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Ide

versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.34 no.52 São Paulo ago. 2011

 

EM PAUTA - AMORES

 

Erotismo: e onde fica o amor?

 

Eroticism: and where is the love?

 

 

Luciana Saddi*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O erotismo do diário O caderno rosa de Lori Lamby, de Hilda Hilst, é fruto da transgressão no âmbito da literatura erótica. A pedofilia literária do livro reproduz a confusão de línguas, ternura e paixão, a que se refere Ferenczi, e problematiza a origem do amor - sentimento que costuma proteger os amantes da angústia de morte conjurada pelo erotismo.

Palavras-chave: Erotismo, Transgressão, Paixão, Ternura, Amor e morte.


ABSTRACT

The eroticism in the diary by Hilda Hilst entitled "Lori Lamby's pink notebook" is a fruit of transgression, in the realm of erotic literature. The literary pedophilia in the book reproduces the confusion of tongues, tenderness and passion, to which Ferenczi refers, and it puts into question the origin of love - a feeling that habitually protects lovers from the anguish related to death conjured by eroticism.

Keywords: Eroticism, Transgression, Passion, Tenderness, Love and death.


 

 

A sexualidade pode ser vista como uma quinta estação a atravessar o verão, o outono, o inverno e a primavera em nossas vidas. E, mesmo que a meteorologia ainda não a reconheça plenamente, podemos afirmar que ela possui umidade relativa do ar, insolação e temperatura própria. Seu clima não está necessariamente atrelado à sequência pênis, vagina, penetração e orgasmo. Seu maior atributo é o erotismo, que exige sofisticação das formas de prazer sexual e corações abertos para o desconhecido dos corpos, pele, mãos e línguas – e tudo o mais que nossa criatividade permitir. A imaginação, a encenação e as palavras são elementos importantíssimos dessa quinta estação, mas a transgressão é seu elemento fundamental.

A transgressão condensa e contrapõe o permitido e o proibido. O efeito erótico advém da união (permitido/proibido) e da superação da interdição pela transgressão. "O que é notável na interdição sexual é o fato de ela se revelar plenamente na transgressão" (Bataille, 1957/2004, p. 168). A transgressão, por sua vez, nos faz vislumbrar os itens fundantes de nossa civilização.

Os itens fundantes, segundo Bataille em seu ensaio O erotismo (1957/2004), dizem respeito às duas interdições universais: a morte e o sexo – ambos representantes da violência. A primeira interdição humana e histórica é expressa pelos rituais que ocultam o cadáver - o cadáver é testemunha simbólica da violência e da desordem que destrói a carne. Por isso, é preciso evitar o contágio com a decomposição e com a putrefação: nosso destino inelutável. Quanto à segunda interdição, o sexo em sua dimensão erótica, carrega o mesmo excesso da putrefação em sua convulsão extasiada da carne e acarreta em dissolução do Eu – o descontrole violento que o erotismo conjura o entrelaça à morte. Portanto, morte e erotismo devem ser ritualizados, devem ser domesticados de sua selvageria, sofrendo a interdição em nome da manutenção da vida de trabalho humana. As transgressões, como o sacrifício, a guerra e a tortura, o canibalismo e o sexo, são ritualizadas e permitidas somente quando essas forças de destruição são conjuradas em nome do sagrado, transcendendo o repugnante, a náusea e a angústia.

A tradição literária erótica joga com os elementos interdição e transgressão no campo da linguagem e da imaginação, o que nos protege de realizar crimes impensáveis, atos nauseabundos e detestáveis. A literatura nos permite experimentar certa dose de erotismo; transgredir, mas com menor risco de invasão de angústia.

