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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.34 no.52 São Paulo ago. 2011

 

EM PAUTA - AMORES

 

Ensaio sobre a íntima e complexa relação entre o amor e o sexo

 

Essay on the intimate and complex relationship between love and sex

 

 

Gley P. Costa*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

São muitas as situações que nos levam a concluir que o amor pode existir sem sexo, mas podemos conceber o oposto? A longa história do casamento revela uma evidente dissociação entre o amor e o sexo, atenuada, aos poucos, a partir da Revolução Industrial. Não obstante, com a mudança dos costumes introduzida pela pós-modernidade, uma nova dissociação entre o amor e o sexo foi estabelecida, na qual o sexo se tornou bem-aceito e amor, principalmente o romântico, perdeu seu prestígio. O resultado foi uma perda na qualidade das relações que o mundo contemporâneo tenta compensar com a valorização da quantidade e da novidade. A esperança é de que, no futuro, o amor possa ser resgatado nas relações sexuais.

Palavras-chave: Amor, Sexo, Desejo, Paixão, Pulsões, História do casamento, Pós-modernidade, Sociedade atual.


ABSTRACT

There are many situations in which one is led to assume that love can exist without sex, but can the same be said of the opposite? The long history of marriages reveals an evident disassociation between love and sex, which has gradually lessened since the times of the Industrial Revolution. However, with new habits being introduced by post-modernity, a new dissociation between love and sex has been established – one in which sex became well accepted and love, especially the romantic type, lost its prestige. As a result, there is today a loss of quality in the relationships that the contemporary world tries to compensate with the valorization of quantity and novelty. The hopes are that in the future love can be rescued in sexual relationships.

Keywords: Love, Sex, Desire, Passion, Instincts, Marriage's history, Post-modernity, Contemporary society.


 

 

A chama é a parte mais sutil do fogo,
e se eleva em figura piramidal.
O fogo original e primordial,
a sexualidade,
levanta a chama vermelha do erotismo,
e esta, por sua vez,
sustenta outra chama,
azul e trêmula: a do amor.

Octavio Paz, 1993/1995, p. 7

 

Nossas relações com pais, irmãos, filhos, amigos, com a terra em que nascemos e nosso time de futebol são evidências que nos levam a concluir que o amor pode existir sem o sexo. Contudo, podemos conceber uma situação oposta? Não faz muito, em um debate sobre o tema, ouvi de um renomado antropólogo que sexo sem amor é inconcebível do ponto de vista humano e que, quando praticado, assume características animalescas, em uma alusão clara às relações sexuais fora do casamento. Embora não se trate de um homem que se declare católico, é provável que suas palavras sejam plenamente apoiadas pela Igreja, em que pese sua expressão mais conservadora não vincular o sexo ao amor, mas à reprodução: o amor seria destinado a Deus. Uma concepção, esta sim, animalesca do sexo?

Em confronto com a opinião do referido antropólogo e, provavelmente, da maioria das pessoas, o casamento é o exemplo mais contundente da existência de sexo sem amor, como nos revela a história desse relacionamento desde os primórdios. Se não, vejamos: na sociedade pré-industrial de agricultura e caça, não era o amor que, predominantemente, unia os casais, mas a garantia da sobrevivência, estabelecendo a diferença entre homem e mulher com base na força de trabalho. Os direitos individuais eram mínimos, preponderando os interesses da comunidade em detrimento das necessidades do indivíduo, em particular as afetivas. Em muitas culturas primitivas, enquanto a relação sexual era estimulada, as iniciativas no sentido de estabelecer ligações afetivas estáveis eram desencorajadas. Em outras, o relacionamento sexual entre jovens somente era proibido quando eles se apaixonavam. Os gregos subestimaram o amor físico e idolatraram o amor espiritual, considerando-o apanágio dos relacionamentos homossexuais.

