício-viaduto, as pistas de rodagem em cima, os parques nos vales, as vistas desimpedidas. O projeto foi recebido com grande escândalo, combatido e ridicularizado pelos técnicos da prefeitura e da Escola Politécnica, que fizeram exatamente o oposto: nos fundos de vale, onde correm os córregos, em vez de parques, avenidas, como a Nove de Julho, a Vinte e Três de Maio e as Marginais, conduzindo a cidade à crise de circulação atual.

A proposta de Corbusier para São Paulo foi um ato de amor à cidade e seus habitantes. Livre das paixões políticas locais, sugeriu um caminho para a construção da cidade. A visão audaz do estrangeiro enxergou o óbvio, mas a cidade optou por abrir avenidas no labirinto em que se transformou. Na sua linguagem, o desenho de Corbusier expressava um desejo amoroso, voltado para os homens. Os engenheiros de São Paulo optaram pelas máquinas e para elas abriram avenidas sobre córregos.

Na sua coluna, Mário de Andrade anteviu a inutilidade da presença de Corbusier na cidade: "Como todos os entresselvagens, estamos ainda sob a escravidão ilusionista das palavras, e desservimos um valor tão determinado como Le Corbusier lhe pedindo palavras, palavras, palavras".

O passado só se deixa fixar como imagem,
que relampeja irreversivelmente
no momento em que é reconhecida.

Walter Benjamin

 

No prefácio a Saudades de São Paulo, o antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009) explica que usou o termo saudade não como lamento, pois sabia que após tantos anos não mais reencontraria a cidade que conheceu em 1935. Ele evocava o aperto no coração que sentimos quando, "ao rever certos lugares, somos penetrados pela evidência de que não há nada no mundo de permanente nem estável em que possamos nos apoiar" (Lévi- -Strauss, 1996, p. 7).

Ele chegou a São Paulo com 27 anos de idade, na companhia de outros professores de liceu, para ajudar a criar a Universidade de São Paulo. Em torno de Mário de Andrade, no Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, agrupavam-se esses jovens.

Da janela do Hotel Esplanada, no Anhangabaú, Lévi-Strauss fotografou a construção do novo Viaduto do Chá. Novos arranha- céus eram edificados na cidade. Da sua casa na Rua Cincinato Braga, nos altos da Avenida Paulista, ele descia a pé a Avenida Brigadeiro Luís Antônio, chegava ao Vale do Anhangabaú atravessado pelo Viaduto do Chá, que une os dois centros da cidade, o antigo e o novo. Pressentindo que essa cidade desapareceria em breve, fotografou-a. Desceu o Vale do Itororó, curso superior do Anhangabaú, registrando de lá a silhueta da cidade, dominada pelo Prédio Martinelli, que para ele simbolizava a ambição dos paulistanos de que São Paulo se tornasse Chicago. As fotos revelam a atmosfera rural de hortas e restos de mata que persistiram até a abertura da Avenida Vinte e Três de Maio nos anos 1960. De lá, descortinou uma cidade em plena desordem: "Eu perambulava com frequência por essa região, fascinado pelos contrastes entre construções muito modernas, avenidas provincianas, colinas quase rústicas e uma parte da cidade que conservava um aspecto de aldeia" (Lévi-Strauss, 1996, p. 49).

Lévi-Strauss conheceu e viveu em uma São Paulo em plena transição para uma cidade vertical. O Parque do Anhangabaú, que ele fotografou nos seus instantes finais, em breve se converteria em uma grande avenida expressa, simbolizando ali toda a transformação cultural: a cidade calma, pedestre, cedia lugar à agitação do automóvel. A velocidade das máquinas se incorporava à vida urbana, alterando todas as relações e percepções sobre o espaço-tempo.

Já se sugeriu que a revelação do estruturalismo veio a Lévi- -Strauss durante o contato com São Paulo e, depois, Nova York. O que é verdade, segundo ele, "é que o estruturalismo explica meu interesse pelas cidades e que ele me fez vê-las sob um ângulo que, para simplificar, pode chamar-se morfológico" (Lévi-Strauss, 1996, p. 13).

