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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.34 no.52 São Paulo ago. 2011

 

EM PAUTA - AMORES

 

O sufismo e o amor: uma releitura do amor em Freud

 

Sufism and love: a new approach to Freud's conception of love

 

 

Marcos Fleury*

Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica de São Paulo (SBPA)
International Association for Analytical Psychology (IAAP)
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-RS)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor apresenta os pontos básicos acerca do amor no sufismo – a tradição mística islâmica – de modo a poder estabelecer um contraponto com o amor tal como podemos lê-lo na concepção de Freud. Neste diálogo peculiar entre mística e psicanálise, o autor considera que o amor edípico ou psíquico nunca se descola da fronteira das narrativas religiosas e de suas raízes pneumáticas.

Palavras-chave: Ibn Arabi, Freud, Amor, Mística, Psicanálise.


ABSTRACT

The author brings the basic standpoints about love in Sufism – the Islamic mystical tradition - in order to build a counterpoint to Freud's conception of love. In this peculiar dialogue between Islamic mysticism and psychoanalysis, the author considers that oedipal or psychic love is never detached from the borders of religious narratives and its pneumatic roots.

Keywords: Ibn Arabi, Freud, Love, Mysticism, Psychoanalysis.


 

 

Essa inscrição é o bismillah, uma invocação cujo significado é
"Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso"1.

Introdução

Digamos a verdade: la ilaha illallah - não existe nada além de Deus, não existe outro deus além de Deus, nada pode ser associado a Deus, tudo que possa ser dito além de Deus é falso, incompleto e aparente porque não existe nada além, fora, abaixo ou acima de Deus. Se algo pode ser dito, posto em palavras, então essa palavra seria Allah. Contudo, nunca poderemos fazê-lo completamente e por isso teríamos de dizer, pela via apofática, que Deus é inenarrável, inatingível, inexplicável, inapreensível etc. Mesmo assim, podemos nos acercar d'Ele através dos seus mais belos Nomes. Em síntese: o sufismo é uma grande meditação em torno de la ilaha illallah.

E o amor?

Ah! Sim, o amor... Mas por que tentar definir o amor?

O amor é como areia movediça para os cientistas, para os filósofos e os teólogos, enquanto para os místicos e os poetas o amor é um oceano sem bordas em que vivem e por onde navegam, e é também o vinho que alimenta a vida espiritual. Não é possível falar do amor senão por imagens e por isso, em geral, preferimos contar histórias. O amor não tem limites e por isso não poderia ser definido, pois uma definição já implicaria uma limitação. Nós, ocidentais, em geral desenvolvemos uma necessidade atávica de pensar intelectualmente sobre algo, antes de poder experimentar, provar, saborear esse algo. Por isso muitas vezes procuramos enredar o amor em palavras, mais que compreender o amor, e assim nos perdemos em labirintos e alçapões. De um ponto de vista vivencial, poderíamos dizer que, para o sufismo, o amor é uma experiência de Unidade com Deus e, ao mesmo tempo, de um ponto de vista gnóstico, isto é, da perspectiva daquele que verdadeiramente experimentou e reconheceu essa Unidade, o amor é uma realidade, a única realidade. O amor, então, poderia ser expresso pela fórmula la ilaha illallah - a afirmação da Unidade e da Unicidade de Deus ou tawhid - e poderíamos concluir que o sufismo também é uma grande meditaçãosobre o amor. Novamente poderíamos nos acercar do amor através dos Seus mais belos Nomes, entre os quais aqui eu escolheria dois: Al Rahman (O Misericordioso) e Al Haqq (O Real ou A Verdade). O amor é o real.

