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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.34 no.52 São Paulo Aug. 2011

 

EM PAUTA - AMORES

 

Voilà mon coeur: o gesto amoroso do analista

 

Voilà mon coeur: the loving gesture of the analyst

 

 

Maria Bernadete Amêndola Contart de Assis*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora usa como inspiração a obra de José Leonilson, Voilà mon coeur (1989), para falar do gesto amoroso do analista na relação com o analisando. Trata-se da disponibilidade do analista, em sua tarefa diária, para entregar-se à experiência emocional, que se apresenta para ser vivida na sala de análise. O gesto amoroso inclui disposição à profunda intimidade psíquica, à hospitalidade, ao exercício da capacidade negativa, da convivência permanente com fragmentos e escuridão. O gesto amoroso é também a tessitura cuidadosa, humilde e respeitosa do que foi esgarçado pelos traumas do viver humano.

Palavras-chave: Gesto amoroso, Disponibilidade do analista, Hospitalidade, Capacidade negativa.


ABSTRACT

Inspired in the work of José Leonilson, Voilà mon coeur (1989), the author deals about the loving gesture of analyst in your relationship with patient. Loving gesture is the analyst availability, in your daily function, to abandon yourself toward emotional experience presents in the analysis room. The loving gesture comprehends inclination to deep psychic intimacy, to hospitality, to exercise the negative capacity, living together fragments and darkness. The loving gesture is also the careful, modest and respectful tissue of disruptions induces by traumatic human experiences.

Keywords: Loving gesture, Analyst availability, Hospitality, Negative capacity.


 

 

A obra Voilà mon coeur (1989), de José Leonilson, e uma história contada por Adriano Pedrosa sobre a obra foram minhas inspirações para escrever este artigo. Nele pretendo falar sobre a disponibilidade do analista para viver-sonhar a experiência emocional com o analisando como gesto amoroso, que cria o campo possível para que o paciente vá a seu próprio encontro, ou o ser si mesmo.

 

 

Voilà mon coeur

O pequeno Voilà mon coeur mede 22 × 30 cm e consiste num pedaço de lona pintada de tinta acrílica dourada, com uma fina tira horizontal de feltro acinzentado em sua borda superior. Bordados na lona com linha azul-clara há vinte e seis pingentes de cristal lapidado, sobras de um candelabro quebrado. Sem chassi, o trabalho tem três furos na borda do feltro – um no canto esquerdo, outro no canto direito e um terceiro ao centro – que permitem a seu proprietário pendurá-lo por pregos numa parede. (Pedrosa, 1998, p. 20)

Voilà mon coeur é obra que contém tessitura, delicadeza, preciosidade, fragilidade, elementos que me remetem ao trabalho do analista em seus encontros com o analisando. O gesto de bordar, visto bem de perto, é um movimento de penetração em que a agulha esgarça o tecido, rompe estruturas para passar a linha; a agulha traz consigo um elemento "outro", estranho ao tecido, que vai preencher o orifício aberto na estrutura inicial e criar o novo. É metáfora para o trabalho empreendido em sala de análise: penetração, esgarçamento, traumatização e tessitura de sonhos (Nosek, 2009).

Em Voilà mon coeur, os cristais lembram algo frágil e precioso, à semelhança das mentes que se encontram no processo analítico. O estrangeiro que vem a mim e me solicita hospitalidade (Assis, 2010) está fragilizado por intenso sofrimento e aguarda que eu possa recebê-lo e respeitar sua singularidade, preciosa a si e a mim, que vou ter a oportunidade de contato com desconhecida subjetividade.

Uma associação mais com os cristais: eles são "sobras de um candelabro quebrado", o que me sugere transformação de fragmentos, que relembram uma catástrofe ou um acidente, em uma nova configuração, insaturada, fonte inesgotável de novos sonhos. Assim pode ser pensado o trabalho analítico: transformação de fragmentos provocados por traumas do existir humano, em configurações insaturadas que permitam inusitados sonhos. Além disso, por ter sido candelabro, lembra iluminação factual, realística, que se transforma em possibilidade de iluminação mental, de insight. Esse é um movimento constante na relação analítica, a transformação de elementos factuais em elementos oníricos.