Com Durkheim e Mauss ele aprendeu a traçar a diferença entre o espaço do geômetra, contínuo e homogêneo, e o espaço social, em que, consciente ou inconscientemente, cada grupo humano imprime uma estrutura, no qual distingue regiões e orientações dotadas de qualidades próprias que refletem o sistema de valores do grupo e sua organização.

Em São Paulo, ao interesse de nossas pesquisas acrescia-se o fato da geografia local impor coerções de outro tipo. Poucas cidades foram construídas em terreno tão acidentado ou, mais exatamente, em terreno que as obras públicas, no momento em que lá estava, não haviam ainda modificado substancialmente. Num olhar de relance, percebia-se que a cidade se estendia sobre as elevações e encostas de um planalto escavado por vários cursos d'água. Donde um perfil inverso ao do Rio de Janeiro, que explica que nesta as habitações mais pobres se situassem nos morros desfavorecidos pela falta d'água, enquanto em São Paulo se situavam nos baixios, pela razão inversa de que os riachos engrossados pelas chuvas constituíam ali um sério inconveniente. As coerções geográficas e as coerções sociológicas se combinavam, ora adicionando e ora opondo suas forças para engendrar situações complexas que nos dedicávamos a deslindar. (Lévi-Strauss, 1996, pp. 14-15)

Em 1936, o prefeito Fabio Prado começou a construir o novo Viaduto do Chá, ao lado do antigo viaduto de ferro. Atravessando os cem metros do vale que separa duas colinas, a construção aproveita o desnível de dez metros para construir edifícios nas duas extremidades. Esses edifícios de dois andares contêm salões de usos variados: mercado de flores, espera de ônibus, exposições de pintura, garagem pública, restaurante, sanitários. De um lado, uma galeria une a Praça do Patriarca e o vale através de escadarias, entre salões de mármore e esculturas, como as duas Graças, de Victor Brecheret. Do outro, em meio à escadaria que une o vale à Praça Ramos de Azevedo, a prefeitura instalou suas repartições. O novo viaduto realizava em escala menor a ideia do edifício-viaduto de Corbusier, conscientemente ou não.

Na mesma época inaugura-se a Avenida Nove de Julho, construída sobre o córrego Saracura; anos depois a Vinte e Três de Maio, sobre o Itororó. As duas avenidas convergem para o Vale do Anhangabaú, alçado à condição de core da cidade nos anos 1910, após a construção do parque, e com as Avenidas Prestes Maia e Tiradentes completam o que os técnicos municipais chamavam de "Sistema Y". O belo e elegante Parque do Anhangabaú, espécie de parque central da cidade, foi arrasado pelo corredor rodoviário de dimensão metropolitana, plantado no solo. Exatamente o oposto do que sugeriu Corbusier em 1929.

São Paulo caminhava na contramão da tendência mundial. O tema do VIII CIAM, realizado em Londres em 1951, foi "O coração da cidade". Certos lugares têm grande apelo emocional e são escolhidos espontaneamente pelos cidadãos para expressar sua identidade cívica, como a Avenida Champs-Élysées, em Paris, ou o Rockefeller Center, em Nova York. O presidente do Congresso, Sigfried Giedion, observou o processo humanizador nas cidades mundiais, "a rebelião do espírito humano contra a opressão da mecanização e da burocracia". Para Giedion, essa rebelião adotava a forma da evasão e da desconfiança política, mas ele via um esforço de restabelecer a relação entre indivíduo e comunidade, humanizar de novo as cidades. Tratava-se de "revigorar o core da cidade, onde os homens possam mover-se livremente sob o céu, sem a perturbação das luzes verdes e vermelhas dos semáforos". O problema não consistia em projetar esplêndidos centros cívicos, mas "criar lugares frequentados continuamente, onde os cidadãos possam dar forma e expressão a seus mais íntimos sentimentos" (Giedion, 1951, pp. 159-60).

