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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.34 no.52 São Paulo Aug. 2011

 

EM PAUTA - AMORES

 

"Desenredo" de Guimarães Rosa: descobertas de uma leitura1

 

"Disentanglement"of Guimarães Rosa: discoveries from a reading

 

 

Vera R. F. Montagna*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - SBPSP
Comitê de Cultura da International Psychoanalytical Association - IPA

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O conto "Desenredo" de Guimarães Rosa é tomado como ponto de observação nesta leitura, por condensar elementos carregados de enigmas, em sua memorável linguagem poética. Dada a sua complexidade, essa narrativa inusitada oferece ao leitor um convite para pensar as relações humanas de muitos ângulos, passando do sentimento amoroso, veiculado no plano expressivo, ao plano da construção, que ampara a fatura do próprio conto.

Palavras-chave: Desenredo, Guimarães Rosa, Atenção, Mobilidade, "Amor meditado".


ABSTRACT

The short story "Desenredo" [Disentanglement] of Guimarães Rosa written in a memorable poetic language is the aim of this commentary. Its unusual narrative with condensed and enigmatic elements is from many perspectives taken by the human relationship complexity: from the view of loving feeling expressions, either in the plan of the mobility of the word or in some aspects of the inner structure of the narrative.

Keywords: Disentanglement, Guimarães Rosa, Attention, Mobility, "Meditated love".


 

 

O escritor é descobridor, afirma Guimarães Rosa (1965/1994, vol.1, p. 41), tendo em vista a procura paciente e incessante da palavra, da imagem poética insubstituível, do encontro de sons e conceitos carregados de significados. Por essas e outras razões, os fenômenos decorrentes do diálogo entre o escritor e a elaboração de sua própria poética podem ser de imensa valia para o psicanalista. Não apenas porque uma obra literária amplia nosso conhecimento da alma humana, mas também porque condensa questões, das mais elementares às mais fundas, seja pelo procedimento literário, com seus diferentes modos de organizar, seja pelo trato peculiar dado à palavra que povoa o texto.

Mais que isso, sabemos que a linguagem poética pode nos auxiliar a pensar o impensável, por suscitar em nós o olhar para o novo. E esse despertar da nossa atenção para o elemento surpresa, aguçado por arranjos inusitados das palavras, por inversões, metáforas, presentes em uma obra artística, acontece em outro plano do conhecimento, isto é, na narrativa que se constitui no encontro analítico. É do conhecimento de quem exerce essa prática o papel fundamental que a "atenção"2 desempenha – ferramenta que auxilia o analista a apreender, intuitivamente, fenômenos decorrentes da experiência emocional, ou, ainda, para "capturar pássaros selvagens do sentido"3, posteriormente elaborados e compreendidos pela dupla analítica. Neste sentido, por condensar elementos carregados de enigmas, em uma linguagem poética memorável, um conto brevíssimo de Guimarães Rosa, "Desenredo", nos parece paradigmático. Tomado como ponto de observação, "Desenredo" provoca muitas inquietações no leitor e convida a pensar as relações humanas, em que se inclui o sentimento amoroso, por ângulos inusitados.

 

"Desenredo": dinâmicas do conto

A primeira leitura de "Desenredo" impacta o leitor, a começar pelo título, que por si só é portador de uma teia de significados, em que se inclui a própria relação com o fazer. Assim, na malha fina e imprevisível do conto, do começo ao desfecho, o leitor é capturado.

Nas linhas iniciais, inscreve-se abruptamente uma declaração de intenções, que é ao mesmo tempo uma espécie de oferenda: "Do narrador aos seus ouvintes" (Rosa, 1967/2001, p. 72).