O dourado da tinta, juntamente com os cristais, faz-me pensar em joia, que é por definição o resultado de um processo de transformação de matéria bruta, encontrada na natureza, em um produto da cultura. Em seus mais diferentes designs, as joias são pequenas obras de arte. Mais uma vez, a obra é metáfora possível para o trabalho analítico, que transforma matéria bruta preciosa em símbolos, palavras, imagens, riquezas mentais.

Todas essas associações reunidas podem ser resumidas no "Eis o meu coração", máxima que se apresenta quando analista e analisando se encontram para o trabalho diário.

 

Ouro de artista

No texto apresentado no livro sobre Leonilson, Adriano Pedrosa (1998) relata o seguinte episódio:

Voilà mon coeur foi exposto na Galeria Luisa Strina, em São Paulo, numa individual do Leonilson em 1989. Após ver o trabalho, conversamos justamente sobre esse ato de se expor ao público, dilema que parece perseguir o artista de espírito romântico. O expor o coração remete a Klee, que "você olha, é uma aquarelinha, mas ele tirou do coração e pôs na parede", ou ainda a Jesus Cristo, que "tirou o coração, deu para São João Batista e falou: ‘Aqui está meu coração, faça dele o que você quiser'". Entretanto, expor o coração é ato doloroso, sobretudo em tempos de cinismo e ceticismo, trazendo consigo e com frequência ambiguidade e contradição.
Na arte, então, a mercantilização desse coração não se dá livre de problemáticos desdobramentos. Não somos (tão) ingênuos: a arte é mercadoria. No outono de 1989, Voilà mon coeur havia sido vendido, pequeno ponto vermelho à esquerda de seu título na lista de obras expostas na Galeria Strina. Como suporta o artista, aquele que expõe seu íntimo, tal mercantilização? "É seu coração que está lá na parede", disse ao Leo um tanto impiedosa e ingenuamente, "você o pôs à venda". Não tinha eu na época consciência de que na realidade todos os seus trabalhos, quando não metáforas de seu coração, são metonímias de seu próprio corpo. Voltei ao Rio de Janeiro e dias depois recebi, pelo correio, em pacote pelo SEDEX. Dentro dele um pequeno trabalho de ouro e cristal; no verso li: "Voilà mon couer, il vous apartiens [sic], ouro de artista é amar bastante". (Pedrosa, 1998, pp. 20-21)

 

 

Essa história, relatada por Adriano Pedrosa, tocou-me profundamente. Sendo gesto de artista, teve para mim um valor performático, carregado de significado. Não se restringe à oferta de um presente a um amigo, é oferta de si ao outro, oferenda do próprio coração como alimento para alma de quem o recebe. Lembrei-me, uma vez mais, do trabalho do analista.

 

Ouro de analista

Como se sabe em psicanálise, a experiência emocional não pode ser concebida fora de uma relação (Bion, 1962/1980). Nosso ofício é estar com o outro, da forma mais íntima possível para uma mente humana, mesmo que esse outro, o analisando, não se saiba "outro", ou ainda que nos anule como "outro". Ainda assim, estamos juntos, em terras devastadas. Também com Bion (1963/2004a) sabemos que uma das dimensões do objeto psicanalítico, e um dos instrumentos da técnica analítica, é a paixão: "Entendo por paixão, ou pela sua falta, o componente derivado de L, H e K. Uso o termo para representar uma emoção experimentada com intensidade e calor, embora sem qualquer insinuação de violência: o termo paixão não deve transmitir o sentido de violência, a não ser que esteja associado ao termo ‘voracidade'" (p. 28).