Entre os romanos, também o amor não ocupava o primeiro lugar no casamento, predominando, principalmente nos meios aristocráticos, os interesses econômicos e políticos. O objetivo principal do casamento era formar uma família, que passa a ser valorizada social e politicamente, cabendo à mulher as tarefas de atender ao marido, cuidar da casa e criar os filhos. Todavia, no apogeu do Império Romano, como retrataram muitos filmes, houve um incremento da sensualidade, mas restrito às relações extraconjugais. Com a decadência do Império Romano, que alguns autores relacionam com esses anos de frénésie, nasceu o cristianismo, que se insurgiu veementemente contra o prazer, sobretudo o prazer sexual, e estabeleceu uma arrasadora dicotomia entre o amor e o sexo no casamento, atribuindo a origem do primeiro a Deus e, do segundo, ao diabo. De acordo com as rigorosas normas da Igreja, o sexo deveria ser restrito ao casamento, o necessário para gerar filhos. O amor entre marido e mulher, assexuado, equiparou-se ao amor aos pais, aos irmãos, aos filhos e ao próximo, tendo como modelo o amor puro de Deus.

Como uma reação a essa extremada repressão da sexualidade que caracterizou a Idade Média, difundiu-se na França e, por meio dos trovadores, espalhou-se por toda a Europa, a doutrina do amor cortesão, que idolatrou o arrebatamento e a paixão nas relações entre homem e mulher, porém fora do casamento. Foi a época do amor ardente, mas difícil, e que, na maior parte das vezes, não chegava a se concretizar fisicamente sob a forma de uma relação sexual, resultando que o sexo acontecia dentro do casamento sem amor, e o amor era vivido fora do casamento sem sexo. Durante o Renascimento, ao mesmo tempo em que houve uma diminuição do poder da Igreja, cresceu a influência do protestantismo e, em particular, do puritanismo, difundido desde a Grã-Bretanha, mantendo-se a aversão ao sexo, a tal ponto de Lutero ter afirmado que "no casamento, Deus encobre o pecado". Sob forma de um enfrentamento ao antissexismo renascentista, o Iluminismo, que defendeu o materialismo, o liberalismo e o système de la nature, influenciando as mudanças sociais e políticas do século XVIII, posicionou-se ao lado do direito individual ao prazer e ofereceu uma forte e contundente oposição ao moralismo religioso, mas, ao exceder-se no cientificismo e no racionalismo, manteve afastado o sexo do amor.

Contudo, no final do século XVIII e início do XIX, surgiu o Romantismo, fazendo prevalecer os sentimentos sobre a frieza da razão e a imaginação sobre a análise racional, consagrando a espontaneidade. Ainda sob as luzes do século XIX, ocorreu a Revolução Industrial e se desenvolveu o capitalismo, promovendo os direitos individuais, incluindo as mulheres, e um novo modelo de relacionamento homem-mulher. Uma relação conjugal que não tenha por base o amor sexual, a livre decisão dos cônjuges e a igualdade de obrigações e direitos tornou-se humanamente inaceitável. Nesse novo contexto social, a felicidade, antes uma benesse da Igreja somente atingível no céu, transformou-se em um bem secular que podia ser almejado aqui mesmo na terra. Com o direito à livre escolha, aliado à diminuição da autoridade do Estado, da religião e da família, ao longo do século XX o amor romântico foi se juntando ao sexo no casamento.