Essa elocução concisa, que inaugura o relato, estabelece de imediato uma relação íntima e provocativa do narrador com o leitor. Convoca-o a participar, direta e ativamente, do que está por acontecer, e procura despertar a sua atenção como ouvinte, isto é, aguça o sentido do ouvir, não apenas do olhar, imprimindo a marca da oralidade ao que será narrado. Desse modo, explicita uma triangulação em movimento: autor-obra-leitor4 (Candido, 1959/1975, vol. 1, p. 16). Esse convite não é em vão, pois, como veremos adiante, terá desdobramentos significativos ao longo do conto.

Na sequência imediata dessa abertura, resumidamente, o narrador começa a fiar e a desfiar as aventuras e desventuras de duas personagens, Jó Joaquim e Livíria (nome que significativamente sofre mutações: Rivília, Irlivía, e, no final do conto, Vilíria). Por meio de triângulos amorosos, formados e desfeitos, que alimentam o relato, o narrador vai engendrando um tipo de brincadeira capciosa, em que a mobilidade de cada elemento que o constitui, cada palavra escolhida, desempenha um papel fundamental. Essa mobilidade se manifesta na própria construção, forjada com frases curtas, concisas, às vezes, monossilábicas, às quais o artista empresta caráter enigmático. Em nada trivial, esse sistema de articulações se processa em diferentes níveis de complexidade, transitando da relação individual para a coletiva.

Assim, valendo-se de vários recursos para criar sua palavra poética, e urdir a própria forma de narrar, o narrador empresta vocábulos e expressões da linguagem popular, da fala cotidiana e da erudita, estabelecendo por meio dela relações múltiplas e instáveis. Essa mobilidade, que se funde na linguagem lúdica do relato, nos faz lembrar as brincadeiras infantis de esconder e achar, de juntar e separar. Por outra face, permite pensar a elaboração solitária do adulto, depois partilhada, colocando em evidência o processo da operação imaginativa e poética. Desse modo, no fluxo do conto, somos surpreendidos por jogos de palavras, expressões de troça explícita, ou disfarçada (desejo de ocultar): "Não se via quando e como se viam." São muitos os elementos contraditórios, que formam no relato uma mescla contínua e ágil de justaposições contrastantes, e mais, que se alternam em diversas camadas e superposições. Assim, a narrativa se faz e refaz, se enreda e desenreda, em um ritmo de torvelinho. E, essa operação se dá em diferentes tempos da ação, configurando as personagens Jó Joaquim e sua amada por diversas modalidades de relacionamento amoroso.

Já dissemos que o conto nasce de modo repentino. Mas vale notar que essa prontidão imediata do narrador tem seu paralelo na descrição do encontro de Jó Joaquim com Livíria que, instantaneamente, faz nele pulsar a vida, o amor. Esse modo súbito da descoberta do amor pode ser pensado, como metáfora do encontro arrebatador do poeta com a assim chamada "inspiração" (a "Musa" do mundo clássico), que, nesse particular, aproxima o masculino e o feminino. É como se algo não dito, mas sentido, que emana, imanta e, inesperadamente, ligasse pessoas entre si; algo que nasce de modo abrupto, irracional, prenhe de mistério. E Jó Joaquim primeiro vive um amor imantado: torna-se amante de Livíria, e a seu modo passa a viver um "clandestino amor".

Foi Adão dormir, e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nessa observação, a Jó Joaquim apareceu./ Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás, casada. Sorriram-se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se. Voando o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento. Mas muito tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas. (Rosa, 1967/2001, p. 72)

Em um segundo momento, estabelecida a triangulação, sabemos que é o marido de Livíria que passa a viver uma das formas do "ciumento amor", na sua forma trágica. Assim, mata outro amante da mulher, que não era Jó: "Até que deu-se o desmastreio. O trágico não vem a conta-gotas. Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro... Sem mais cá nem mais lá, mediante revólver, assustou-a e matou-o" (Rosa, 1967/2001, p. 73). Após o episódio, ocorre uma separação dos amantes. Jó Joaquim, segundo o narrador, "reteve-se de vê-la". O narrador também nos informa o destino das personagens. Enquanto sua amada permanece distante, "Jó Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer, e foi para o decúbito dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas, devolvido ao barro, entre o inefável e o infando."... "Ele exercitava-se a agüentar-se, nas defeituosas emoções" (Rosa, 1967/2001, p. 73).

