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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.34 no.53 São Paulo dez. 2011

 

CARTA-CONVITE

 

 

Prezados colegas e colaboradores

Em 1907, Freud proferiu uma conferência (publicada em 1908 numa revista literária de Berlim), cujo título era "O poeta e a atividade de fantasia"; ( título da tradução, dirigida por J. Laplanche, para o francês do alemão de: ";Der Dichter und das Phantasieren";. Ele aborda a questão "de onde o poeta retira seus temas"; e se propõe a uma análise da "atividade poética";. Freud reconhece esta última como algo que caracterizaria todo homem e não somente os poetas, dizendo que os próprios poetas já afirmaram que "em todo homem se esconde um poeta e o último poeta só morrerá com o último homem"; (Freud, 1907, p.161).

Freud mostra que já na infância, através do "brincar";, a criança exerce uma atividade semelhante à do poeta, uma vez que cria para si seu próprio mundo. O que corresponderia ao brincar, a partir da adolescência, seria a atividade de fantasia, o "fantasiar"; ("rêverie";, em francês). Nesse texto, prenunciando Winnicott, Freud mostra que o que está em jogo é a oposição entre o fantasiar/ brincar e a realidade. No brincar, há a possibilidade de obtermos prazer com coisas que normalmente não desencadeiam prazer na realidade. Introduzindo essas ideias, Freud cria um modelo para a atividade poética: "Uma poderosa experiência atual desperta no poeta a lembrança de uma experiência já vivida antes, pertencendo com mais frequência à infância, da qual emana agora o desejo que cria para si sua realização na obra poética"; (Freud, 1907/2007, p. 169). Também acrescenta a essa fonte infantil o que chama de "o tesouro popular dos mitos, lendas e contos"; (Freud, 1907/2007, p.169). O modelo freudiano da atividade poética é análogo ao modelo do sonho e do trabalho do sonho.

No final de seu artigo, Freud se interroga como o poeta suscita em nós os efeitos de afeto, despertados por sua criação. Chama essa liberação específica de afetos de "efeitos poéticos";, sendo esse seu segredo mais específico. Ele simplesmente lança a ideia de que o poeta deve desenvolver uma técnica de superação da repulsa ligada aos conteúdos de suas fantasias.

Manuel Bandeira, no texto "Poesia e prosa";, apresenta inúmeras definições de poesia. Para Coleridge: "O poema é aquela espécie de composição que se opõe às obras da ciência por visar como objeto imediato o prazer e não a verdade"; (Bandeira, 1958, p. 1274). A poesia é definida de diversas maneiras, algumas contraditórias entre si. Bandeira recorre a Mallarmé para afirmar que não é com ideias que se fazem versos; é com palavras! Daí a importância do ritmo, da linguagem dividida em unidades rítmicas na poesia. É esse trabalho "artesanal"; com as palavras que constitui o ofício do poeta. Podemos nos interrogar aqui sobre a questão da sublimação na poesia.

Para nos aproximarmos de uma reflexão sobre os fazeres poéticos cabe falar desses efeitos poéticos. Reportamo-nos, então, ao excelente livro de Octavio Paz: El arco y la lira, onde, citando Aristóteles, o autor discorre acerca da diferença entre poema e poesia: "Nem todo poema – ou para sermos exatos: nem toda obra escrita sob as leis da métrica – contém poesia"; (Paz, 2008, p.14). Para Octavio Paz, um soneto é uma forma literária que precisa ser "tocada pela poesia"; para se tornar poema. Há, então, poesias sem poemas. Uma paisagem, um quadro, um encontro com uma pessoa podem ser poesia sem ser poema. "O poético é poesia em estado amorfo, o poema é criação, poesia erguida"; (Paz, 2008, p. 14). O poema é o lugar do encontro entre a poesia e o homem.

No fazer poético, o homem-poeta transforma a matéria-prima, que são as palavras. Poderíamos, então, dizer que no fazer psicanalítico o homem-analista transforma a matéria-prima, que são os significantes? Há proximidade, dentro da linguagem, entre esses dois fazeres: o poético e o analítico?

Entre o homem e o seu ser se interpõe a consciência de si. Ou seja, o "Eu consciente";. O homem, ao adquirir consciência de si, separa-se definitivamente do mundo natural, fazendo-se outro no seio de si mesmo. O processo do advento do Eu consciente, "Lá onde estava Isso, Eu deve advir"; (Freud), se passa, para nós humanos, por meio e dentro da linguagem. A vertente poética desta é o escape que nos resta e nos conecta, assim como no fantasiar, com esse Ser desse "tempo original";.

O filósofo Heidegger (1958, p. 224), em conferência de 1951, comenta o seguinte verso de Hölderlin:

Pleno de méritos, mas em poeta,
O homem habita sobre esta terra.

Heidegger nos mostra como a poesia nos faz habitar, por meio de um construir, a nossa condição humana. E como morada da condição humana há a linguagem: "O homem se comporta como se ele fosse o criador e o senhor da linguagem, enquanto que é esta última que é, e continua sendo, sua soberana"; (Heidegger, 1958, p. 227).

Do mesmo modo que a poesia é o "fazer habitar originário"; do homem, a dimensão poética aparece na fala da mãe com seu bebê e fundamenta, na sedução generalizada, a constituição do sujeito humano barrado pela existência do Inconsciente.

Poéticas, fazeres poéticos que provocam efeitos poéticos, conectando o homem com seu ser mais profundo. Eis aí nosso estimulante tema para o próximo número da Revista ide!

Lançamos algumas questões iniciais para estimular cada um de vocês a nos enviar um artigo sobre nosso tema: que relação existe entre esses dois fazeres o psicanalítico e o poético? Como se produz esse estado emocional e como ele se torna um poema? Haveria momentos poéticos no trabalho psicanalítico? A dimensão poética da linguagem guardaria uma íntima relação com o Inconsciente?

Boas reflexões e inspirações a todos que queiram colaborar conosco!

 

Referências

Bandeira, M. (1958) Poesia e verso. In Poesia e prosa (Vol. II, pp. 1271-1282). Rio de Janeiro: Aguilar.         [ Links ]

Freud, S. (2007). Le poete et l'activité de fantaisie. In S. Freud. Oeuvres completes (Vol. VIII, pp. 159-171). Paris: P.U.F., 2008. (Trabalho original publicado em 1907.         [ Links ])

Heidegger, M. (1958). ...L'homme habite em poete... In M. Heidegger. Essais et conferences: (pp. 224-225). Paris: Gallimard.         [ Links ]

Paz, O. (2008) El arco y la lira. México: FEC.         [ Links ]

 

José Martins Canelas Neto
Editor