Esta é uma das formas de falar do amor em sua expressão máxima em um contexto religioso específico, neste caso o sufismo e a tradição islâmica. Entretanto, é fato que as afirmações feitas acima acerca de Deus e do amor não devem ter muita ressonância para os que não acreditam em Deus, enquanto para aqueles que creem, nada mais precisaria ser dito, principalmente para os de tradição abraâmica. Por isso, para tentarmos construir um diálogo que possa ser minimamente estimulante, vou propor aqui um contraponto com outra forma de ver o amor. Vamos falar do amor ateu e laico: a visão de Freud e da psicanálise. A partir daí, examinaremos alguns conceitos clássicos do sufismo para podermos dialogar com a psicanálise e, ao final, buscar compreender algo mais acerca do amor na tradição mística que o sufismo representa. Estes novos referenciais talvez possibilitem, se não a experiência, pelo menos uma reflexão sobre duas visões aparentemente antitéticas do amor.

 

Freud: um homem religioso?!

Podemos dizer com certa tranquilidade que dois temas de peso ocuparam longamente a vida pessoal e a obra escrita de Freud: o amor e a religião. Contudo, a maioria das pessoas não hesitaria em atribuir sinais contrários a esses temas: o amor para Freud seria o fundamento básico, positivo, constituinte, sobre o qual se dará todo o processo de desenvolvimento do sujeito humano e da civilização, ao passo que a religião e a crença em Deus seriam uma expressão negativa, ilusória e contingente. O amor em Freud estaria para o registro da realidade, assim como a religião estaria para o registro da ilusão. Entretanto, antes de conceituar a noção de amor em Freud, penso que valeria a pena questionar um pouco a visão corrente acerca das relações do pai da psicanálise com a religião.

Frequentemente observamos no meio analítico a repetição de um viés histórico que procura opor Freud e Jung de muitas maneiras, sobretudo quanto ao aspecto religioso. Há nisso certo engano e tendenciosidade interpretativa. Geralmente Jung é visto como crente e cristão, enquanto Freud é tratado como ateu e judeu. Aliás, ele mesmo se dizia um "judeu-sem-deus". Sem nos ocuparmos aqui com a questão deus-religião na vida pessoal e familiar de Shlomo Sigmund Freud, e tomando apenas seus escritos mais relevantes sobre religião, veremos que por mais de trinta anos Freud escreveu "fervorosamente" sobre o tema, trabalhando sempre com um vigor e uma combatividade "paulina" até o fim de seus dias. Refiro-me a Atos obsessivos e práticas religiosas (1907), Totem e tabu (1913), O futuro de uma ilusão (1927), O mal-estar na civilização (1930), e Moisés e o monoteísmo (1939).

Freud e Jung dedicaram décadas de suas vidas à reflexão sobre as relações entre o ser humano e Deus, sobre as relações do sujeito em relação às questões religiosas, e refletiram muito também sobre as implicações de certos aspectos da religiosidade para a coletividade, a cultura ou civilização de forma ampla. Decorre daí que não se pode dizer de alguém que dedicou décadas de sua vida a essa questão, seja valorizando-a ou denegrindo-a de algum modo, que a religião não tenha tido para ele enorme importância em sua vida pessoal e profissional. Com a licença de certa ironia, poderíamos dizer "freudianamente" que a religiosidade de Jung e sua "fé gnóstica" em Deus poderiam ser interpretadas como uma ilusão compensatória oriunda de um complexo paterno mal resolvido. Do mesmo modo, também poderíamos afirmar "junguianamente" que o ateísmo de Freud não conseguiu afastá-lo daquilo que Jung chamaria de uma verdadeira experiência religiosa, com direito integral ao culto obsessivo dos símbolos do self. Refiro-me aqui à sua vasta coleção de imagens e estatuetas de divindades greco-romanas, e sobretudo egípcias, bem como seu culto particular ao patriarca hebreu, Moisés. A psicanalista argentina Ana-María Rizzuto mostra bem a forma obsessiva com que Freud lidava com essas peças, vendo aí uma "coleção de objetos transicionais" e religiosidade reprimida: as antiguidades "lhe ofereciam o que Deus oferece aos crentes: a segurança de uma presença constante e a satisfação do contato emocional sublimado com o atrativo pai" (Rizzuto, 2001, p. 244).