Nesse campo de limites instáveis, repentinamente, as posições se invertem. Sabemos que, de modo inesperado o marido morre e Rivília casa-se com o amante Jó Joaquim. Com isso, altera-se novamente a posição da personagem Jó. Ele, que de traidor tinha passado a traído, torna-se não mais um amante, mas marido de Rivília. Nesse universo de trocas constantes, Jó será novamente traído pela amada: "Imaginara-a jamais ter o pé em três estribos" (Rosa, 1967/2001, p. 73), diz o narrador, referindo-se à traição da personagem feminina.

Nesse terceiro tempo do relato, uma vez mais traída, a personagem masculina sofre por causa do desamparo e da solidão, provocados por desilusões amorosas e pela ausência da amada (objeto do desejo). A partir daí, investe sua busca, não mais diretamente pela mulher amada, mas indiretamente, procurando outro tipo de amor: "Era o seu um amor meditado, à prova de remorsos". E, no intenso e agitado andamento narrativo, o narrador introduz outros contrastes, por meio de frases breves, e de concisão vocabular. Ora formas interrogativas, ora negativas, sugerem ainda grande variedade de configurações: "Crível?", "Incrível?", "Mas.", ou, ainda, "Mais.".

Tal procedimento, gerador de convergência e de divergência, é reforçado na base, se considerarmos o som condensado, curto e aberto do monossílabo Jó (primeiro prenome da personagem), que se propaga em eco no segundo prenome, Joaquim. De outro lado, contrasta com a carga sonora, de múltiplas variações, presente nas designações da personagem feminina: Livíria, Rivília, Irlívia e Vilíria. Esses termos que se movem, por força das inversões praticadas, têm apoio sonoro, agudo, reverberado no uso da vogal i. As múltiplas sugestões pertinentes fazem lembrar uma clássica leitura do feminino5: la donna è mobile (da ópera Rigoletto, de Verdi). Por esses recursos (mas não apenas), nossa atenção é atraída por um canto sedutor. No caso, não só conduzido pelo jogo sonoro, que enreda de modo sedutor o quieto e respeitado Jó Joaquim, mas também é levado pelo ritmo sutil que parece envolver a personagem numa estranha dança aérea. Isso porque, dispondo as sílabas dos vocábulos em diferentes arranjos, o narrador extrai habilmente tonalidades à feição de zumbidos, que vão e vêm, num contínuo-descontínuo, como se isso fundisse mimeticamente a própria ação da narrativa.

O tratamento brincalhão, usado para configurar a amada de Jó Joaquim, permite montar e remontar o nome, compondo-o e decompondo-o de diversas formas: Livíria (li+viria) ou (li+vi+ria), Rivília (ri+vi+lia), ou Irlívia (ir+lívia) e (ir+li+via), ou ainda Vilíria (vi+li+ria). Além de explorar sonoridades que, por si sós, remetem ao movimento, o uso do infinitivo verbal – ir, vir, rir, ver e ler – associado ao nome próprio da personagem feminina, parece acrescentar a cada passo novos sentidos. O termo matriz, Lívia, de acordo com Silveira Bueno (1966) significa "pequenas moscas com cabeça quadrada e côncava" ou "nome próprio de mulher impertinente". Essas trocas-troças decorrentes de deslocamentos de sílabas e de vocábulos evidenciam a imediata união e desunião, promovendo dissolução de sentido pelo deslocamento sonoro. E, a cada novo sentido, abrem-se novos campos de ambiguidades. E os sentidos se desdobram no contexto em que se inscrevem. Assim, por exemplo, ao descrever a figura feminina, procurando destacar suas qualidades físicas, o narrador contrasta a beleza, a inquietude, a impertinência, a vivacidade e a doçura de Livíria, que encantam e seduzem Jó Joaquim. Não à toa, observa: "Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão".