A metáfora do coração para designar o centro das diferentes cidades parecia válida em meados do século passado, e com mais razão em São Paulo: os fluxos diários da circulação, da periferia ao centro, do centro à periferia, pelas artérias principais do sistema viário, convergem no centro, como na sístole- -diástole do coração. Para esse movimento muscular, os técnicos do planejamento urbano acharam saídas: os viadutos, como pontes de safena para desobstruir os fluxos congestionados; o alargamento de ruas em avenidas; a destruição de partes, inclusive históricas, do tecido da cidade, na forma do arrasamento de quarteirões inteiros para abertura de novas artérias. Mas, para a revitalização do centro, não. Como revitalizar um tecido irremediavelmente perdido pela destruição física do patrimônio histórico, e o consequente abandono das funções? Como atrair de novo escritórios, habitações, consultórios, lojas, cinemas, teatros, restaurantes?

Do mesmo lugar que nasce a vontade de construir as cidades mais belas pode surgir a vontade de destruí-las. Uma destruição paciente, como a do automóvel; ou súbita, como a da bomba que em um segundo apagou Hiroshima e destruiu todo o tecido de relações humanas. As máquinas que construímos são projeções do nosso mundo interior. O projeto de uma cidade e o projeto de uma bomba são desenhos complexos que nascem da mente humana. Para que serve o amor e o conhecimento na cidade real? "Dentro do carro, sobre o trevo, a cem por hora, meu amor, só tens agora, os carinhos do motor", pensou o poeta.

O Congresso de Londres concluiu ser urgente a intervenção nos centros das cidades, para livrá-los do abandono a que estavam submetidos após as horas de trabalho. Em um momento em que a televisão começava a ser objeto de consumo popular, as cidades corriam o risco de ser frequentadas somente durante o dia. A expansão periférica causada pela massificação do uso do automóvel pelos indivíduos esvaziava o coração da cidade, seu lugar vital.

Cidade e televisão parecem termos em contradição. O anúncio atual da cerveja, por exemplo, mostra o salão do bar repleto de homens e mulheres comungando um ideal. Em volta da mesa, no ambiente festivo, a conversa parece girar em torno do prazer da degustação. Sobre o que conversam? A alegria erótica que emana do salão contrasta com a cidade real, lá fora: escuridão, sujeira, calçadas quebradas, ameaça da violência. O cidadão confinado na sala de casa assiste à distância a alegria contagiante que o salão do bar irradia durante sessenta segundos. Esse bar estilizado, que empresta aos bares do passado a sua forma, parece funcionar como o único espaço público de nossa sociedade. A sensação de um "presente eterno" é inevitável.

São Paulo! ... Galicismo a berrar nos desertos da América!
Mário de Andrade

 

"Saio do hotel com quatro olhos,/Dois do presente,/ Dois do passado./ Anhangabaú que já não é dos suicídios passionais!/ O Hotel Esplanada virou catacumba./ Enfim a rua Direita!/ A minha rua Direita:/ Que saudades tinha dela!" (Bandeira, 1993, p. 237). Assim Manuel Bandeira se recorda da São Paulo onde viveu, jovem estudante da Escola Politécnica.

A memória tem um valor decisivo: definir a vontade de ação. Ela é o elo das experiências acumuladas pela cadeia de gerações, um lugar em que o indivíduo encontra a sociedade, uma fonte de sentidos afetivos e cognitivos. Não é possível amar sem lembrar. Nada a ver com nostalgia, sem memória não pode haver projeto, futuro: tradição significa entrega, transmissão. Assim, a memória individual, concretizada nos espaços históricos, carregados de tempo, adquire uma dimensão política inevitável. Para Charles Baudelaire, o mundo do século XIX perdera a aura e o encantamento; para nós, parece ter perdido a capacidade de lembrar. Para Sevcenko, "sem a ponte da memória, o futuro se separou do passado e o individual se divorciou do coletivo" (Sevcenko, 2003).

Giulio Argan, prefeito de Roma, relacionou a crise da cidade à crise da arte. Para ele, a desagregação dos mármores das esculturas e palácios romanos é uma alegoria da incompatibilidade do que resta da cidade com a vida da metrópole e a consciência angustiante de presenciar uma catástrofe cultural inaudita. As obras de arte, em uma sociedade cuja estrutura cultural não é mais a história, são fragmentos de um passado que não se relaciona com o presente, "quase ilhas de um continente submerso". Desfeitos os nexos que os relacionavam ao contexto, reduzem-se a textos. A sua guarda em museus, embora dolorosa, é condição sine qua non da sua sobrevivência.