No entanto, ainda faz parte da nossa lembrança o tempo em que os pais, sutil ou declaradamente, escolhiam os cônjuges para seus filhos de acordo com os relacionamentos familiares e os interesses políticos ou financeiros. Em muitas cidades do interior, há vários exemplos de famílias que se encontram unidas há várias gerações pelo casamento, sustentando e aumentando seu patrimônio econômico, bem como famílias nas quais os jovens não podem se casar porque seus pais, por razões políticas ou de outra natureza, encontram-se brigados. A essas restrições ao casamento por amor ainda podemos incluir os preconceitos relacionados à cor, raça e religião, vigentes ainda hoje em vários países. Recentemente, uma mulher indiana informou que o seu primeiro esposo havia sido escolhido pelos pais, e um homem bangalês referiu que a esposa fora eleita pelas irmãs, como é comum naquele país. Além dessas dificuldades impostas ao casamento por amor, não se pode esquecer que a mulher, ao perder sua família de origem e passar a fazer parte da família do marido, como acontecia no passado e, surpreendentemente, ainda acontece em algumas comunidades, em razão de questões religiosas e econômicas torna-se destituída de identidade própria. Essa realidade, que atravessou os séculos, é mais evidente nos casos de mulheres que, mesmo após a separação, permanecem ligadas à família do ex-marido, até mesmo morando na mesma casa. Como resultado da maior individualidade e independência da mulher, tanto emocional como econômica, esse quadro se modificou significativamente nos últimos anos, e o casamento assumiu mais verdadeiramente sua condição de relacionamento amoroso de conotação sexual.

Paradoxalmente, no alvorecer do terceiro milênio, invertendo a ordem, parece que o sexo se tornou bem-aceito, e o amor, principalmente o romântico, perdeu seu prestígio. Anteciparam-nos os gregos, há muitos séculos, que o Amor herdou da mãe Pobreza (mortal) a permanente carência e o destino de andarilho, e do pai, Recurso (imortal), a coragem, a decisão e a energia que o tornam astuto caçador. Dessas duas heranças reunidas decorre a sina singular do Amor: nem mortal, nem imortal, ora germina e vive quando enriquece, ora morre e de novo renasce. De qualquer maneira, como se pode ver pela trajetória histórica da humanidade, amor e sexo nunca estiveram tão juntos no casamento, representando um amadurecimento da relação homem-mulher, para o qual os conhecimentos proporcionados pela psicanálise, ao longo do século passado, contribuíram significativamente.

Pensamos que, após várias aproximações, aos 82 anos Freud (1940 [1938]/1975a) alcançou uma concepção verdadeiramente criativa do amor ao nos falar de Eros, a pulsão de vida, integrando o impulso do ser humano de conservação e o impulso amoroso, que ele chamou, simplesmente, de amor. Freud acentuou que a força do amor se encontra representada pela libido, a energia que brota das pulsões sexuais que se descarregam das zonas erógenas do corpo, incluindo a pele, firmando uma relação definitiva entre amor e sexualidade. Além de definir sua fonte, também estabeleceu que o amor admite duas formas: narcisista e objetal. O amor narcisista é aquele que se volta para o próprio indivíduo, como Narciso que, segundo a mitologia, apaixonou-se pela própria imagem. Nesse caso, só existe o sujeito, não existe o objeto do amor. Trata-se de uma forma infantil de amar, a qual toma o outro como uma extensão de si próprio. No amor objetal, ao contrário, existe o reconhecimento do outro (objeto) como um indivíduo independente e com vontade própria, caracterizando a forma madura de amar. Contudo, na evolução do amor narcisista para o amor objetal, uma parte do primeiro deve permanecer, constituindo o chamado amor-próprio. Por isso é que, na prática, o que observamos é uma combinação dessas duas formas de relacionamento, com predominância de uma ou de outra, configurando os laços de amor entre homens e mulheres mais ou menos maduros, mais ou menos criativos.