No diário O caderno rosa de Lori Lamby, de Hilda Hilst (1990/2005), encontramos os atributos e os elementos citados anteriormente, por isso a obra é altamente erótica. Lori, ainda uma menina, conta sem nenhum pudor sobre seus prazeres sexuais com os clientes arrumados por seus pais e sobre seu amor ao dinheiro que recebe em troca desses momentos inesquecíveis. A personagem se coloca em um terreno anterior à moralidade, não sente culpa nem nojo, apenas experimenta sensações deliciosas e brinca livremente – pura bananeira é o modo pelo qual se refere às experiências narradas. Inocente e ingênua é o melhor retrato do que Freud (1905/1980) chamou de sexualidade infantil, perversa e polimorfa. Todos os prazeres são bem-vindos e interessantes – em sua iniciação ao mundo sexual não há náusea, medo ou angústia. A contraposição é dada pelo mundo adulto, o mundo dos porcos e da sacanagem, bandalheira - assim se refere a ele um dos clientes de Lori.

Mergulhados no duplo registro bananeira/bandalheira somos convidados a participar da confusão de línguas a que Ferenczi (1933/1992) se refere: linguagem da ternura e linguagem da paixão. Segundo esse autor, o abuso sexual ocorre por conta da confusão entre essas duas línguas. A criança em sua dimensão terna e ingênua busca a brincadeira de casinha, a atenção e o amor do adulto, já este busca viver a paixão sexual – o encontro se torna mais chocante ainda quando a criança não tem um adulto responsável a quem recorrer nessa situação ou quando os adultos negam a percepção da criança no clamor por ajuda e omitem cuidado. A violenta condição de dependência infantil é exposta cruamente por esse autor. O pecado e a bandalheira não são referências da criança e sim sinais da relação de interdição e transgressão e fazem parte da linguagem da paixão. A proibição, a sacanagem e a culpa são dimensões do adulto, assim como o êxtase e o gozo sexual. Nas considerações de Ferenczi, a culpa da criança abusada é fruto da introjeção da culpa do adulto abusador. No diário, Lori Lamby não sente nenhuma culpa, ela expõe sem pudor seus diversos prazeres sexuais e com isso desperta a dimensão infantil perversa e polimorfa do leitor.

Somos levados (excitados) pelas hábeis "mãos" de Hilst a viver a dupla dimensão abusado-abusador, ternura-paixão. Mas não há trauma, há espanto e despertar. O erotismo nessa obra é fruto dessa tensão, desse amalgamado, desse longo, proibido e delicioso beijo de língua entre as línguas da ternura e da paixão. Nós nos beijamos ao pronunciar o nome Lori Lamby, pois somos lambidos por uma intensa condensação da língua: o nome falado enche a boca com uma autolambida e atesta o que um dos clientes de Lori fala sobre as qualidades sexuais da personagem: nasceu predestinada a ser lambida. Também aponta para as possibilidades da língua portuguesa, que, registrada no caderno rosa, lambe e é lambida pelo leitor. Linguagem e sexualidade não se distinguem.

A obra desperta certa regressão à dimensão terna e infantil. Une a liberdade sensorial de Lori à censura moral dos adultos, entrelaçando a extrema violência pedofílica, sugerida pelo livro, ao brincar e à escrita. É que brincadeiras, palavras, histórias escritas ou contadas são elementos indissociáveis - o erotismo decorrente delas é produto e produtor de um salto civilizador, pois sofistica o campo da excitação e do ato sexual da mesma forma que a capacidade de simbolização contida nesses elementos, e atesta a existência da quinta estação. A literatura (e a linguagem) permite todos os prazeres, sendo ela mesma um deles, e talvez por isso alcance o estatuto de sagrada, pois pode profanar com qualidade estética invejável. E afinal reverenciamos, estudamos e adoramos as obras literárias. Procuramos nelas saber e conhecimento - a própria psicanálise a tem como análogo.