A paixão é condição de estar intensa e calorosamente uno ao paciente e promover, a partir desse estado mental de uníssono, que o paciente possa estar em contato consigo mesmo, em uma penetrabilidade cada vez maior na experiência emocional (Ogden, 2010). Assim, o amor na relação analítica está associado à dimensão da paixão de que trata Bion. O gesto amoroso na relação analítica apresenta-se como disponibilidade do analista para viver com o paciente as experiências emocionais que se apresentarem na análise e criar condições para que elas sejam nomeadas, sonhadas, pensadas.

O analista recebe o paciente na sala de análise e dois movimentos básicos, associados a gesto amoroso, acontecem: um movimento de "ir em direção a", que se traduz por intenso investimento psíquico no outro; e um movimento em direção oposta e complementar, o de recepção do outro, que se traduz pela hospitalidade oferecida.

O analista disponibiliza todo o seu ser, sensorial e intuitivo, toda a sua capacidade de sentir, sonhar, pensar para receber o estrangeiro que chega (Derrida, 2003). Esse encontro com o outro é da ordem do incalculável, do imprevisível, do inusitado. Diante do desconhecido e da escuridão que acompanha esse encontro (Grotstein, 2010), apresenta-se o terror. O analista se dispõe a essa experiência e oferece-se para vivê-la com-paixão. O analista apresenta-se para sonhar "os sonhos não sonhados e os gritos interrompidos" (Ogden, 2010); dispõe-se a ter pesadelos e viver terrores noturnos. Expõe-se a ser "sequestrado" pelo paciente, para que esse possa Ser (Nosek, 2009). Sustenta incertezas, escuridão, ignorância... Ativa sua capacidade negativa (Bion, 1970/2006), introduz um "facho de intensa escuridão" (Grotstein, 2010) para "ver" melhor.

O analista se sujeita às oscilações do aproximar-se e evadir-se da experiência emocional que se apresentam na sala de análise; estar com o outro e distanciar-se dele, em movimentos de prazer e dor que, como ondas, invadem sua mente. Esse conjunto de disponibilidades é gesto amoroso, que abre possibilidades de construções férteis no vínculo.

Polacchini (2010), em texto que enfatiza as qualidades afetivas do analista, fala da generosidade do analista, presente na disponibilização da própria mente no encontro com o analisando. "A real presença do analista, disponibilizando com generosidade sua mente, sua afetividade transformada em capacidade de sonhar, pensar e comunicar é o modelo vivo do trabalho da ‘função alfa' nas vivências de ‘paciência' e ‘segurança' que modulam o encontro analítico" (Polacchini, 2010, p. 98).

Para estar nessa condição de hospitalidade e de investimento no outro, o analista faz anos e anos de análise pessoal, estuda incansavelmente, faz supervisões, participa de reuniões científicas, incrementa seu acervo onírico, embrenhando-se pelas mais diversas áreas da cultura. É uma busca contínua, permanente, consciente de seu vir a ser interminável. Tudo isso para si e para o outro. Gesto amoroso, apaixonado, necessário para que a análise evolua.

Quando faz uma notação, uma observação ou formula uma interpretação, por intermédio de imagens, metáforas e palavras, o analista não está, à semelhança do artista, oferecendo seu coração? Será que podemos dizer que o ouro do analista é "amar bastante"?

 

Eros, o mediador

Segundo Motta Pessanha (1987), em O banquete de Platão, Sócrates fala do Amor recorrendo a Diotima, que lhe revelara a natureza de Eros como um ser mediador entre deuses e homens, com um poder especial de interpretar e transmitir aos deuses o que vem dos homens e levar aos homens o que vem dos deuses. "Eros, mediador, tem a função de interpretar, de transmitir: é como a linguagem. Só que a linguagem que se tece na verticalidade: no relacionamento humano/divino" (Motta Pessanha, 1987, p. 97).