Não podemos subestimar, todavia, a complexidade dessa intricada relação entre sexo e amor, permeada pelo contexto socioeconômico e pelas experiências infantis dos cônjuges, cuja influência permanente faz lembrar as palavras do poeta Mario Quintana (1973): "O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente" (p. 174). De fato, é na infância, desde os primeiros contatos físicos e afetivos proporcionados pelo cuidado materno, passando pela visualização da forma como os pais se tratam e culminando com as experiências da adolescência, que se encontram as raízes dos relacionamentos adultos. Essas vivências, registradas de forma indelével no inconsciente, mais tarde vão interferir na vida sexual do indivíduo, constituindo a viga mestra da relação conjugal. A excitação sexual tem sua mais primitiva expressão nas experiências prazerosas dos relacionamentos dos primeiros meses de vida, embasando a intensidade do desejo sexual do adulto que, além do nível hormonal adequado, tem como aspecto determinante o interesse sexual, mobilizado por lembranças, fantasias e atenção aos estímulos externos reforçadores, que são relativamente específicos da orientação sexual do indivíduo. Quando o desejo sexual inclui a escolha de determinada pessoa, a excitação sexual se transforma em desejo erótico, base do amor sexual maduro que, além do prazer, implica uma comunhão de disposições e expectativas no plano emocional e afetivo. Também integram o amor sexual maduro: a identificação com o parceiro, particularmente em suas expectativas sexuais e as decorrentes do gênero; a permanência de certa dose de idealização do outro, principalmente do corpo, correspondendo ao aspecto estético do amor; e a ternura que nasce da integração dos aspectos amorosos e agressivos da personalidade, acrescida da tolerância à ambivalência que caracteriza todas as relações humanas. O amor sexual maduro ainda nos exige a capacidade para experimentar a igualdade sem obstruir a diferença, correspondendo ao que Kundera (1984/1999) denominou "consentir" em A insustentável leveza do ser, e também a capacidade de provocar e ser provocado sexualmente, cuja excitação decorre da fantasia de realizar algo proibido e pecaminoso.

Com alguma frequência, os autores concebem amor e paixão em franca oposição, como sentimentos incompatíveis, e consideram os estados de apaixonamento uma idealização romântica, própria das ligações afetivas dos jovens ou dos estágios iniciais e passageiros das relações amorosas dos adultos, que a convivência e o tempo esvanecem. No entanto, contrariando esse ponto de vista, que parece restringir a paixão aos arroubos juvenis, a clínica nos ensina que, juntamente com o encantamento inicial, a paixão representa um aspecto permanente nos relacionamentos que mantêm a intensidade da excitação sexual por toda a vida, contribuindo para o nível de satisfação total do relacionamento conjugal e sua constante renovação. Nesses casos, o prazer proporcionado pela relação sexual ocupa um lugar privilegiado nos anseios do casal, que põe à disposição dessa experiência toda a sua criatividade para integrar seus impulsos amorosos e agressivos em um corajoso ato de entrega total, mesmo em idade avançada. Quando isso acontece, o casamento tende a se manter e as outras áreas do relacionamento conjugal se mostram menos conflitantes. Portanto, não exageram os que afirmam que uma vida sexual excitante e prazerosa é a base de sustentação do casamento e a barreira que necessitamos para nos proteger das exigências impostas pelo cotidiano, impedindo que elas açambarquem o relacionamento conjugal.

No entanto, esse processo não é espontâneo, pois exige um início de vida conjugal com a consciência nítida de que o amor pode acabar e que, para mantê-lo vivo, é indispensável dedicar-se a ele com sensibilidade, delicadeza e espírito criativo para promover um estado permanente de mudanças. Uma das mais belas esculturas que se podem ver no museu do Palácio Bargello, em Florença, é a de Leda com o cisne – um desenho de Michelangelo que Ammannati esculpiu no mármore, simbolizando que amar é uma arte. Reproduz uma das múltiplas transfigurações de Zeus, que, de acordo com a mitologia, fez-se passar pela ave a fim de entrar, despercebidamente, no quarto da amada e possuí-la sexualmente. No entanto, não basta criatividade, também é preciso empenho e persistência para errar e voltar a tentar outra vez. Como certa vez ouvimos: "O amante deve cultivar uma alma de explorador". Trata-se, evidentemente, de uma atividade conjunta que envolve disposição de, na mesma medida, receber e dar prazer por vontade própria sem a necessidade de implorar ou conceder. Além disso, o casal deve preservar sua vida amorosa de interferências externas, concedendo-lhe um lugar próprio no tempo e no espaço. Simbolicamente, diríamos que os amantes devem construir com as próprias mãos, sem a ajuda de terceiros, uma cabana para amar em um lugar totalmente desconhecido, inventado por eles, e nela se encontrar em horários que ninguém imagina, guardando o segredo desses momentos a sete chaves. Essa experiência erótica compartilhada faz com que as fantasias cresçam e a excitação sexual aumente, melhorando a imagem que cada um faz de si e reforçando o sentimento de feminilidade na mulher e de masculinidade no homem. Deve ser acrescido que o ato sexual é uma experiência reparadora e que os segredos relacionados às fantasias sexuais compartidas favorecem a intimidade e estabelecem a almejada cumplicidade conjugal.

