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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.34 no.52 São Paulo Aug. 2011

 

RESENHAS

 

Amores e casamentos em tempos de transformação social

 

Loves and marriages in social changes time

 

 

Hang-Ly Ikegami Rochel*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - SBPSP
Núcleo de Psicanálise de Campinas - NPCR

Endereço para correspondência

 

 

Costa, Gley P. O amor e seus labirintos. Porto Alegre/São Paulo: Artes Médicas, 2007. 175 p.

Depois de fazer uma sinopse histórica do casamento a partir da Idade Antiga até os nossos dias, destacando sua evolução quanto aos aspectos emocionais e socioculturais, Gley P. Costa propõe questões relativas ao relacionamento amoroso, lançando sobre elas um privilegiado olhar psicanalítico de clínico experiente. Dentre outras, há questões sobre por que casamos com quem casamos, sobre a monogamia, o amor e o sexo no casamento, a infidelidade, o amor homossexual, o amor líquido, o amor virtual, separação, viuvez, o amor materno, amor e dinheiro, e sobre, afinal, o que vem a ser o amor? Enfim, uma bem-composta rede de interrogações a respeito daquilo que chamou, em seu título, de "o amor e seus labirintos".

Discorre sobre o amor na teoria freudiana destacando a noção de libido como a energia que brota das pulsões sexuais, firmando a relação definitiva entre amor e sexualidade. Busca subsídio em Freud: "... quando se vê a criança saciada abandonar o seio, voltar a cair nos braços da mãe e, as faces vermelhas, sorrindo, feliz adormecer, não se podem deixar de identificar nessa imagem o modelo e a expressão da satisfação sexual que conhecerá mais tarde. A criança no seio da mãe é o protótipo de toda a relação amorosa. Encontrar o objeto sexual é, em suma, apenas reencontrá-lo".

Continuando, expõe sobre as duas formas de amar: o amor narcísico, primitivo e infantil, e o amor objetal, este com tendência ao amadurecimento. E nos põe diante da questão da paixão, caracterizada pela transferência de grande quantidade de libido para a pessoa amada. Mesmo se configurando como uma situação de amor por outro, trata-se de uma forma narcisista de amar, pois, no caso, o objeto não é mais que uma extensão do próprio sujeito. A paixão (pathos) é relacionada a um estado de enfermidade mental caracterizada pela idealização maciça do objeto de amor e total cegueira em relação à realidade por parte do sujeito. Reportando-se à metáfora mitológica, é como se o indivíduo apaixonado dissociasse Pobreza (Penia) e Recurso (Poros), as duas divindades que geraram Amor (Eros), permanecendo identificado com a primeira e projetando no objeto a segunda.

Em seu romance Os sofrimentos do jovem Werther (1774/2010), Goethe nos coopta, de maneira genial, para a tragédia passional que se anuncia: a vida de Werther passa a se confundir com a paixão por Charlotte e sua impossibilidade o leva ao suicídio. Portanto, existiria paixão fora da individualidade? A paixão seria, essencialmente, um sentimento solitário?

Ao abordar o tema casais, Gley P. Costa introduz aquilo que chama de "o mais marcante e fundamental paradoxo do casamento: trata-se do interjogo identificatório que se estabelece na relação conjugal e que leva os cônjuges a desistir de certos aspectos de sua identidade e a se identificar com certos aspectos do outro, depois de passar pela dor mental determinada pela descontinuidade das identificações parentais. Mas essa identificação com o outro cônjuge deverá mantê-lo seguro de que segue sendo ele mesmo, que não perdeu sua autonomia, apesar da intensidade de sua relação amorosa e da dependência em relação ao outro".

A fim de ilustrar a ideia de que o prazer sexual ocupa um lugar privilegiado nos anseios do casal, que deve dispor de criatividade para integrar impulsos amorosos e agressivos, o autor nos lembra de uma das mais belas esculturas do museu do Palácio Bargello, em Florença, Leda com o cisne, desenho de Michelangelo que Ammannati esculpiu no mármore e que reproduz uma das múltiplas transfigurações de Zeus, que, de acordo com a mitologia, fez-se passar pela ave a fim de entrar, despercebidamente, no quarto da amada e possuí-la sexualmente.

No capítulo "O amor que não pode ser dito", Gley traz uma revisão histórica da questão da homossexualidade até os nossos dias, quando deixa de ser uma doença estigmatizante para ser considerada uma forma de orientação sexual tal e qual a heterossexualidade. Cita Joyce McDougall ao dizer que a monossexualidade é, na verdade, uma ferida narcísica da humanidade que precisa renunciar à disposição instintiva bissexual. Portanto, a heterossexualidade, assim como a homossexualidade, constitui apenas um dos destinos da complexa e inerentemente traumática sexualidade infantil. Também vai buscar subsídio em Stoller, para quem a criança, ao nascer, independentemente de sua identidade sexual configurada pelos caracteres físicos, não sabe o que é ser masculino ou feminino. São os pais, com condutas conscientes e principalmente inconscientes, que despertam interesses nos filhos de acordo com o que a cultura estabelece como masculino e feminino (identidade de gênero), podendo não coincidir com sua identidade sexual. Com isso poder-se-ia explicar o fato de que uma criança com identidade sexual feminina possa desenvolver, a partir do primeiro dia de vida, uma identidade de gênero masculina e vice-versa.