Neste relato de condensação poética, caberia também ressaltar a inusitada substituição de palavras que o narrador opera ao lidar com os ditos populares. Nota-se, nesse particular, uma forja cheia de sutilezas e de humor, que parece obrigar o ouvinte a ficar desperto, tirá-lo da acomodação, surpreendê-lo, transformando o previsto (fórmula proverbial) em imprevisto: "Vai, pois, com a amada se encontrou ela sutil como uma colher de chá, grude de engodos, o firme fascínio. Nela acreditou num abrir e não fechar de ouvidos" (Rosa, 1967/2001, p. 73).

Vale salientar que, nessa trama tão inovadora, o uso de vocábulos negativos e o emprego da negação em expressões populares, que comumente são afirmativas, também desempenham um importante papel: "Nela acreditou, num abrir e não fechar de ouvidos" ou "a bonança nada tem a ver com a tempestade" e tantas outras (Rosa, 1967/2001, pp. 73-74).

Forjando a palavra já sedimentada pelo uso corrente, remexendo nas "ruínas do tempo", o narrador desacomoda-a de seu lugar habitual para apresentá-la sob uma nova forma. Com vigor renovado, prossegue atraindo a atenção do leitor. Essas operações imaginativas também fazem emergir o não-senso, criando desse modo outras ordens de significados inusitados. Ou, nas palavras do escritor, "denunciando ao mesmo tempo a goma-arábica da língua quotidiana ou círculo-de-giz-de-prender-peru". O não senso, explica ainda Guimarães Rosa em "Aletria e hermenêutica", "reflete por um triz a coerência do mistério geral, que nos envolve e cria. A vida também é para ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-senso. E a gente por enquanto só a lê por tortas linhas" (Rosa, 1967/2001, p. 30).

Com isso, instala-se a busca pelo novo (e não pela novidade), capaz de forjar símbolos autônomos e mobilizar novas redes de significados e complexidades.

Por esses e outros veios de sua complexa fatura e fina percepção, o conto "Desenredo" se mostra minuciosamente elaborado, tecido em diferentes tempos. Para dizer com Italo Calvino, "no tempo de Mercúrio e no tempo de Vulcano"6 (Calvino, 1988/1994, p. 66). Essa é uma parte da complexa labuta do escritor e da sua "alquimia" para poder fazer transformações da palavra falada em palavra escrita, o empenho de sua força criadora para dar vida a um mundo imaginário.

No caso de "Desenredo", a forma de amor instantâneo se transforma em "clandestino amor", secreto, "coberto a sete capas", como se a narrativa, ganhando corpo, se tornasse cada vez mais densa e novas camadas de sentido se entrelaçassem nas profundezas do texto, na medida em que outros elementos ou outras relações entram na ação. O mistério da trama pode se esconder em qualquer lugar, é o imprevisível, o elemento perturbador, aquilo que desacomoda e provoca turbulência: "Sempre vem imprevisível o abominoso? Ou: os tempos se seguem e parafraseiam-se. Deu-se a entrada dos demônios" (Rosa, 1967/2001, p. 73).

Em "Desenredo" o narrador explicita, e nos permite compreender, que esse árduo trabalho de criação se faz através de "pesquisas e de antipesquisas" no movimento de faz, desfaz e refaz, sempre renovado da língua, para mantê-la viva e não morta. E, nesse passo, acompanhamos o vai e vem dessa ciranda de ligações visíveis e invisíveis, em que Guimarães Rosa também enreda a palavra nas suas formas mais primitivas. E a roda vai da formação das palavras aos elementos da cultura popular, aos quais se juntam referências do saber acumulado pela linguagem culta e erudita, como já mencionado. Compreendemos assim como o poeta do vasto sertão e veredas da palavra explora o vasto da alma humana. Seguindo pela mão de Shakespeare (1600/1979, ato V, cena 1, p. 362), palavras de Teseu (o herói de Creta): ... "o louco, o amoroso e o poeta são feitos de imaginação,/ ... o olhar do ardente poeta, no seu formoso delírio,/ vai alternativamente dos Céus à Terra e da Terra aos Céus;/ e, como sua imaginação produz/ formas as coisas desconhecidas, a pena do poeta/ os metamorfoseia e determina-lhes/ uma moradia etérea e um nome"7.