Para Jung, não há diferença substancial nem essencial entre uma religiosidade dita pagã e a confessional, ou entre crentes e ateus, uma vez que para ele o homem, além de sapiens, é também homo religiosus. Do ponto de vista sufi, ser ou não ser religioso ou crente é uma questão que vai muito além da simples declaração confessional. Defendo a ideia de que mesmo a declaração de amor de um ateu confesso como Freud participa do entendimento abrangente que o sufismo tem do amor.

 

Freud e o amor

Para Freud, o paradigma fundamental da experiência amorosa é o complexo de Édipo, um amor de natureza sexual, e definido por sua emergência a partir das relações entre o sujeito infante e as figuras parentais, relações essas marcadas por toda sorte de vicissitudes. Este é o locus onde emergirá o sujeito freudiano, pulsionalmente voltado para buscar a realização de seus desejos reprimidos inconscientes. Posteriormente, Freud lançará esse dinamismo amoroso nas bases formativas do processo civilizatório:

Reconheci com clareza cada vez maior que os acontecimentos da história humana, as interações entre natureza humana, desenvolvimento cultural e as cristalizações de experiências primevas (tal como são apresentadas pela sua religião correspondente), são apenas o reflexo dos conflitos dinâmicos entre o ego, o id e o superego, que a psicanálise estuda no indivíduo; os mesmos acontecimentos reproduzidos numa escala maior. (Gay, 1989, p. 496)

Assim, é a experiência do amor ambivalente relacionado às figuras parentais que se constituirá como fundante tanto do homem individual (sujeito singular) quanto do homem em sua manifestação coletiva (civilização, cultura). Dessa base edípica é que surgirão as relações com o mundo e a cultura, em que esta pode ser vista como forma sublimada e substitutiva dos desejos primevos. O complexo de Édipo é o grande monolito de Freud, a sua Ca'aba2, a sua quibla3. Em uma leitura mais radical, poderíamos construir uma paráfrase com o tawhid islâmico - la ilaha illallah - dizendo que para Freud "não há nada além do amor", muito embora este amor permaneça restrito a uma pequena parte da geografia imaginal. Falarei mais sobre isso adiante.

O amor em Freud não possui nenhuma transcendência; apenas sublimação. É um amor atávico, instintual, incontornável, narcísico e aporético por natureza. O amor na visão trágica freudiana não tem futuro, isto é, ele não espera conhecer no futuro uma experiência cuja natureza essencial é, e pode ser sempre, maior e mais abrangente. Ao contrário, para Freud, é no passado e na infância que o amor edípico é vivido na sua plenitude e intensidade, em toda sua ardência, ambivalência e frustração, enquanto o futuro carregará sempre uma expectativa ilusória e frustrante, uma vez que todo desvio pulsional, toda sublimação implicará sempre renúncia e perda. Os impasses do amor trágico não se solucionam nem individualmente nem coletivamente, e essa aporia pode ser expressa assim: se o homem não vive sem civilização, tampouco pode ser feliz nela, porque "toda civilização tem de erigir-se sobre a coerção e a renúncia ao instinto" (Freud, 1927/2006, p. 17).

A obra de Freud é uma grande elaboração sobre o amor. Certamente alguém poderia questionar o porquê do uso da palavra "amor" em lugar da palavra mais freudiana "sexualidade". Mesmo considerando a grande espessura semântica que a palavra "sexualidade" receberá da psicanálise, a meu ver ela não se descola de uma raiz "erótica", ou seja, de sua ligação com o deus Eros, tanto em sua versão cosmogônica e generativa, como na versão do jovem Eros olímpico, como agente provocativo dos vínculos passionais. Seja como for, Eros representa sempre uma instância unitiva, criativa e geradora. Mesmo despida de toda transcendência e calcada na instintualidade biológica, a sexualidade sublimada ainda resvalará em outro Eros, agora em versão platônica, sob a figura do filósofo que busca a sabedoria (Platão, 1998, p. 91, 204b). Enfatizo, assim, a ideia - provocativa - de que o amor freudiano tem uma base religiosa, ainda que pagã.