O valor do indivíduo foi sendo reduzido, até ser eliminado. Eliminado o valor do ego, elimina-se o valor da história, de que o ego é protagonista ... Colocada a existência como oscilação contínua entre o sub e o superconsciente, a realidade se dá como sub ou supernatureza: oscilação angustiante entre o ínfimo e o sublime. A realidade não mais é dada pela escala humana – na medida em que pode ser concebida e compreendida pelo homem – mas apenas dominada ou suportada, objeto de sucesso ou fracasso; portanto, na dimensão do infinitamente grande e do infinitamente pequeno. (Argan, 1998, pp. 8-9)

Volto ao hotel pelo Anhangabaú.
... Onde ... o espanto? a loucura? o desejo?

Manuel Bandeira

 

Poetas como Mário de Andrade (1893-1945) e Oswald de Andrade (1890-1954) saíam às ruas para conhecer e viver a cidade. Estimulados pelo surto econômico que a movimentava, mapearam São Paulo em uma perspectiva ácida e otimista. Mas, de repente, tudo cessou. As gerações seguintes não alcançaram representar a cidade como objeto poético. Não que o amor pela cidade tivesse acabado; é que a própria cidade apagava as suas marcas, tornava-se ilegível. Paisagem em permanente transformação, e em geral administrada por gente sem respeito ao passado, São Paulo "perdeu o fio da meada" (Massi, 1999). Mas é preciso e necessário falar da nossa cidade, elevá-la à condição de personagem, como fizeram Shakespeare com Verona, Thomas Mann com Veneza, Joyce com Dublin, João Cabral com Recife.

Na Lira paulistana, seu último livro de poemas, Mário de Andrade canta seu amor por São Paulo. Na Meditação sobre o Tietê, ele pergunta ao rio: "Água do meu Tietê,/ Onde me queres levar?/ - Rio que entras pela terra/ E que me afastas do mar...". Na casa da Rua Lopes Chaves, no final de 1944, doente, Mário prossegue, dirigindo-se sempre ao rio: "... afogando de apreensões/ As altas torres do meu coração exausto. De repente,/O ólio das águas recolhe em cheio luzes trêmulas,/ É um susto. E num momento o rio/ Esplende em luzes inumeráveis, lares, palácios e ruas,/ Ruas, ruas ...".

Um rio peculiar, que ao invés de desaguar na amplidão do mar, adentra para o interior do território paulista. "Meu rio, meu Tietê, onde me levas?/ Sarcástico rio que contradizes o curso das águas/E te afastas do mar e te adentras na terra dos homens,/ Onde me queres levar?...". A imagem do rio caminhando para dentro da terra humana persegue o poeta: "... por que/ Me impedes a fama das tempestades do Atlântico/ E os lindos versos que falam em partir e nunca mais voltar?/ Rio que fazes terra, húmus da terra, bicho da terra,/ Me induzindo com a tua insistência turrona paulista/ Para as tempestades humanas da vida, rio, meu rio!...".

Ele pressente o que estava por vir, na cidade que ajudou a transformar: "... E as minhas vozes,/ Perdidas do seu tenor, rosnam pesadas e oliosas,/ Varando terra adentro no espanto dos mil futuros,/ À espera angustiada do ponto. Não do meu ponto final!". Na cidade que mais crescia na América do Sul, expandindo- se sem cessar por todos os cantos: "... Não tem formas nessa noite, e o rio/ Recolhe mais esta luz, vibra, reflete, se aclara, refulge,/ E me larga desarmado nos transes da enorme cidade".

Na casa da Lopes Chaves, milagrosamente ainda intacta, bem perto do rio, Mário continua seu canto final: "Escuto o rio. Assunto estes balouços em que o rio/ Murmura num banzeiro. E contemplo/ Como apenas se movimenta escravizada a torrente,/ E rola a multidão. Cada onda que abrolha/ E se mistura no rolar fatigado é uma dor ...".