As pessoas que, defensivamente, dissociam o amor do sexo em seu relacionamento conjugal geralmente situam a vida sexual em um plano apagado, passando a representar uma satisfação eventual. Contudo, o prazer proporcionado pelo sexo não deve constituir um ganho a mais, mas representar a fonte da qual emana a força que consolida o laço afetivo e garante sua qualidade. Na verdade, a vida erótica, proporcionada pelo casamento, não representa apenas uma forma de obter prazer físico, de atenuar o impacto das pressões externas e de manter a estabilidade do vínculo conjugal, representa também uma forma de reforçar nossas capacidades para enfrentar as vicissitudes da vida, como as doenças e, principalmente, a finitude. O escritor francês Georges Bataille (1957/1988) nos põe na condição de ilhas de vida cercadas de morte por todos os lados. O erotismo são as pontes que construímos para nos unirmos às outras ilhas, tão isoladas quanto nós mesmos. Trata-se de uma operação arriscada que, como dissemos, exige dedicação, persistência e muita arte. Às vezes, recusamo-nos a construir essas pontes, levamos muito tempo até nos decidirmos a tomar uma iniciativa ou, tendo iniciado o trabalho, retrocedemos porque não nos sentimos preparados para enfrentar o desafio. No entanto, não será viver justamente essa experiência de tentar sair do isolamento que nos concede a plena sensação da existência?

Dizia Freud (1905/1975d) que, quando se vê a criança saciada abandonar o seio, voltar a cair nos braços da mãe e, as faces vermelhas, sorrindo, adormecer feliz, não se podem deixar de identificar nessa imagem o modelo e a expressão da satisfação sexual que conhecerá mais tarde. No entanto, ao prazer sexual que sente ao sugar o seio materno encontra-se associada uma angústia que, em parte, decorre da sua própria agressividade projetada na mãe como resultado das inevitáveis frustrações impostas à natural voracidade do recém-nascido, podendo, mais tarde, ser revivida nos relacionamentos com o sexo oposto. Ao mesmo tempo, algumas características da relação inicial do bebê do sexo masculino também podem, na vida adulta, determinar um sentimento de angústia na presença da mulher, pelo fato de ela reativar seus desejos infantis de se fusionar com a mãe – aspecto não menos importante que o medo de sua ausência, decorrente da fragilidade e da dependência do ser humano ao nascer. Como resultado de seu desejo de reviver a relação simbiótica com a mãe e, ao mesmo tempo, garantir sua individualidade, caracterizando uma situação de ambivalência, o homem, defensivamente, poderá opor-se aos seus desejos, mantendo distância das mulheres. Uma característica da relação erótica inicial do menino com sua mãe é que ela é, predominantemente, passiva. Os homens que tiveram prazer excessivo na passividade durante a infância, e ficaram fixados nessa etapa do desenvolvimento, costumam apresentar grande temor do poder da mãe, o qual é revivido em seus relacionamentos adultos com mulheres. Para tais indivíduos, as mulheres representam a síntese da vida e da morte, sentimento que experimentam com excessiva ansiedade durante o coito. Em outros casos, o menino percebe em sua relação com a mãe que somente receberá seu amor se mantiver uma atitude de absoluta submissão, recusando sua individualidade e aniquilando sua personalidade. Mais tarde, essa experiência poderá ser revivida pelo homem em seus relacionamentos com mulheres, gerando medo de se entregar a elas em uma relação sexual.

