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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.34 no.52 São Paulo Aug. 2011

 

EM PAUTA - AMORES

 

Amores, uma viagem rumo ao desconhecido (Crônica)

 

Loves, a journey towards the unknown (Chronicle)

 

 

Clarice Niskier*

Endereço para correspondência

 

 

... Quando criança brincava sozinha de inventar línguas, cenas, histórias e, de repente, eu chorava e ria e me deslumbrava e me assustava. Um dia, descobri o teatro. O que eu fazia secretamente tinha um lugar no mundo. Produzia conhecimento. Nunca mais abri mão de inventar, de fantasiar, de imaginar, de estimular a livre associação de idéias, seja atuando, escrevendo ou, principalmente, vivendo.

Tenho 51 anos e pouquíssimas viagens intercontinentais no meu currículo. Pertenço ao time dos que nasceram com pavor de avião. Conheço bem o Brasil, mas o exterior, como se dizia no tempo das minhas bisavós, não. Fui melhorando desse medo aos poucos. Aos 36 anos conheci Portugal, quando me apaixonei por José Maria, hoje meu marido, na época o namorado por quem eu realmente estava disposta a dar a vida. Senão, por que entraria num avião? Músico, ele se apresentaria em Lisboa, queria que eu viajasse com ele. Alguns anos depois conheci São Francisco, na Califórnia. Fui a São Francisco apresentar a peça Buda para a comunidade brasileira de lá, a convite de uma jornalista amiga. Era uma viagem de apenas dez dias, meu filho na época com quatro anos ficaria com meu marido (meus pais, minha sogra, minhas irmãs, minhas rezas, minhas mil e uma recomendações). Eu estava bem orgulhosa de apresentar meu trabalho no exterior. Queria muito ir. Parênteses: vou contar uma história. No dia da viagem para São Francisco, acordei me sentindo toda corajosa. Uma amigona viajaria comigo para operar o som da peça. Está bem: iria cumprir o papel fundamental de anjo da guarda no avião. No dia da partida, meu marido nos levou ao aeroporto. A queda das Torres Gêmeas tinha acontecido um ano antes, a barra estava muito pesada, o clima para viajar para os Estados Unidos era péssimo. Minha mala, sem nenhum cadeado ou lacre. No check-in, despachando a bagagem, disse ao funcionário da American Airlines, bem descontraída:

- O senhor pode colocar um lacre para o pessoal da Alfândega em Miami não mexer na minha mala?

Sem colocar lacre nenhum, ele disse:

- Em Miami, se eles quiserem, vão passar uma faca na sua mala e rasgar os forros dos casacos para ver o que tem dentro, entendeu?

"Qual o compromisso que eu tenho com a comunidade brasileira de São Francisco? Nenhum. Não vou mais", disse ao meu marido e à minha amiga. "Vou devolver agora o dinheiro das apresentações." "Ele está brincando", disseram. "Brincando é o cacete."

Só fui porque meu marido me empurrou para dentro do avião e lá estava meu anjo da guarda, agora não só para aplacar o meu medo de avião, mas também o da faca implacável do homem em Miami. O mesmo anjo que no aeroporto de Miami ficou detido por mais de duas horas, pois constava um probleminha em seu passaporte. E enquanto eu esperava naquela cadeira fria de aeroporto minha amiga ser liberada, confortada apenas por minha mala sem lacre, e intacta, ouvia repetidas vezes os conselhos das mulheres da limpeza:

- Su amiga va a ser deportada para Brasil. Es mejor que sigas viaje, si no vas a perder el avión. ¡Si puedes, se tienes una visa para viajar, sigas! ¡Sigas!

Mis pensamientos giraban. Olhava quieta de ódio para elas:

- Jo me quedare aquí sentada como una mujer honrada, sus traíras.