Caminhando para o fim do poema, Mário confessa-se ao rio e à cidade: "... E me estilhaço nas fagulhas eternamente esquecidas,/ E me salvo no eternamente esquecido fogo de amor.../ Eu estalo de amor e sou só amor arrebatado/ Ao fogo irrefletido do amor". Em completa identidade com a sua cidade, no momento em que ela caminhava celeremente para ser metrópole, ele prossegue: "Eu me sinto grimpado no arco da Ponte das Bandeiras,/ Bardo mestiço, e o meu verso vence a corda/ Da caninana sagrada, e afina com os ventos dos ares ...".

"É noite! é noite!... E tudo é noite! E os meus olhos são noite!/ Eu não enxergo siquer as barcaças na noite./ Só a enorme cidade. E a cidade me chama e pulveriza,/ E me disfarça numa queixa flébil e comedida,/ ...". Concluído treze dias antes da sua morte, em fevereiro de 1945, Mário redige o verso final: "... e tudo é noite. Sob o arco admirável/ Da Ponte das Bandeiras, morta, dissoluta, fraca,/ Uma lágrima apenas, uma lágrima,/ Eu sigo alga escusa nas águas do meu Tietê".

Em outro poema, o poeta pede que enterrem as partes do seu corpo pelos diferentes bairros de São Paulo: os pés na Rua Aurora, onde nasceu; a cabeça, na Lopes Chaves, onde viveu por trinta anos. "No pátio do Colégio afundem/ O meu coração paulistano." A língua, no Ipiranga; os olhos, no Jaraguá, "O joelho na Universidade"... Como um mártir, um Tiradentes, o corpo do poeta é o poema dissolvido pelo território da cidade, inseminando seu tecido. Não pode haver maior prova de amor por uma cidade. Amar é um verbo intransitivo.

Nas Variações sobre o nome de Mário de Andrade (Bandeira, 1993, pp. 298-300), Manuel Bandeira evoca a São Paulo onde estudou engenharia na Escola Politécnica, no bairro da Luz, no começo do século passado. "Havia sim a Avenida Tiradentes, espaçada ao sol como um feriado nacional,/ E o edifício do Liceu implorando baixinho que o deixassem em tijolo aparente./ (Lá dentro, eu desenhando a bico de pena motivos arquitetônicos do Renascimento.../As minhas arquiteturas corroídas!...)". Como será São Paulo?, pergunta Bandeira, situado no presente, de olhos e coração no passado. E responde: Mário de Andrade, sentindo a identificação completa entre um homem e uma cidade. "Mário ... As neblinas paulistas condensaram-se em ácidos sarcásticos/ E queimaram a epiderme azul dos aços virginais".

Manuel Bandeira inventou Pasárgada, uma cidade bela e amorosa, talvez porque já não reconhecesse mais a sua. Nova em folha, ela tinha o frescor e o encanto do Recife da sua infância.

Não te doas do meu silêncio:
Estou cansado de todas as palavras.
Não sabes que te amo?
Pousa a mão na minha testa:
Captarás numa palpitação inefável
O sentido da única palavra essencial
- Amor.

 

Referências

Andrade, M. (2003). Melhores poemas. Seleção de G. M. Souza. São Paulo: Global.         [ Links ]

Argan, G. C. (1998). História da arte como história da cidade (P. Cabra, trad.). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Bandeira, M. (1993). Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

Giedion, S. (1951). El corazón de la ciudad: resumen. VIII CIAM, Londres.         [ Links ]

Le Corbusier. (2000). Por uma arquitetura. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Lévi-Strauss, C. (1996). Saudades de São Paulo (P. Neves, trad.). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Massi, A. (1999). Reconstruindo a lira paulistana. Urbs, ano II, n. 13.         [ Links ]

Santos, C. R. dos, Silva Pereira, M. C. da, Silva Pereira, R. V. da, Silva, V. C. da. (1987). Le Corbusier e o Brasil. São Paulo: Tessela/Projeto.         [ Links ]

Sevcenko, N. "O ocaso da memória". Revista Carta Capital, 2 de julho de 2003.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Jorge Ricca Junior
Rua Corinto, 739/B124
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tel.: 11 9551-0894 | 11 3721-1702
E-mail: riccajunior@yahoo.com.br

Recebido: 18/04/2011
Aceito: 04/05/2011

 

 

* Arquiteto do Departamento de Patrimônio Histórico da Prefeitura de São Paulo.