O apego do menino à sua mãe pode ser mais completo que o da menina porque, à euforia fusional vivida pelos bebês dos dois sexos, acrescenta-se uma estimulação que decorre da diferença dos sexos no diálogo corporal da mãe com a criança. Além disso, as fixações nas etapas iniciais desse relacionamento marcam mais os meninos porque, diferentemente das meninas, eles não dispõem, como elas, para se libertar, nem a troca do objeto erótico (no início a mãe, depois o pai) nem a identificação com a mãe, possibilitando experiências mediante as quais as mulheres dominam pela ação o que viveram, passivamente, quando pequenas. Não obstante, tanto na situação do menino como na da menina, a experiência erótica inicial com a mãe aciona o potencial para a excitação sexual. No entanto, a presença da figura paterna, complementando a relação com a mãe e marcando as diferenças de sexo e geração, oferecendo-se ao filho como modelo de identificação e à filha, como exemplo de companheiro, é indispensável para a conquista de uma segurança interna em suas relações com o sexo oposto, possibilitando desfrutar, na vida adulta, de uma atividade sexual prazerosa com o mínimo de angústia.

A privação paterna, por perda, ausência ou desvalorização, pode determinar uma estimulação sexual excessiva do menino, levando-o a acreditar que seu pequeno pênis é plenamente satisfatório para a mãe e a negar a diferença em relação ao pênis adulto do pai. Mais tarde, por carecer de uma identidade masculina firmemente estabelecida, tenderá a transformar as relações com mulheres em brincadeiras sexuais, limitando-se a repetir o jogo erótico desenvolvido na infância com a mãe. Os indivíduos com essas características se encontram entre as personalidades narcisistas que, com sua conduta sedutora, procuram conquistar mulheres maternais. Em contrapartida, um pai autoritário e punitivo pode contribuir para que o filho se sinta ameaçado ao se aproximar da mãe, vindo a desenvolver, na vida adulta, uma inibição sexual mais ou menos importante. Na menina, a identidade sexual apresenta estreita relação com a autoestima da mãe como mulher, promovendo o interesse da filha pelo sexo oposto como fonte de prazer. Portanto, são os pais presentes, ativos sexualmente e amorosos com o parceiro e a prole que, ao impor os necessários limites, estimulam nos filhos a sadia e competitiva identificação paterna e materna, base de uma identidade sexual bem definida. Os progenitores são os primeiros objetos de amor da criança, que concentra neles a totalidade das pulsões sexuais que anseiam por satisfação. Contudo, aos poucos, o prazer vai cedendo lugar à realidade, e as fantasias sexuais com os pais entram em um processo de repressão. O vínculo que permanece com eles constitui um amor de meta inibida, conforme chamou Freud (1930/1975b), determinando o surgimento da ternura nos relacionamentos. Na dependência das exigências instintivas da criança e da maneira como os pais se relacionam e lidam com a sexualidade dos filhos, podem surgir problemas nas relações amorosas da vida adulta, predominando a dificuldade de juntar ternura e prazer sexual em um mesmo relacionamento.

De qualquer maneira, a vida erótica, pela vinculação com o mundo de fantasias, criadas desde a infância, suas proibições e segredos constituem uma fonte de prazer quase inesgotável, em parte pela experiência de abrir mão das fronteiras físicas e emocionais que, no orgasmo, atingem seu ápice. No entanto, essa entrega, como referido acima, não se faz sem ambivalência e ansiedade, mas, quando existe confiança no companheiro, esses sentimentos são superados pela satisfação proporcionada pela relação sexual. Tendo em vista que a vida erótica, além de prazer, inevitavelmente estabelece certo nível de frustração, os relacionamentos conjugais mesclam sentimentos amorosos com agressivos, assim como de inveja e ciúme, porque, se amamos uma pessoa, é porque a valorizamos e não queremos perdê-la. Como consequência, uma combinação prazerosa de amor e sexo com a mesma pessoa, por vários anos, não é fácil de conseguir, por isso não podemos exigir perfeição nessa tarefa! É o que nos dizem os versos do poeta árabe Abu Hariri: "O que não se pode obter voando/ há que se alcançar coxeando/ A Escritura diz: coxear não é pecado", citados por Freud (1920/1975c) em Além do princípio do prazer.