A história teve final feliz. Cheguei a São Francisco ao lado da minha amiga, as apresentações foram maravilhosas, conhecemos a rua onde morou Janis Joplin, sentimos o vento frio nas orelhas na famosa Ponte do Portão Dourado (Golden Gate Bridge), agasalhadas por nossos casacos gentilmente forrados sem cortes nem cicatrizes, e, quando voltei ao Brasil, reencontrei marido e filho sãos e salvos, quer dizer, eu sã e salva reencontrei marido e filho. Meu anjo da guarda (amo você, Fernanda) cumpriu com louvor sua tarefa de sustentar o avião por entre as nuvens com suas asas fortes e resistentes. Mas o que quero dizer com tudo isso? Pediram que eu escrevesse um texto sobre amores. Então: amores. Essa viagem rumo ao desconhecido. Você ama e lá está você enfrentando os seus medos. Você ama e lá está você pensando em espanhol sem nunca ter falado espanhol. Você ama e lá está você imigrando. A cada amor, você está apenas iniciando um novo caminho. A cada amor, a vida está apenas recomeçando. Sua identidade, se ampliando. A cada amizade também. Há muitos desafios nas velhas amizades. Foi dada a mim a bênção de uma amizade de mais de quarenta anos. (Débora, não chore: eu amo você.) Aproveito para dizer também que viagens para outros países não são vistos condicionais para a grande viagem ao redor do mundo imaginário, da criação, dos sentimentos mais íntimos. Sim, às vezes, muito pelo contrário. E acho que quero dizer também que foi através dos meus medos, mais do que através das minhas coragens, que percebi quando os meus vínculos afetivos estavam rígidos demais ou frouxos demais. A questão do vínculo com o outro, dos relacionamentos, é crucial, move o mundo, determina suas viagens ao exterior, ao interior, é causa dos maiores tormentos ou dos maiores prazeres do mundo. É necessário ajustar esses vínculos constantemente, como digo na peça A alma imoral, texto adaptado do livro homônimo de Nilton Bonder. "Contratos honestos entre duas pessoas só existem se forem constantemente redefinidos", como diz o rabino em seu livro.

Amores podem ser líquidos, sólidos, gasosos ou etéreos. Cada geração construirá seu desenho no tempo e no espaço. O que sei neste momento: não pode haver ausência de sentimentos, sensações, emoções reais nessa matéria. Não pode haver ausência de troca real com o outro. Não deve essa matéria tão preciosa se tornar massa mecânica, ou tão somente virtual, ou tão somente movida a álcool, a coca, a puro divertimento, ou pior, a pura loucura, violência, doença. Os prazeres contidos nessa matéria não podem ser movidos tão somente por combustíveis caríssimos à saúde. Pelo contrário, os prazeres devem ser nutridos por combustíveis de energias sustentáveis. Sou pela sustentável leveza do ser, apesar das angústias, medos e apreensões. Vai lá saber se não é justamente por ter se tornado massa mecânica, sem afeto, que tantas matérias tombam de tantos lugares e alturas tragicamente no chão? Como viver sem afeto real? Sem dar as mãos? Nossas experiências são pontes para algo que transcende a nós mesmos. Jamais saberemos o que virá. O jogo é esse. Para todos. Se estivermos em roda, melhor.

Quando conheci o Zé, estava bastante machucada. Separada do segundo marido, sofria. Eu me separei para viver uma aventura, vivi, quis voltar, ele me mandou tomar banho. (Fiz a síntese da síntese.) Vivia uma liberalidade que imitava a liberdade e gerava a dor de solidão. Fiz muita terapia para compreender isso. Tudo podia tudo era bom de experimentar. Eu me separava dos companheiros e entrava na arena dos touros como se tivesse muito treino em touradas. Corri muitos riscos, levei muita porrada. Grande toureira de improviso que eu era. Sim, tudo vale à pena quando a alma não é pequena. Contei minhas histórias em várias peças de teatro. Ouvi o público rir de coisas que me fizeram chorar. Tudo certo. Mas que eu estava machucada, dolorida, além da conta, estava. No início tudo faz sentido, mas, se não prestarmos atenção, você vai se dublando no decorrer da vida. O ator Walmor Chagas me disse isso uma vez: "Se não prestarmos atenção, nós atores começamos a nos dublar no palco". (Não, viver não podia ser isso, tinha de ser algo, além disso. Envelhecer não podia ser isso, uma dublagem malfeita de si mesmo, tinha de ser algo muito além disso.)