Diotima explica a natureza intermediária de Eros por sua origem: filho de Pênia (a Pobreza) e de Poros (o Expediente, ou Recurso). O discurso de Diotima a respeito da natureza dupla de Eros é o seguinte:

E por ser filho de Poros e Pênia, Eros tem o seguinte fado: é pobre, e muito longe está de ser delicado e belo, como todos vulgarmente pensam. Eros, na realidade, é rude, é sujo, anda descalço, não tem lar, dorme no chão duro, junto aos umbrais das portas, ou nas ruas, sem leito nem conforto. Segue nisso a natureza de sua mãe que vive na miséria.
Por influência da natureza que recebeu do pai, Eros dirige a atenção para tudo que é belo e gracioso; é bravo, audaz, constante e grande caçador; está sempre a deliberar e a urdir maquinações, a desejar e a adquirir conhecimentos, filosofa durante toda sua vida; é grande feiticeiro, mago e sofista. (Platão, 1962, p. 109)

É esse Eros que identifico presente na sala de análise. Eros filho de Pênia, que anda descalço pelos caminhos escuros da não representação, do vazio, do inominável; o Eros que, sem o conforto da representação, do abrigo e da continência (elementos oníricos), anda errante, muitas vezes coberto de farrapos, produto de vestimentas outrora suntuosas que sofreram algum tipo de catástrofe (os escombros mentais). Em sua oscilação constante entre a natureza materna e paterna, apresenta-se também na sala de análise, Eros filho de Poros, em busca de recursos de representação, de nomeações, de sonhos, de narrativas.

Por outro lado, se fizermos uma analogia entre o mortal como o sensório, os elementos ß, e o divino como o mental, os elementos ß, podemos também identificar a presença de Eros na sala de análise em sua função de mediador entre mortais e imortais, entre homens e deuses, na tessitura constante entre o humano-sensório e o divino-mental. Na oscilação entre sensível/ inteligível encontramos analista e analisando às voltas com fragmentos e composições, em um percurso árduo de nomear a experiência emocional. "Filósofo, Eros existe entre a ignorância e a sabedoria: é a permanente tentativa de passagem de uma à outra" (Motta Pessanha, 1987, p. 97).

Junqueira Filho e Sapienza, em "Eros, tecelão de mitos" (1997), escrevem sobre a função do amor: gerar cooperação entre os seres permitindo que cada um seja mais e ampliando sua reconciliação consigo mesmo.

A disponibilidade para interpenetração e intensa complementaridade exporá o casal analítico à mútua aprendizagem com dor mental. Dessa experiência emocional emanam conhecimentos e intuição analiticamente bem calibrada, que dão conforto genuíno ao existir. Essa é a permanente aposta que o par analítico renova a cada sessão e que Bion denomina Ato de Fé: ampla entrega e interdependência dos parceiros, sem perder os referenciais de funções diferentes, com vantagens mútuas que favorecerão sanidade e maturação mental para ambos. (Junqueira Filho & Sapienza, 1997, p. 189)

Os autores chamam a atenção para a falácia do continente "dadivoso provedor", sem limites, "vaidosamente cego", que produz mútua destruição do par analítico.

Eros, na sessão de análise, é promotor de co-operação, na vivência da penúria (não representação) e no expediente de buscar simbolização, distanciando-se assim de uma postura ingênua de do-ação, campo propício a atuações.

Retomando O banquete, comentado por Motta Pessanha, vale citar uma observação interessantíssima feita pelo autor: o diálogo sobre o amor tem como último personagem Alcibíades, que entra no banquete com ares dionisíacos, fazendo barulho e algazarra.