 

Pneumatologia

Para seguir adiante lendo a obra de Freud como uma grande elaboração em torno do amor, precisamos neste ponto buscar algumas categorias analíticas no sufismo que nos possibilitem articular a noção freudiana com a concepção sufi do amor. A reflexão que pretendo fazer correrá em volta de dois grandes eixos: um eixo epistemológico-hermenêutico e outro ético-ontológico, que se entrecruzam e nos permitem, assim, apreender certo conhecimento disso que estamos chamando de "a experiência amorosa" do ser humano em sua relação com o mundo.

O primeiro eixo diz respeito a um amplo campo de conhecimento que abrange narrativas religiosas e não religiosas, organizadas como um saber sobre a alma humana (lato sensu) e que possuem suas próprias chaves de interpretação acerca das relações entre o homem, Deus e o mundo. Chamaria esse campo de pneumatologia para compreender aí o conjunto das narrativas mitológicas, religiosas, filosóficas e científicas que tem algo a dizer sobre o espírito, a alma e a psique. Nesse eixo, Freud constrói um saber de caráter científico em torno e a partir de um entendimento particular do que seja a psique e o psiquismo, ao qual ele chamará de psicanálise, ao mesmo tempo em que faz um expurgo das noções de alma e espírito. Já o sufismo desenvolve um saber de caráter religioso e revelatório acerca da natureza do espírito e da alma, sem, no entanto, excluir a dimensão psíquica associada ao ser humano. Esse saber compõe uma verdadeira "Ciência da Imaginação".

O segundo eixo – ético-ontológico - diz respeito àqueles conceitos e noções que podem descrever a natureza e a ação do ser humano no mundo, bem como suas consequências morais e/ou espirituais. Aqui a psicanálise manejará as noções de instâncias psíquicas (inconsciente, consciência, ego, id e superego), suas formações estruturais (neurose, psicose e perversão), psicodinâmicas etc. O sufismo, por sua vez, possui um descrição dos nafs que representam as várias instâncias da alma, que por sua vez se articulam com a noção de ruh (espírito) e, naturalmente, com a noção de Deus (Allah) e dos Nomes de Deus (seus atributos).

Dito isso, podemos afirmar que a experiência amorosa à qual Freud se refere diz respeito a um fenômeno pneumático (lato sensu) ou psíquico (stricto sensu), limitado por um modelo de aparelho psíquico e suas dinâmicas particulares. A essa forma de ver deve-se somar ainda uma tintura pessimista de Freud, seu enfoque evolucionista, laico e ateu sobre o ser humano e o amor. Para Freud, qualquer outra forma pela qual consideremos o amor, sobretudo a religiosa, é tomada como uma ilusão a ser superada, e é sempre redutível ao amor edípico. Mesmo quando seu amigo Romain Rolland, romancista francês e Prêmio Nobel, lhe falava sobre o sentimento oceânico, Freud podia achar interessante a ideia, mas dizia que aquilo na verdade não significava nada para ele e que, pessoalmente, sentia-se incapaz de experimentar em si mesmo qualquer coisa parecida com esse tal de sentimento oceânico. A "unidade com o universo" lhe soava como uma grandeza insondável: "Permitam-me admitir mais uma vez que para mim é muito difícil trabalhar com essas quantidades quase intangíveis" (Freud, 1930/2006, p. 81). Freud preferiu sempre "deixar os céus aos anjos e aos pardais", como dizia o poeta Heinrich Heine. Em O futuro de uma ilusão, Freud procura veementemente mostrar como as crenças religiosas são uma ilusão neurótica infantil e conclui: "Os homens não podem permanecer crianças para sempre; têm de, por fim, sair para a ‘vida hostil'. Podemos chamar a isso de educação para a realidade" (Freud, 1927/2006, p. 57).

Como vemos, o amor em Freud não possui nenhuma extensão para além da realidade psíquica e a dimensão religiosa é lida na chave do sintoma. Não há aqui outra realidade além da psíquica, cuja maturação e desenvolvimento levariam à superação das ilusões e à felicidade possível.