Se buscarmos outro ponto de observação, descobriremos que a ligação de Jó Joaquim e Livíria reverbera, explicitamente, no primeiro casal bíblico do Gênesis, o mito de Adão e Eva, símbolo da primeira relação amorosa, e na vida de Jó (Jó, pp. 879-941), outro exemplo bíblico, tido como um símbolo da paciência e da fé, conforme relato inscrito no Antigo Testamento. No referido texto, Jó é posto à prova por Satanás. Seu sofrimento é atroz, "sua confiança é um fiapo no ar/ uma teia de aranha sua segurança" (Jó 8, 14).

Carregado de sabedoria, o narrador assegura: "Todo abismo é navegável a barquinho de papel". Buscando ultrapassar os limites e as distâncias, aproximar pelo improvável, a imaginação poética nos transporta para além do senso comum, como no "ar irreal o distante acena para o longínquo".

Desenrolando o fio da linguagem poética, movido pelo desejo8, o artista entrega-se ao trabalho imaginativo paciente, minucioso, para poder encontrar uma linguagem inédita. E nessa direção desempenha um papel fundamental de ponte entre a tradição e sua arte transformadora. Testemunhamos, assim, a forja do conto, a luta entre as personagens, os embates do poeta para conseguir estabelecer um diálogo interno fértil consigo mesmo, com as experiências acumuladas, para encontrar saídas inusitadas, e quem sabe superar contradições. Visto desse modo, não há retrocesso, já que o ato criativo não implica repetição de soluções passadas: "O passado é lição para se meditar e não para se reproduzir" (Andrade, 1922, p. 35). Essas lições contidas no "Prefácio interessantíssimo" de Mário de Andrade reverberam tanto na narrativa de Rosa, como na palavra poética extraída da Bíblia: "Pergunta às gerações passadas/ E medita a experiência dos antepassados./ Somos de ontem não sabemos nada" (Jó 8, 8).

Já dissemos que Jó Joaquim vive um estado de paixão, "o inebriado engano", e que, traído, afasta-se da amada. A sua dor se converte em busca, não direta, da figura feminina, mas em "amor meditado": "Era o seu um amor meditado, à prova de remorsos". Assim, a cada passo, as palavras sofrem transformações, vão se sedimentando na obra. Passa do lírico ao trágico, do pequeno e do frágil para o abissal; do íntimo para a vastidão do mundo. Tudo isso provoca ressonâncias àquele que as ouve e as acolhe dentro de si. E o leitor se descobre diferente.

 

O par amoroso

Ainda, no conto, o par Jó Joaquim e sua amada Livíria (figuras masculina e feminina), apresentando-se por muitos liames e nuances, parece também corresponder à relação do poeta com a "Musa". E esse eixo fundamental se ancora na impossibilidade de estabelecer ou de manter uma relação frutífera entre ambos, sob a égide da posse e do aprisionamento. Ao contrário, sabemos que todo ato criativo, por ser amoroso e germinativo, se apoia na interação dialética dos "objetos internos", e deles com o mundo, no exercício da subjetividade, da alteridade. Vale salientar que, nessa narrativa, nos defrontamos com diferentes contradições, próprias das relações amorosas. Por aí se observa que o objeto do desejo (Rivília) de Jó Joaquim (também possível metáfora do poeta) é constantemente conquistado, perdido, e transformado. Já a personagem feminina, caracterizada como móvel, fugidia, elusiva, pode ser pensada como uma imagem da própria palavra poética (ligada por um tênue fiapo à "Musa" de outrora), que segue procurando escapar do confinamento do lugar-comum. Aqui, em consonância com a força da imagem camoniana, temos no Canto III, 56: "Sintra onde as Náiades, escondidas/ nas fontes, vão fugindo ao doce laço,/ Onde Amor as enreda brandamente/ Nas águas ascendendo fogo ardente" (Camões, 1572/1980).