Zé, meu marido, também era um homem machucado. Assim entendo o Zé daquele tempo. Um homem afetivamente machucado, separando-se do quarto casamento, exausto. Nós precisávamos muito mais do que vida sexual ou laços líquidos. Precisávamos de um caravançará acolhedor, em que pudéssemos descansar repor as energias, em que pudéssemos olhar as estrelas com calma, rir, chorar, gozar e voltar a chorar aliviados, no colo de um encontro afetuoso no meio desse deserto que é a busca de equilíbrio de uma vida a dois. Uma travessia que se faz com paixão também necessita de refúgios de reflexão para saber como seguir adiante sem que a morte precoce ou o abandono estejam sempre ameaçando.

Zé e eu já deixamos o caravançará há tempo. Caravançará: abrigos ou refúgios no meio do deserto, construídos por pessoas piedosas para acolher os peregrinos e suas caravanas. Revivi essa palavra através do livro O homem que calculava de Malba Tahan. Lia esse livro amorosamente para o meu filho à noite, quando ele se deitava para dormir.

E agora, aqui estou eu me preparando para a minha terceira viagem ao exterior. Adoro esse termo, é ingênuo, infantil e significativo para mim. Há três anos estou na ponte aérea Rio-São Paulo. Moro no Rio e a peça A alma imoral está em cartaz em São Paulo, iniciando seu quarto ano de temporada. Voo como se pegasse um ônibus de um bairro a outro. Quem diria? Claro que sempre escolho um anjo da guarda entre os passageiros. Mas, às vezes, o anjo da guarda é o próprio piloto, copiloto, a certeza de que a companhia aérea tem o maior interesse na manutenção do avião, às vezes me sinto protegida pela inteligência humana, pela Ciência, pela genialidade das grandes invenções humanas: olha como evoluí! Meu casamento completou catorze anos no ano passado. Temos agora residência fixa, filho, cachorro, tartaruga, muitas contas a pagar, rotina, brigas, mas a paixão continua a mesma. Tá bom, a mesma não. Hoje talvez estejamos mais vinculados à vida como jamais estivemos. Sim, nosso casamento foi a ponte para nos ligarmos mais á vida, individualmente. Ao lado do Zé, trilho um caminho realmente novo. Vou tateando maneiras novas de resolver as coisas. Ou vou resolvendo as coisas finalmente à minha maneira sei lá. Sigo um pouco mais segura rumo ao desconhecido. Aliás, foi exatamente esse o sentimento, depois de vinte anos ininterruptos de análise ao lado de Marly Lages, no Rio. Disse a ela durante o processo de alta: "Agora, sigo um pouco mais segura rumo ao desconhecido". (Obrigada, Marly, foi um processo transformador, esclarecedor, muito pelo que me disse e mais ainda pela sua atenção amorosa. Obrigada pelo seu olhar, pelo seu silêncio, pela sua emoção. Saudades da sua atenção comovedora que moveu os moinhos da minha vida. Um texto sobre amores não poderia deixar de incluir você.)

Então, é esse o sentido real dos relacionamentos? Pontes para a ampliação do nosso amor à vida? Todo amor verdadeiro, todo vínculo, todo encontro nos traz de volta a esse contato íntimo? Todo caravançará? Todas as verdadeiras aventuras ao exterior? Todas as esperas nas alfândegas do equilíbrio? Todas as viagens ao nosso mundo imaginário? Tudo é busca pela vida? Toda meditação, toda reza, todo teatro, todo sexo? Será esse o sentido quando a história sacrifica uma geração inteira e deixa o legado de luta pela sobrevivência à geração seguinte? No final de tudo, sempre isso? Um amor imenso à vida? Quando filósofos tentam entender a modernidade, os vínculos líquidos, a morte, tudo para se perguntar - e a vida, onde está a vida? Triunfamos quando sentimos a vida? Tantos desafios para morrermos apaixonadamente agradecidos por termos conhecido tão bela paisagem? Tão bela passagem? Para morrermos agradecidos por tantos amores? No final, tudo para isso? Para podermos gritar que sentimos a vida? Conseguimos tocá-la? Pois só sentindo para conhecê-la? Esse é o sentido de cada trabalho? De cada encontro? De cada livro? De cada superação? De cada saída do abismo? De cada filho amado? Tantos e tantos amores para enfim reconhecer isso? Meus amores são pontes rumo ao infinito continente que sou?