A experiência amorosa à qual a via sufi se refere possui abrangência maior. Inclui a instância psíquica relativa ao plano humano propriamente dito, bem como a instância divina que está além de todos os possíveis relativos. O homem pode conhecer o amor em todos os seus graus, exceto talvez o último, designado como Misericórdia divina ou o Mistério insondável de Deus, que designa a própria ação de Deus, independentemente de qualquer consideração, legislação ou acordo com o ser humano.

Para Freud, o amor é um intrincado jogo cujo resultado nos permite discriminar razoavelmente ilusão, realidade e verdade. De certa maneira, também a via mística lida com essa questão e trata de apresentar muitas formas de articulação para essa equação de três termos. Mas, antes de avançarmos mais sobre este assunto, é preciso trazer nesse momento uma nova referência como contraponto ao campo psíquico em que Freud circula. Para tanto examinemos as contribuições de um importante místico andaluz, Ibn Arabi, também conhecido no universo da mística islâmica como Sheik Al-Akbar, que significa, em uma tradução livre "o maior dos xeques", ou "o mestre dos mestres".

 

mundus imaginalis

Ibn Arabi (1165-1240) nasceu na Andaluzia e morreu em Damasco, deixando uma vasta obra que aos poucos vem sendo traduzida e bastante estudada. Se há em Ibn Arabi um registro em que poderíamos localizar aquilo que Freud chama de psique, esse registro seria o alam al-mithal ou "mundo dos modelos, semelhanças". Nesse campo, o mestre andaluz desenvolveu uma verdadeira "Ciência da Imaginação". Esse campo contempla variados planos: o nível material concreto - no qual o ser humano experimenta em si mesmo a ação imaginativa como atividade mental -, o nível intermediário – alam al-mithal ou mundus imaginalis - e a dimensão divina propriamente dita - o plano do Absoluto. Essa estrutura tríplice permaneceu como um verdadeiro paradigma que perdurou até praticamente o século XVII.

Alam al-mithal é um mundo intermediário entre a realidade sensível e a realidade inteligível. É um universo onde as imagens subsistem e podem ser conhecidas e acessadas. A presença desse mundo intermediário é que permite corporificar o espírito e espiritualizar a matéria.

Henri Corbin, grande orientalista francês e tradutor de muitas das obras de Ibn Arabi, escolheu cunhar em latim a tradução do termo árabe alam al-mithal como mundus imaginalis - mundo imaginal -, para justamente evitar a tão depreciada expressão ocidental "imaginário". O mundo moderno ocidental alicerçou-se em outro paradigma reduzindo o mundus imaginalis a simples função excretora de ficções e irrealidades. O mundo imaginário ao qual popularmente nos referimos não mais possui nenhum valor, seus produtos não são admitidos como conhecimento válido, não possuem valor científico. A imaginação se tornou, literalmente, "a louca da casa". Mesmo se considerarmos em Freud A interpretação dos sonhos, Psicopatologia da vida cotidiana, e todo o seu empenho teórico-prático em demonstrar a importância e a validade científica desse pequeno fragmento do mundo da imaginação que é a psique, ainda assim nossa distância com relação ao conhecimento do mundo imaginal é gigantesca. Contudo, paradoxalmente, essa porta nunca se fechou para aqueles que se aproximam com o coração aberto (ressalvo que, na mística, o coração não tem nenhuma conotação de pieguice ou ingenuidade romântica boba, como pretendo mostrar adiante).

E qual é a relação entre o amor e o coração?