E o que confere incomparável amplitude filosófica à concepção platônica do amor é que, após a subida em direção ao plano da essencialidade e da incorporeidade, mas também da ordenação lógico-ontológica; após a submissão dos impulsos passionais de Eros a Apolo, através da intelectualização da paixão; após as sucessivas transferências sublimadoras – eis que paixão eclode no texto do Banquete: crua, ébria, selvagem, indomada. Agora, não mais a serenidade dos discursos – literários, científicos, retóricos, filosóficos. Agora o barulho, a música, o tumulto, a desordem, a embriaguez. O amor mostra outra face: é Acebíades que chega. (Motta Pessanha, 1987, p. 99)

Ora, esse movimento do repouso efêmero oferecido pela possibilidade da representação ao tumulto do não representado; do descanso oferecido pela interpretação à turbulência de novos intercursos (Nosek, 2009); o ir e vir de PS a D, é conhecido por todo analista praticante. O amor, em suas múltiplas faces, inclui o silêncio do acolhimento e o barulho da com-vivência com a turbulência.

Entendo esses movimentos como exercícios de contato com experiência emocional, evitando evasões, o que fortalece a mente para novas experiências, à procura de novas representações. Apolo (Sócrates, Platão, Diotima) e Dioniso (Alcibíades) apresentam- se na relação analítica, em uma dança cuja coreografia deixa entrever que ora um, ora outro é quem conduz o parceiro. Nas palavras de Ogden (2010):

A situação analítica, embora em muitos aspectos desestruturada, também tem uma qualidade de direcionalidadeque é oriunda do fato de que a psicanálise é antes de mais nada um empreendimento terapêutico com o objetivo de aumentar a capacidade do paciente de estar vivo para vivenciar ao máximo a plenitude da experiência humana. Voltar à vida emocionalmente é, a meu ver, sinônimo de tornar-se cada vez mais capaz de sonhar a própria experiência, que é sonhar-se existindo. (p. 24)

Assim, o amor de que falo na relação analítica não é o amor das relações afetivas interpessoais, do tipo X ama Y, mas o amor que é mediador, que abre possibilidades de ligação, de tessitura, tornando possível, como diz brilhantemente Ogden, sonhar os sonhos não sonhados e os gritos interrompidos, acolher e transformar os terrores noturnos para que eles possam ser pesadelos, e os pesadelos, para que possam ser sonhos (Ogden, 2010).

 

Capacidade negativa como gesto amoroso

Bion (1970/2006) cita Keats: "Capacidade Negativa, isto é, quando um homem é capaz de permanecer em meio a incertezas, mistérios e dúvidas, sem ter de alcançar nervosamente nenhum fato e razão" (p. 131).

Grotstein (2010) escreve: "O ser humano evoluído – o místico – é passível de ‘capacidade negativa', a tolerância de dúvida, frustração e incerteza, mas também é capaz de tolerar a cósmica ausência de sentido do ser (existência)" (p. 17).

Encontro em trabalho apresentado por Passalacqua (2011) a seguinte descrição de experiência clínica com um menino: "Entrava devagar na sala, com o olhar fixo num determinado ponto, permanecendo imóvel, calado. Mantinha-se intocável, e eu era tomada por uma sensação de nada: nada me ocorria para pensar, falar, agir. Ficávamos a olhar a esmo para lugar algum, como dois andarilhos vagando para lugar nenhum" (p. 13).

A disponibilidade para andar a esmo, suportando não recorrer a construções apressadas, é ato de paciência e generosidade, de um "estar para o outro".

Uma vez tendo considerado que o Eros que se apresenta na sala de análise é filho de Pênia e Poros, pode-se pensar que a realização a que corresponde o aspecto Pênia da presença de Eros é a abertura do analista para o não saber, para o mistério, para a dúvida; é a condição de suportar fragmentos, de sustentar desconforto, de estar na "penúria".

Lembram-nos Junqueira Filho e Sapienza (1997) que "As condições de tolerar vazio e incertezas darão suporte devido à paciência, perseverança, amor à verdade, para acontecer o nascimento de novas formas de ser e sua expansão cuidadosa" (p. 189).