Temos medo de que provas mais duras invadam sem avisar nosso continente. Colocar à prova nosso amor à vida é a batalha constante. Talvez a mais urgente, mesmo quando tudo são flores. E que meus entendimentos não sejam entendimentos líquidos!

Que cada um faça sua reflexão, sua apresentação, sua viagem. É bom ir, é bom voltar, é bom chegar. Possa meu continente ter histórias, saudades e, sempre, novos vínculos. Há muito futuro pela frente. Às vezes é mesmo difícil de acreditar. Mas há. Um dos lugares onde mais enxergo o horizonte é o teatro. Um dos lugares mais amorosos que conheci na minha vida, de iniciação, de onde sempre saio cheia de futuro. Onde espero um dia morrer de amor.

Espero? A frase se escreveu por conta própria. Não vou deletá- la. Ela me delata. Se você leitor ou leitora for da área psi, por favor, meu e-mail é clariceniskier@gmail.com, envie sua interpretação. Acho que quis plagiar Winnicott: "Quero estar bem vivo na hora da minha morte" - não foi ele quem disse isso ou algo parecido? Reconheço que muitas vezes é no palco que estou mais viva, mais atenta, mais amorosa. Longe da desatenção do dia a dia. Ouso escrever o verso - e no princípio criou Deus a atenção, a gênese do amor.

Fico imaginando, se quando me desplugarem da terra, e eu- -chegar-sabe-se-lá-Deus-onde, quer dizer, eu não, o não-eu-chegar- sabe-se-lá-Deus-onde bem atento, se essa atenção não facilitaria o meu retorno, o meu não, o retorno. Explico (explico?): dentro do ovo cósmico pode acontecer a mutação necessária para que o não eu renasça como um novo ser, um ser mais evoluído, mais amoroso. Se o não eu estiver bem atento, não vai pousar em qualquer eu, muito menos em mim, pousará num novo eu, mais evoluídos, e assim, juntos, viverão novos amores. Mágicos, selvagens de doer, doer de tão bom. Cada amor mais intenso que o outro, mais intenso que o de Tristão e Isolda. Mas, por que não (o sonho), cada vez menos trágicos. E, assim, nesse ciclo vida-morte-vida (tão bem descrito no livro Mulheres que correm com os lobos, de Clarissa Pinkola Estés, que estou relendo) poderemos experimentar eternamente tantos amores quantos forem necessários para criar as pontes douradas da existência. Desculpem esse grand finale, mas aconteceu. Amém. Amores: aliás, título de uma bela peça e de um belo filme dos quais participei, do amoroso diretor Domingos Oliveira.

 

 

Endereço para correspondência
Clarice Niskier
Av. Viúva Lacerda, 249/ bloco 3/ ap. 603
22261-050 – Rio de Janeiro - RJ
tel.: 21 2527-6629
E-mail: clariceniskier@gmail.com

Recebido: 18/04/2011
Aceito: 04/05/2011

 

 

* Clarice Niskier é atriz. Teve seu primeiro conto publicado pela Revista Ficção (RJ), na década de 1970. Trabalhou como repórter no extinto Jornal do Brasil (RJ). Atriz colaborou na peça Confissões das mulheres de 30, publicada pela editora Objetiva, em 1994. É autora do monólogo Buda, encenado em 2002. Ao lado de Domingos Oliveira, escreveu a peça Confissões das mulheres de 40, encenada em 2003. E é a autora da adaptação teatral do livro A alma imoral, de Nilton Bonder, em cartaz no Cultura Artística-Itaim (SP), em 2011.