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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.34 no.53 São Paulo dez. 2011

 

EDITORIAL

 

 

Caro leitor

Neste novo número da ide – Poéticas – você poderá encontrar uma diversidade de abordagens sobre a importância da linguagem poética e da poesia, tanto para a psicanálise como para a vida humana. Nada melhor do que a força da linguagem poética para homenagear Sonia Curvo de Azambuja, uma das fundadoras da ide (como ela nos conta em sua fala reproduzida aqui), uma psicanalista mergulhada nas questões da cultura.

Na saborosa entrevista com Luiz Tatit, você se surpreenderá, caro leitor, com a especificidade da canção, que tem na fala sua base. Esse compositor e professor titular de Linguística da USP vem estudando e compondo há décadas, tendo se tornado um cancionista. O tema da entrevista é a paixão na canção brasileira.

Há uma íntima relação entre a linguagem poética e o funcionamento psíquico humano. O bebê é um ouvinte poético. Através da melodia da fala materna, ele se abre à escuta poética do outro impregnado com sua cultura. A transmissão da língua e a da cultura estão profundamente ligadas. Patrícia Bohrer Pereira Leite, uma de nossas autoras, criou uma palavra que traduz bem a função da poesia no desenvolvimento do psiquismo: "poemar";. Precisamos, atualmente, mais do que nunca, "poemar";. O prazer diante da leitura e da escuta de narrativas poéticas seria uma espécie de alimento para a alma. Os trabalhos com bebês e leitura são muito preciosos no aporte desse alimento especial que vai permitir crescimento, ligado ao desenvolvimento do prazer diante do próprio funcionamento psíquico.

Tomando a questão da linguagem poética dentro do campo social, alguns autores nos mostram a relação entre poesia, violência e luta de classes. O exemplo dos poetas Seamus Heaney e Dylan Thomas, que elaboram em sua poesia a questão da autodestrutividade e da violência humana, além de estarem profundamente inseridos em sua realidade social e política particular, estão em busca da luz, mas "a luz não é para todos";, como nos mostra Martim Vasques da Cunha. Esse conceito de "luz"; pareceu-nos muito rico e original, remetendo à busca daquilo que transforma a violência no motor propulsor da construção de uma cultura. Há mais de dez anos ocorrem dezenas de saraus de poesia em diversos bairros da periferia de São Paulo. Neles, cerca de 100 a 200 participantes reúnem-se regularmente para promover esses encontros poéticos nas "quebradas";. Gisele Poletto Porto, que nos relata o surpreendente percurso cultural dessas populações à margem, ilustra como a violência pode ser transformada de uma maneira muito interessante, criando outras centralidades culturais em relação às oficialmente vigentes, por meio dessas "poéticas periféricas";.

Outro ponto central abordado em mais de um artigo foi o da relação entre ser e poesia. O ser seria inatingível pelo pensamento lógico-racional, ideia que nos aproxima da noção de inconsciente. Na análise de Heidegger sobre o poema de Trakl, apresentada minuciosamente por Alan Victor Meyer, uma das ideias destacadas é tomar a língua como alteridade radical. A língua, é de fato, um outro. Já a questão da poesia tem a ver com o falar da língua. Quando o "errante adentra em silêncio";, a "dor petrifica a soleira";. A experiência da dor nos remete à questão da diferença (no sentido do texto de Heidegger, o que nos aproxima da noção de diferença e castração em psicanálise). Do mesmo modo, o analisando que adentra a soleira da sessão de análise encontra-se diante dessa fenda a ser repetidamente enfrentada na alteridade radical da língua que se revela no falar analítico.

Vários autores psicanalistas trouxeram questões novas sobre a relação entre linguagem poética e experiência estética de escuta da poesia e da escuta em análise. As ideias de "experiência estética"; e "conflito estético"; mostram em filigrana esse papel de alimento da alma desempenhado pela linguagem poética em diferentes tipos de arte. Luiz Meyer, um psicanalista e poeta, reflete sobre os diferentes meandros do conflito estético na criação de um poema seu, mostrando o "duro"; trabalho de superação de conflitos do poeta. Por outro lado, a ideia mesma de experiência estética, como o encontro singular com a obra de arte, no qual estão presentes a experiência e o experienciador nos faz pensar que a mesma força criadora de realidade da arte também está presente na Psicanálise. Outros autores colocam a questão da "poiesis";, como criação. O inconsciente teria um papel "poiético";? Há uma "poiesis"; nos processos inconscientes com sua lógica primária?

Alguns artigos tratam da questão da temporalidade na linguagem poética. Uma minuciosa análise semiótica do poema "A mesa";, de Carlos Drummond de Andrade, traz a relação entre tempo/espaço nessa obra. A poesia, assim como o inconsciente, está num tempo fora do tempo. Trata-se na poesia de uma experiência sem suporte externo, pois o único suporte são as palavras.

Freud sempre levou muito a sério mitos, lendas e narrativas populares. Precisamos pensar, hoje, nesse nosso mundo contemporâneo, sobre a necessidade de criar novos mitos de origem, uma nova cosmogonia que integre os conhecimentos cosmológicos atuais, os quais estão mudando nossa visão do universo. Estando desprovidos de uma inserção para o sagrado em nossas vidas, a poesia e a psicanálise podem se constituir em instrumentos de aproximação do nosso "infinito íntimo";, como nos fala Murilo Mendes:

Só no tempo exterior dependemos da história,
Intimamente não.
Em nós princípio e fim se avizinham
Para manifestação do infinito íntimo,
O infinito pelo qual o homem se conhece
Em curvas e espirais
O infinito íntimo
Que independe da natureza, tempo e espaço,
Que registra o passado, o presente e o futuro
E que os transcende.
O infinito íntimo,
O núcleo simplíssimo de Deus
Que em nós anônimo reside
E pelo qual amamos e nos restauramos,
Que inspira a paternidade de Deus,
Sua encarnação e processão.
(Mendes, 1994, p. 771)1.

Caros leitores, ultrapassem a soleira e adentrem o mundo da poesia com prazer, pois neste número da ide vocês terão a oportunidade de fazê-lo a cada artigo.

 

 

José Martins Canelas Neto
Editor

 

 

1 Mendes, M. (1994). O infinito íntimo. In M. Mendes. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.