Como nosso tema é o amor, façamos aqui um breve comentário acerca do coração. O coração é comumente associado ao amor romântico e à expressão dos sentimentos. A tradição sufi tem dele uma perspectiva mais abrangente. Como diz Corbin,

Em Ibn Arabi, assim como no sufismo em geral, o coração (qalb) é o órgão que produz o verdadeiro conhecimento, intuição compreensiva, a gnose (ma'rifa) de Deus e dos mistérios divinos, em suma, o órgão de todas as coisas conotadas pelo termo "ciências esotéricas" (‘ilm al-Batin). É o órgão de uma percepção que é ao mesmo tempo experiência e intimidade saboreada (dhawq), e embora o amor também esteja relacionado ao coração, no sufismo o centro específico do amor é considerado como ruh, pneuma, espírito. (Corbin, 1981, p. 221)

Na verdade poderíamos dizer que o coração tratado pela mística é de fato um órgão sutil, um órgão de conhecimento, e é verdadeiramente o instrumento pelo qual o gnóstico adentra, opera, participa, conhece e compreende a realidade imaginal.

 

Amor e imaginação

Uma vez que fizemos uma rápida apresentação do que seja o mundo imaginal e do coração como órgão sutil de conhecimento dessa realidade, vejamos agora qual é a relação entre amor e imaginação. De acordo com Ibn Arabi, podemos apontar três grandes planos de manifestação da imaginação, ou realidade imaginal. No primeiro, vamos encontrar a imaginação ligada ao sujeito que imagina, ou seja, o plano do funcionamento psíquico propriamente dito. Nesse nível, a imaginação é descrita também como contingente, ligada ou associada ao sujeito. O segundo nível designa a imaginação autônoma, a realidade imaginal ou alam al-mithal, como uma realidade independente do sujeito psíquico. E há um terceiro plano que designa a própria realidade divina. Neste, o Todo e tudo o que existe é considerado imaginação teofânica. "Mesmo a imaginação contingente e inseparável do sujeito, ela não é em nenhum sentido uma faculdade funcionando arbitrariamente no vazio, secretando ‘fantasias'. Portanto, há somente uma imaginação autônoma porque ela é imaginação absoluta (khayal mutlaq)" (Corbin, 1981, p. 220).

Por consequência, teríamos de afirmar que o amor como experiência psíquica não existe, ou melhor, ele existiria apenas para aquele que vive preso nas pequenas reentrâncias de alam al-mithal, às quais chamamos de psiquismo. É nesse exíguo recanto - primeiro nível do universo imaginal - que localizamos o amor edípico descrito por Freud.

Podemos ainda complementar essa ideia dos três planos da imaginação fazendo referência aos três tipos de amor considerados por Ibn Arabi: o amor divino, o amor espiritual e o amor natural ou físico. O plano do amor divino diz respeito ao absoluto, la ilaha illallah, não há nada além de Deus, nada tem existência apartada de Deus, ou seja, tudo é imaginação de Deus e se realiza em Deus.

No plano do amor espiritual, vamos encontrar a criatura em busca do Criador, cenário em que se manifesta a mais sutil e exaltada dialética do amor, descrita como a relação entre o amante e o Amado. Nesse plano o amante busca apenas concordar com o que Ele deseja dele, seu fiel amante. A grandeza e a beleza dessa expressão do amor foi descrita de muitas formas por místicos como Ibn Arabi, Rumi ou Rabi'a Al-Adawia, e em toda a tradição abraâmica. Talvez o mais intrigante exemplo aqui seja o Cântico dos cânticos.

Por último, no plano do amor natural ou físico vemos "apenas o desejo de possuir e a busca de satisfação de seus próprios desejos sem nenhuma consideração pela satisfação do Amado" (Corbin, 1981, p. 149). Novamente, não há como não reconhecer aqui a descrição do amor edípico em sua faceta mais exigente e narcísica.

Para finalizar este comentário acerca da relação entre o amor e a imaginação no sufismo de Ibn Arabi, gostaria de mostrar uma bela descrição desse amor narcísico feita pelo Sheik al-Akbar, antecipando em oitocentos anos a "descoberta" de Freud sobre o amor. Vejamos:

Todo aquele que se apaixona por algo ou alguém, somente se apaixona após haver criado esse objeto em sua imaginação, estabelecendo uma imagem para ele em sua imaginação (ou faculdade imaginal), e dessa maneira faz com que a amada coincida com sua imagem (interna). Isso mostra que a amada existe com o amante sob a imagem de uma forma, e que ele a recupera em sua imaginação. Dessa maneira ele se prende em contemplar sua amada, seu prazer se multiplica, e seu amor segue aumentando ... Ele mesmo criou a forma pela qual se apaixonou em sua imaginação. Portanto, ele não ama coisa alguma, exceto aquilo que o remete a si mesmo; prende-se a si próprio e se vangloria de seu próprio gesto. (Ibn Arabi, 2002, p. 185)

É fácil notar que se substituirmos a palavra imaginação por psique teremos um texto tecnicamente freudiano, descrevendo o dinamismo psíquico envolvido na experiência amorosa, passional. Notem que, a despeito de ser bastante conciso, ele é excepcionalmente claro e equilibrado, constituindo-se em uma evidente demonstração de conhecimento daquilo que mais tarde Freud viria a conceitualizar como desejo, projeção, idealização, narcisismo etc.

 

Últimos comentários

Procurei definir um campo comum que chamei de pneumatologia, comum a várias narrativas, entre as quais incluí a mística sufi e a psicanálise. Esse recorte nos permitiu tratar conjuntamente e de modo mais flexível o tema do amor na tradição sufi e o amor tal como podemos lê-lo na concepção de Freud. Isso também nos ajuda a romper com uma noção já ossificada que opõe ciência e religião de forma irreconciliável. Esta é certamente uma herança freudiana, libelo de uma briga mais antiga que Freud encampou sem meias medidas: "A guerra entre ciência e religião", como comenta Peter Gay, "esse lema militante do século XVIII tão ardorosamente repetido no século XIX, continuava a representar uma verdade axiomática para Freud rumo à metade do século XX. Como disse ele mais de uma vez, em mais de um texto, a religião era, pura e simplesmente, o inimigo" (Gay, 1989, p. 484).

A referência à pneumatologia nos permite reposicionar Freud em uma perspectiva histórica que facilita o diálogo com narrativas religiosas e não religiosas, em que a "invenção do psicológico" não suprime nem invalida outras narrativas que operam eficientemente com os registros anímico e espiritual. Os sonhos, por exemplo, são um capítulo à parte nessa história. Eles têm enorme importância na tradição sufi e seu valor ultrapassa muito o valor que ele possa ter para o sujeito psíquico apenas. Eles manifestam objetivamente dimensões anímicas e espirituais, e possuem valor operativo inquestionável tanto para o indivíduo como para a comunidade espiritual. Curiosamente, embora o modelo de interpretação dos sonhos seja radicalmente diferente do modelo psicanalítico, sua eficácia tem sido comprovada ao longo de séculos e séculos.

Freud foi inegavelmente genial e a psicanálise, uma resposta contundente para o homem do século XX, e continua sendo relevante para o homem do século XXI. Contudo, se perdermos de vista esse campo mais amplo, corremos o risco de pensar que ele descobriu a psique, a importância dos sonhos, o mecanismo de projeção e idealização narcísica na experiência amorosa, e assim por diante. Seu forte viés evolucionista levou-o a acreditar piamente na ciência e na psicanálise como modelo eficaz para superar as ilusões infantis da humanidade, afastou-o definitivamente de uma consideração positiva do fenômeno religioso e, assim, levou de roldão o amor místico para o gargalo estreito de um aparato psíquico.

Busquei enfatizar a ideia de que as observações de Freud sobre a vida psíquica fazem parte de um campo de narrativas que há milênios especulam, refletem sobre essas dimensões do homem e do mundo. As pinturas rupestres das cavernas da Serra da Capivara no Piauí, por exemplo, ilustram isso. Há milhares de anos as diferentes culturas que ocuparam aquela região deixaram gravado naquelas pedras um impressionante retrato de nossa alma ancestral marcado por elementos eróticos e devocionais, um retrato de tradições que olhavam para dentro e também olhavam para o céu.