Essa concessão às limitações humanas, expressa nesses versos escritos há muitos séculos, encontra um verdadeiro sentido na sociedade contemporânea, marcada pelo excesso, pela falta que acende a chama ardente do desejo. De fato, entendendo o desejo como a busca de uma satisfação interdita, conforme a clássica acepção psicanalítica, a liquidez dos afetos característica da pós-modernidade se apresenta como dificuldade a mais de aliar amor e sexo nos relacionamentos, como aponta o sociólogo Zygmunt Bauman no livro Liquid love: on the frailty of human bonds (2003). O ponto de vista de Bauman é que as relações amorosas estão, hoje, entre os dilemas mais penosos com que precisamos nos confrontar. Ele pensa que, nesses tempos líquidos, precisamos da ajuda de um companheiro leal, com se diz, "até que a morte nos separe", mais que em qualquer outra época. Mas qualquer coisa "até a morte" nos desanima e assusta: não se pode permitir que coisas ou pessoas sejam impedimentos ou nos obriguem a diminuir o ritmo da vida, cada dia que passa mais acelerado. Compromissos de tempo indeterminado devem ser evitados porque podem pôr em risco algo melhor no futuro. Contudo, sem esse comprometimento, e sem disposição para o autossacrifício em prol do parceiro, não se pode pensar no amor verdadeiro. Trata-se de uma contradição sem solução, porque o medo do futuro, principalmente o medo de acabar sozinho, não é menor que o medo de se comprometer. Diz o sociólogo que a esperança, ainda que falsa, é de que a quantidade pode compensar a qualidade: se cada relacionamento é frágil, então vamos ter tantos relacionamentos quantos forem possíveis!

Tendo em vista esse contexto, seríamos então levados a dar uma parte de razão ao antropólogo inicialmente citado ao considerar uma abjeção o sexo divorciado do amor? Afinal, não é por outra razão que o filósofo francês Gilles Lipovetsky (1987) considera a sociedade ocidental contemporânea "pós-moralista", a qual coloca o bem-estar pessoal acima dos ideais de desprendimento e devotamento ao outro. Apesar disso, ele não pensa que o melhor seja romper com o liberalismo conquistado a duras penas, mas torná-lo melhor, humanizá-lo, pois, apesar de todos os seus defeitos, nada melhor foi até agora apresentado. Quem sabe, com o tempo, possamos nos reencontrar com o amor que, na pós-modernidade, de acordo com a psicóloga Liliana Amaya, esconde-se nos sonhos dos corações inocentes...

 

Referências

Bataille, G. (1988). O erotismo. Lisboa: Antígona. (Trabalho original publicado em 1957).         [ Links ]

Bauman, Z. (2003). Liquid love: on the frailty of human bonds. Cambridge, UK: Polity.         [ Links ]

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Kundera, M. (1999). A insustentável leveza do ser. São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1984).         [ Links ]

Lipovetsky, G. (1987). L'Empire de l'éphémère: la mode et son destin dans les sociétés modernes. Paris: Gallimard.         [ Links ]

Paz, O. (1995). A dupla chama: amor e erotismo (2a ed.). São Paulo: Siciliano. (Trabalho original publicado em 1993).         [ Links ]

Quintana, M. (1973). Caderno H. São Paulo: Globo.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Gley P. Costa
Rua Mariante, 288/1308
90430-180 – Porto Alegre – RS
tel.: 51 3346-3032
E-mail: gley@terra.com.br

Recebido: 25/03/2011
Aceito: 04/05/2011

 

 

* Psicanalista e escritor, membro titular da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.