Também não deixa de lado os aspectos culturais da homossexualidade como rito iniciático e nos lembra d'O banquete, diálogo escrito por Platão em 416 a.C., quando Fedro afirma: "Aqueles que amam homens e sentem prazer em se deitar com homens e em ser abraçados por homens são também os rapazes mais formosos e jovens e – naturalmente – os mais masculinos. Os que os acusam de falta de vergonha, mentem; não fazem tal coisa por falta de vergonha, e sim abraçam o que é como eles por pura valentia, por pura vitalidade". O mesmo se observaria nas tribos Marind e Kiman da Nova Guiné, nas quais os púberes são separados de suas mães e levados para a casa dos homens, e um tio materno lhes penetra analmente para receberem o esperma que os tornarão homens fortes. Da mesma forma, devem passar, mais tarde, por um rito oral, de felação, com o objetivo de se tornarem guerreiros destemidos.

O autor termina o capítulo com o controverso tema da adoção de crianças por casais homossexuais, sustentando que a adoção nada tem a ver com a sexualidade do adotante. Para tal, rebate a crítica comum de que uma criança, para se desenvolver adequadamente, necessita de um pai e de uma mãe, os quais servem de modelo para a constituição de sua identidade, masculina ou feminina. Diz que "isso é verdade, mas não é tudo, pois o desenvolvimento da criança depende muito mais de que os pais cumpram suas respectivas funções; caso contrário, é como se eles não existissem".

Em "Amor líquido", outro interessante capítulo, Gley P. Costa se baseia nos estudos do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, especialmente em seu livro Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos, lançado entre nós pela Jorge Zahar Editor em 2004. Nesse capítulo ele diz que a liquefação que se observa na atualidade de todos os laços sociais não representa um desvio de rota da história da civilização ocidental, mas algo que corresponde ao próprio conteúdo da proposta pós-modernista, definida em termos de globalização. Afirma, com Bauman, que ninguém fica imune ao modo de ser imposto pela globalização, a qual funciona como um pano de fundo de todas as possibilidades da experiência humana, inclusive, é claro, nos relacionamentos amorosos. Nesse processo, somos estimulados a realizar escolhas que, em curto espaço de tempo, são substituídas por outras "mais atualizadas e mais promissoras".

Ainda citando Bauman, "os amantes líquidos levam suas vidas como se estivessem em uma viagem que nunca termina, cujo itinerário é recomposto a cada estação, e o destino final é sempre desconhecido". Hoje em dia comprar um objeto novo sai mais barato que consertar o antigo, e também nas parcerias acontece o mesmo: por que perder tempo tentando reconstruir um relacionamento, que por uma razão ou outra não se mostra satisfatório, se se pode trocar o parceiro por um novo, cheio de promessas? Dessa forma, destaca as ações antagônicas entre o desejo e o amor no relacionamento humano, afirmando o caráter destrutivo do primeiro e o integrador do segundo. "Relacionar-se sexualmente tornou-se ‘fazer amor', alcançar um estado de integração e plenitude no qual a pessoa se sente maior ao desfrutar a dimensão do nós, um ‘terceiro' criado pelo amor. No entanto, este desenvolvimento propiciado pelo amor cobra um preço bastante elevado ... que é a dependência, o medo de perder e a solidão." E volta a Freud, que nos lembra que "nunca estamos tão mal protegidos contra o sofrimento como quando amamos, nunca mais irremediavelmente infelizes como quando perdemos a pessoa amada ou seu amor".

Gley, ao final, nos confessa que gostaria de ter dado a seu livro o mesmo título da conhecida canção de Cole Porter, "What is this thing called Love?", escrita em 1929. Como acabou sem resposta, e por se imiscuir em seus labirintos, preferiu o título que acabou por lhe dar.

 

Referências

Bauman, Z. (2004). Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.         [ Links ]

Goethe, J. W. (2010). Os sofrimentos do jovem Werther. Porto Alegre: L&PM. (Trabalho original publicado em 1774).         [ Links ]

Sampaio, J. L. (2011, 7 de março). Amores impossíveis. O Estado de São Paulo, São Paulo, Caderno 2.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Hang-Ly Ikegami Rochel
Av. Dr. Eugênio Salerno, 123/121
18035-430 – Sorocaba – SP
tel.: 15 3202-7207 | 15 3221-7373
E-mail: hprochel@gmail.com

Recebido: 11/04/2011
Aceito: 04/05/2011

 

 

* Psicanalista, membro associado da SBPSP e membro do NPCR.