Como procurei mostrar, o "céu" freudiano possui um mapa incrivelmente detalhado da alma humana, com suas formações complexas, suas órbitas e revoluções. Por outro lado, o sufismo possui uma longa história, que parte de outra matriz hermenêutica e se constitui em outra narrativa pneumática, de caráter revelado e ao mesmo tempo voltado para o homem deste mundo, que observa o tempo presente mas não abre mão da realidade atemporal e da transtemporalidade do espírito em relação ao fenômeno humano. É possível que a riqueza do legado de Freud possa dialogar com as preciosas descrições dos planos egoicos e anímicos da tradição sufi. Mas, se partimos do pressuposto de que ciência e religião não conversam, como apostava Freud, deixaremos escapar pelos dedos o enorme conhecimento acumulado por diferentes culturas e diferentes épocas.

Poder falar dos graus do amor a partir da perspectiva sufi na pneumatologia nos possibilita falar de uma nova maneira sobre o amor em Freud, de uma forma que me parece mais inclusiva e que não pretende reduzir a psicanálise em seu valor próprio, curativo, cultural, epistemológico etc., muito embora a recíproca histórica não seja verdadeira. Ao contrário, proponho um permanente convite ao diálogo e a novas descobertas.

Para o sufismo, a experiência amorosa humana não tem existência nem razão a não ser como uma experiência ligada ao amor divino, ainda que entre um polo e outro possa haver uma distância infinita. Há um hadith que ilustra muito bem essa noção: "Entre o homem e Deus existem 70 mil véus. Entre Deus e o homem não existe nenhum". Disso poderíamos concluir que, se existem 70 mil mil véus que nos separam do amor, então temos muito trabalho a fazer, e isso pode significar inclusive fazer muita análise. Na verdade, não existem dois lados; existe apenas Um. Ao mesmo tempo em que nos damos conta da distância infinita, reconhecemos a proximidade infinita. Se há um longo caminho a percorrer, então para aquele que reconheceu o caminho a seguir já não há mais distância. Deus é Um e é Um para cada um.

Para o sufismo, o amor não é uma aporia, é sempre esperançoso e nunca pessimista e, sobretudo, não carrega nenhum sentimento nem destino trágico. Por vezes, a experiência amorosa também poderá ser vivida como uma experiência dramática, porém jamais será uma tragédia. Em síntese, o amor como expressão psíquica nunca se descola de sua raiz pneumática nem de suas fronteiras com as narrativas religiosas.

 

Referências

Corbin, H. (1981).Creative imagination in the Sufism of Ibn Arabi. New Jersey: Princeton University Press.         [ Links ]

Freud, S. (2006). O futuro de uma ilusão. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 21). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1927).         [ Links ]

Freud. S. (2006). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 21). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1930).         [ Links ]

Gay, P. (1989). Freud: uma vida para nosso tempo. São Paulo: Companhia da Letras.         [ Links ]

Ibn Arabi (2002). The Meccan revelation. New York: Pir Press.         [ Links ]

Platão. (1998). O banquete. Lisboa: Guimarães Editores.         [ Links ]

Rizzuto, A.-M. (2001). Por que Freud rejeitou Deus? Uma interpretação psicodinâmica. São Paulo: Loyola.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Marcos Fleury de Oliveira
Rua Jericó, 255/107
05435-040 – São Paulo - SP
tel.: 11 3034-0425

Recebido: 18/04/2011
Aceito: 04/05/2011

 

 

* Psicólogo e analista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica de São Paulo (SBPA), membro da International Association for Analytical Psychology (IAAP), mestrando em Ciência da Religião na PUCSP. Há quinze anos estuda o sufismo e as tradições islâmicas.
1 Irã, fim séc. XVI-início séc. XVII, 4,7 cm de diâmetro. Escrita árabe em estilo naskhi. Cortesia da Freer Gallery of Art, Smithsonian Institution, Washington.
2 "Cubo" em árabe, a Ca'aba é revestida com tecido negro, o primeiro templo construído por Abraão em Meca e centro geográfico da espiritualidade islâmica.
3 Todo muçulmano deve rezar voltado para Meca, onde está a Ca'aba. Essa direção é chamada quibla.