Sabemos que o tema da poetização da figura feminina, fugidia, do amor também fugidio, é bastante antigo, e o encontramos da Idade Média ao Romantismo. Como são outros os tempos, no caso de "Desenredo" o tema é trabalhado com visível malícia paródica. Assim, testemunhamos, através das desilusões amorosas das personagens, os reveses de vida que nos lançam da intimidade de um "clandestino amor" para o desamparo da amplidão do mundo. E acaso isso não nos faz defrontar com as fragilidades do ser e com seus enigmas? No doce laço de um tipo de amor, o narcísico, a personagem Jó Joaquim encontra-se enleado no encontro amoroso: "Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor". Essa relação súbita põe em movimento a ação que propulsiona o enredo. Mas Jó Joaquim, como se verá depois, terá de vencer o fascínio desse amor imantado, sabendo que não poderá permanecer aprisionado, nem poderá aprisionar sua amada.

No caso do escritor, vencer o fascínio do aparente é tentativa de "desembrujarse". Essa é também a luta incessante entre as forças narcísicas e o desejo de conhecer, de arrojar, de buscar o desconhecido. Em "Desenredo", a plasticidade da narrativa ganha formas inauditas se pensarmos que a palavra poética, sua musa, torna-se cúmplice do narrador, libertando-a, por malhas finas, das formas convencionais de dizer. Assim, acompanhamos nesse conto a genialidade de Guimarães Rosa no trabalho da escrita, servindo-se das sobras, dos fiapos da língua popular e da tradição culta, amalgamadas à experiência de vida "meditada", "matutada", tecendo e re-tecendo (como Penélope à espera de Ulisses), enredando e desenredando. ... "O ponto está em que o soube de tal arte: por antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos. Jó Joaquim, genial, operava o passado__ plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada realidade mais alta. Mais certa?" (Rosa, 1967/2001, p. 74).

Por esse registro, notamos que o artista apresenta, sob uma forma inteiramente nova, a potência criativa de sua arte, enunciada como saber provisório. Com sabedoria, o narrador indaga: "Mais certa?". Seguindo esse pensamento, emprestado à voz do narrador, o autor põe diante do "ouvinte" o avesso do tecido poético, desfazendo outros fios de sua trama negativa, porém reversível, para extrair do negativo a positividade:

... A bonança nada tem a ver com a tempestade. Crível? Sábio sempre foi Ulisses, que começou por se fazer de louco. Desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade ideia inata. Entregou-se a remir, redimir a mulher, à conta inteira. Incrível? É de notar que o ar vem do ar. De sofrer e de amar, a gente não se desafaz. Ele queria apenas os arquétipos, platonizava. Ela era um aroma./ Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia isso Jó Joaquim. Reportava a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas ... Demonstrando-o, amatemático, contrário ao público pensamento e à lógica, desde que Aristóteles a fundou. O que não era fácil como fritar almôndegas. Sem malícia, com paciência, sem insistência, principalmente. (Rosa, 1967/2001, p. 74)

Aqui, vale ainda enfatizar nesse território de ir e vir, no vira e revira do texto, o significativo emprego do vocábulo "aroma" que, lido a contrapelo, corre à semelhança de um palíndromo - amor-amora.

São muitos os recursos pelos quais o narrador evoca o ainda não formulado dentro de nós. Jó Joaquim, pacientemente, consegue desfazer ponto por ponto o que até então havia sido considerado um dado factual.