Então, seria pedir demais de uma obra literária que, além de nos introduzir no campo do erotismo pedofílico, nos iluminasse o campo do amor? Campo estranho, que escapa de nossas formulações, assim como o próprio sentimento. É que a personagem Lori se vê profundamente apaixonada por um de seus clientes, Tio Abel - ela o ama e a ele se entrega. O diário é escrito de forma crescente, assim como uma iniciação sexual; a menina, no início do livro, não pode ser penetrada – sua xixiquinha é pequena – e tem pouca experiência. Os jogos sexuais ganham corpo e ganham o corpo de Lori progressivamente. A virgindade da personagem, em decorrência de envolvimento erótico maior com o referido cliente, será trocada por boa soma de dinheiro e após maior conhecimento e experiência de prazeres. A garotinha então se apaixona, confessa seu amor nascido no êxtase dos prazeres carnais junto ao Tio Abel. O que pode nos levar a pensar que o amor está em uma relação particular com o erotismo e não apenas na relação com a proteção e com o cuidado. Freud afirmou: "Essa supervalorização sexual é a origem do estado peculiar de uma pessoa apaixonada, um estado que sugere uma compulsão neurótica, cuja origem, pode, portanto, ser encontradanum empobrecimento do ego em relação à libido em favor do objeto amoroso" (1914/1980, p. 105).

Daí é possível entender que a paixão nos torna dóceis, pois significa submissão ao objeto de amor, idealizado, como Tio Abel em sua beleza.

O diário (a provocação nele embutida) retira a fina camada de pele que reveste o amor em nossa civilização, expõe que o erotismo participa desse mais elevado sentimento. Isso já fora observado por Freud:

O estar apaixonado consiste num fluir da libido do ego em direção ao objeto. Tem o poder de remover as repressões e de reinstalar as perversões. Exalta o objeto sexual transformando-o num ideal sexual. Visto que, com o tipo objetal (ou tipo de ligação), o estar apaixonado ocorre em virtude da realização das condições infantis para amar, podemos dizer que qualquer coisa que satisfaça essa condição é idealizado. (1914/1980, p. 118)

O amor permite entrada livre no mundo interdito. Os parceiros sentem prazeres que jamais sentiriam se não estivessem juntos nessa empreitada perigosa - seus atos jamais se tornam obscenos. O amor confere uma aura sagrada ao profano e possibilita abusar do erotismo sem náusea nem medo e com cumplicidade. Assim atesta a carta de Tio Abel para a pequena Lori, uma carta de um adulto sexualmente excitado, que idealiza seu objeto sexual, mas que, ao ser lida pela menina, que nada censura, ganha ares de carta de amor romântico.

O amor, segundo o cineasta Ingmar Bergman no filme Morangos silvestres, é a união do erotismo com a amizade. O amor protege os amantes do sentimento de morte que o erotismo conjura, da mesma forma que os cuidados maternos protegem a criança da angústia de separação. Esse amuleto possibilita penetrar ousadamente nos mais estranhos vãos da sexualidade e acreditar que se possa de lá sair ileso.

 

Referências

Bataille, G. (2004). O erotismo. São Paulo: Arx. (Trabalho original publicado em 1957).         [ Links ]

Freud, S. (1980). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 7). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905).         [ Links ]

Freud, S. (1980). Sobre o narcisismo: uma introdução. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 14). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1914).         [ Links ]

Ferenczi, S. (1992). Confusão de línguas entre os adultos e a criança. In S. Ferenczi, Obras completas (Vol. 4). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1933).         [ Links ]

Hilst, H. (2005). O caderno rosa de Lori Lamby. São Paulo: Globo. (Trabalho original publicado em 1990). (Coleção Obras reunidas de Hilda Hilst).         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Luciana Saddi
Praça Morungaba, 66
01450-090 - São Paulo – SP
tel.: 11 9983-7195
E-mail: lusaddi@uol.com.br

Recebido: 18/04/2011
Aceito: 04/05/2011

 

 

* Luciana Saddi é psicóloga, psicanalista membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, mestre em Psicologia Clínica pela PUCSP. Foi titular da coluna "Fale com ela" da Revista da Folha (2007-2010) e é autora dos livros O amor leva a um liquidificador (Casa do Psicólogo) e Perpétuo socorro (Jaboticaba). É responsável pelo blog e pelo programa de rádio "Fale comigo", hospedados na Folha.com.