Sabemos, com Bion (1970/2006), que o estado de sem memória, sem desejo e sem compreensão é fundamental para a fertilidade do processo analítico. "Pois consideremos o seguinte: se a mente do analista fica ocupada com aquilo que é ou não dito; ou com aquilo que ele espera ou não espera, isto significa que o analista não está permitindo que a experiência irrompa, especialmente no aspecto que vai além do som da voz do paciente ou da visão de suas atitudes" (p. 55).

Igualmente sabemos que esse é um estado que exige disciplina do analista e que é experimentado como um estado de terror.

O analista tem que se tornar infinito por meio da suspensão de memória, desejo e entendimento. O estado emocional de transformação em O é similar ao terror, conforme a seguinte formulação representa:

Como alguém que em solitária estrada
Assustado, aterrorizado, vai em sua caminhada;
E uma vez tendo se voltado, continua a andar,

Sem mais se voltar;
Pois sabe, um terrível demônio
De perto seus passos vai seguindo.

O "horrível demônio" representa tanto a busca por verdade como as defesas ativas contra ela – dependendo do vértice. (Bion, 1970/2006, p. 59)

Suportar esse estado mental, impregnado de terror, é o que promove a oportunidade de contato com a realidade psíquica do paciente. Entendo que parte essencial do processo analítico é renunciar à "riqueza" ilusória de um saber constituído e entregar- se, como ato de humildade, à dúvida e ao mistério. Ogden (2010) escreve que "é responsabilidade do analista reinventar a psicanálise para cada paciente e continuar a reinventá-la durante o curso da análise" (p. 22). Ora, está presente em tal afirmação o gesto amoroso, humilde e respeitoso de entregar-se à observação e à construção necessária a cada um, atento à singularidade. Trata-se da radicalização da hospitalidade: receber o outro como outro, em seu território pessoal. Em contrapartida, o saber anterior à chegada do outro é arrogante, é o negativo do gesto de amor e promove afastamento do analista em relação ao analisando.

Nosek (2009) afirma que a tarefa diária do analista inclui estar aberto ao estrangeiro sem pretensão de dizer quem ele é, mas de criar oportunidade para que ele seja.

O paciente entra na sala: inicia-se nossa tarefa. A pergunta poderia ser: Quem está aí? Quem sou? Estaríamos no campo da identidade, da busca da totalidade, da apropriação do objeto. Estaríamos no campo da ontologia ou do conhecimento positivo. De outra parte, se afirmamos que a ética é primordial, o gesto será diverso: será permitir a chegado do outro – permissão para sermos sequestrados, permissão para a existência do outro, permissão para que ele fale. (p. 16)

Esse estado de mente inclui a renúncia a satisfações imediatas, o que remete à ideia de Freud expressa em Psicologia de grupo e a análise do ego (1921/1976), que o amor se define pelo que acontece nos "intervalos", ou seja, o amor se define pela condição humana de se manter um vínculo nos intervalos em que o outro não é o objeto sexual para satisfação imediata de desejos. Nesse sentido, a análise acontece nos intervalos, em que toda a capacidade amorosa do analista é convocada e toda a renúncia à satisfação imediata é exigida.

A disponibilidade do analista inclui expor-se, o tempo todo, a ser anulado pelo paciente, em casos em que a presença do outro é insuportável para o analisando. Nos fenômenos de transformação em alucinose (Bion, 1965/2004b), tão comuns em sala de análise, encontra-se a anulação do analista (ou do paciente, pelo analista) como identidade alheia e estrangeira. Estar disponível para ser anulado é parte integrante de nosso ofício diário.

Esse conjunto de "recomendações" da psicanálise contemporânea compõe o que estou denominando gesto amoroso na relação analítica. Trata-se de uma espécie de "oferta de Leonilson", oferenda do próprio coração, no sentido da disponibilidade do analista para viver a experiência emocional que se apresenta na sala de análise e transformá-la em comunicação ao analisando: um processo contínuo de promover experiência humana de contato e construção de sentido.

 

Referências

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Recebido: 18/04/2011
Aceito: 04/05/2011

 

 

* Psicóloga, psicanalista, analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto e membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.