Pois, produziu efeito. Surtiu bem. Sumiram-se os pontos das reticências, o tempo secou o assunto. Total o transato desmanchava-se, a anterior evidência e seu nevoeiro. O real e válido, na árvore, é a reta que vai para cima. Todos já acreditavam. Jó Joaquim primeiro que todos./ Mesmo a mulher, até, por fim. Chegou-lhe lá a notícia, onde se achava, em ignota, defendida, perfeita distância. Soube-se nua e pura. Veio sem culpa. Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao vento. (Rosa, 1967/2001, p. 75)

Entendemos, pelo exemplo, o questionamento do próprio processo de criação do enredo. Ou seja, faz e desfaz o que está feito, revirando sentidos da ação, para que o relato mantenha sua coerência interna. Tal é o dilema que se apresenta para Jó Joaquim, pois tem de escolher o que fará com sua desilusão amorosa, com sua dor, e com isso recuperar a capacidade de sonhar. Visto desse modo, também o narrador tem de escolher, em meio à multiplicidade de formas de narrar, aquela que possa atrair o ouvinte-leitor, aguçando pela palavra poética e precisa a sua sensibilidade e o seu distanciamento, para conseguir que ele avance em sua companhia por um mundo criado pela imaginação.

Se couber um singelo paralelo, às avessas, podemos pensar que o analista em seu trabalho cotidiano enfrenta situação similar na recepção e no processamento emocional do que ouve. Nesse caso, seu papel é o de transformar em nova ordem aquilo que apresa. E assim busca capturar do que ouve ( de relato impreciso, tênue) um sentido profundo, recôndito, que não está dado. Como não se ocupa com o registro dos fatos aparentes, o analista também tem de gerar condições de manter, como enunciado por Ogden, um estado de mente "em que seus próprios sentimentos e pensamentos podem ser compreendidos como construções simbólicas" (1982/1990, p. 239, tradução livre da autora). Podemos considerar, metaforicamente, que essa relação (analista e paciente) complexa e dinâmica se afeiçoa ao modo que envolve o "amor meditado" - sem pressa, com paciência, sem insistência. Em outras palavras, nisso reside o intrincado jogo intersubjetivo, aliado ao diálogo interno entre partes do self, do analista com o paciente. Esse cuidadoso e lento trabalho permite capturar aqui e ali os elementos virgens ("pássaros selvagens do sentido"), expressos na atividade amorosa constante (rêverie, Bion, 1962/1998, pp. 35-36). Entendemos que por meio dela se dá o acolhimento das descargas de amor e ódio e o seu processamento, envolvidos no trabalho da dupla, para poder transformá-los em novos símbolos. O não processamento das projeções (identificativas, adesivas) nos leva ao "colapso do espaço analítico" e, ambos (analista e paciente), podem tornar-se enredados na teia do "confinamento dos signos conectados um ao outro por um senso de inevitabilidade opaca" (Ogden, 1982/1990, p. 245; tradução livre da autora). Além desses aspectos tão complexos, que envolvem a mobilidade do analista para estabelecer com cada paciente uma parceria fértil (mesmo que provisória), destacamos ainda a sua busca de uma linguagem singular, constantemente renovada, capaz de fomentar o desejo de conhecer e não o de controlar ou de gratificar.

Em "Desenredo", somos testemunhas de uma busca radical, que se manifesta na inquietude que acompanha o escritor na fatura de sua obra, ali "onde Beleza e Verdade se encontram". Trata-se do amor à palavra em busca de uma forma que lhe traduza sentidos, a cada vez por uma expressão única, por uma forma singular, na sua mais radical verdade, ainda que transitória.

Caberia notar, a essa altura, que o desfecho remete tanto às transformações de Jó Joaquim, ao reencontro e novo enlace com sua amada, e por sua vez se enreda no próprio movimento do fazer. O enredo entra em ação: "E pôs-se a fábula em ata" (Rosa, 1967/2001, p. 75).

 

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Endereço para correspondência
Vera R. F. Montagna
Rua Gracindo de Sá, 71
01443-080 – São Paulo - SP
tel.: 11 3062-0734
E-mail: veramontagna@uol.com.br

Recebido: 12/04/2011
Aceito: 04/05/2011

 

 

* Membro efetivo da SBPSP e membro do atual Comitê de Cultura da IPA.
1 "Desenredo", de J. G. Rosa (1967/2001).
2 Incluindo o conceito de "atenção flutuante" de S. Freud (1912/1958).
3 "Bion has made it very clear to us that the essence of thinking is symbol formation... The thing about poetry, is that it captures something … that seems to me to be a good metaphor for the way symbols are formed and they work: that they capture these wild birds of meaning" (Williams, 1995/2010b, p. 122).
4 Sugestão estabelecida a partir de A. Candido.
5 ... "Na Antiguidade clássica, Safo de Lesbos (séc. VII a.C.) já confessava: – como é versátil a alma da mulher! (1, 27, 13). Públio Vergílio Marão (séc. I a.C.) ..."como demonstrou sobretudo no canto quarto de sua Eneida (em que Dido se mata por amor a Eneias) é mais explícito: ... Varium et mutabile semper femina (En. 4, 569-570) – A mulher é sempre vária e instável"... (Brandão, J. S., 1987).
6 "O trabalho do escritor deve levar em conta tempos diferentes: o tempo de Mercúrio e o tempo de Vulcano, uma mensagem de imediatismo obtidaà força de pacientes e minuciosos ajustamentos, uma intuição instantânea que apenas formulada adquire o caráter definitivo daquilo que não poderia ser de outra forma; mas igualmente o tempo que flui sem outro intento que o de deixar as ideias e sentimentos se sedimentarem, amadurecerem, libertarem-se de toda impaciência e de toda contingência efêmera"(Calvino, 1988/1994, p. 66).
7 Skakespeare (1600/1979b), na tradução de Cunha Medeiros do original: / ... The lunatic,the lover, and the poet,/ Are of imagination all compact:/ ... The poet's eye, in a fine frenzy rolling,/ Doth glance from heaven to earth, from earth to heaven;/ And, as imagination bodies forth/ The forms of things unknown, the poet's pen/ Turns them to shapes, and gives to airy nothing/ A local habitation and a name.
8 Essa mobilidade do desejo, que percorre a narrativa, encontra uma correspondência no próprio vocábulo. O verbo "desejar", no latim primitivo, de acordo com Flavio Di Giorgi (1990/1995): "o verbo ‘aerusco', ele significava na verdade ‘ir atrás de', como um ar, como um vento, esse também sumiu, ficou cupio ... do verbo cupere,"desejar', que deu o português ‘cobiça', ‘cupido"(p. 132). ..."Vênus em latim significa antes de tudo desejo sexual ... O amor para os gregos é um deus de categoria primária, anterior a todos os deuses olímpicos, que é Eros" (p. 131). No referido texto, Di Giorgi explica: "Agora mais recentemente, depois da era clássica, em latim, uma outra palavra dominou o cenário de sentido do desejo, o verbo desiderare; desiderare que deu o português desejar, e dá o português desiderativo, e dá o próprio português, desejo ... Desiderare que vem da palavra sidus, sideris, que quer dizer‘astro', ‘estrela' ... Isso vem da linguagem dos adivinhos e arúspices, dos homens que tentavam interpretar o futuro de Roma. Eles tinham que observar os astros, e estabelecer relações desses com a vida humana ... Desiderare, isso era‘desistir dos astros'" (p. 133). A propósito, cabe outra reflexão, a de que o conjunto de significados que se concentra no vocábulo latino desiderium, que é objeto do desejo, contém um aspecto temporal que significa "saudade, nostalgia", como afirma Motta Pessanha (1990/1995, pp. 92-93).