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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.34 no.53 São Paulo dez. 2011

 

HOMENAGEM

 

 

Carta à Sonia

 

 

Sonia, companheira,

Algumas estrelas são tão distantes que não seria estranho supor que quando sua luz nos atinge podem estar já extintas. Posso bem pensar, e o faço, que recebemos a inspiração que vem de uma ausência. Testemunhamos esse paradoxo e o aceitamos com a resignação do que é inevitável e se impõe sobre nós como uma sentença. É difícil escrever sobre ela, Sonia, sua ausência se torna aguda, mas, em alguns momentos, como num susto, sinto uma brisa que anuncia que as pessoas não desaparecem, simplesmente "ficam encantadas";.

Seria tentador apresentar minha amiga Sonia como uma pessoa especial que se destaca sobre as outras, uma espécie de sábia que conhecia melhor que os outros os caminhos da Psicanálise, uma amazona versada nas artes das disputas doutrinárias ou mesmo uma valquíria se despojando de seu ser por uma causa que a suplanta, mas creio que se estivéssemos juntos daríamos boas risadas dessas figurações. Sonia era comum e tenho certeza de que esse adjetivo, sim, poderíamos apreciar juntos. É isso que vem de sua luz. Uma menina, uma mulher, uma mãe, uma amiga e uma companheira de lutas. Em seu percurso submergindo e reaparecendo nas contradições da vida, nunca se furtou de compartilhar suas convicções, suas agruras e suas alegrias com quem estivesse a seu lado. Era modesta, mas, também, vaidosa, séria em suas convicções, mas apreciando uma brincadeira, firme em seus propósitos e acolhedora com as diferenças de crenças, altiva e também assustada, enfim, infensa a qualquer tentativa de definição, uma "pessoa"; como todos gostaríamos de ser.

Sonia foi alguém de um tempo e de um lugar. Se construiu nessa circunstância, nesses limites e nessas possibilidades: numa época e numa sociedade definida, que sempre a interrogou como uma esfinge e de quem ela nunca fugiu. Essa clareza permitiu e, talvez, como um imperativo, impôs que ela interferisse como cidadã onde quer que estivesse. Que olhasse ao seu redor e que o que o olhar alcançasse viesse a ser assunto de seu interesse. A alienação é a verdadeira morte. Sonia teve um ofício, mas seu horizonte não se encerrou no limite de sua prática primeira. Tenho certeza de que ela não exortaria que seu paciente se encerrasse nos limites das habilidades de sua prática profissional. Se opôs a que as pessoas se organizassem em corporações de opinião onde cada um só pudesse falar de sua prática e que o geral desaparecesse do horizonte, que a política, a ciência, a estética e a ética se tornassem elas mesmas, também, uma especialidade. Sonia era uma analista no mundo. Creio que isso estava em sua clínica, em sua participação institucional ou em qualquer ágora que percorresse. Somos privilegiados que a ágora de seu coração fosse a nossa Sociedade de Psicanálise. Para ela, Psicanálise era cultura.

Como analista, definia seu amor por Freud. Não tratava a teoria como o anúncio de uma verdade revelada, mas a apresentava como a revelação de um amor, de uma filiação. Uma filiação não impede outros amores, ao contrário, os propõe. Amava Melanie Klein, autores da escola francesa, autores contemporâneos de diversas origens. Amava a literatura e o cinema, que usufruía em sociedade.

Vai longe, felizmente, o tempo dos sistemas políticos e científicos que pretendem abrigar a totalidade. Vimos todos essas violências que percorreram o século que passou e no qual vivemos a maior parte da vida. Não vi em Sonia, nunca, uma nostalgia de algum passado perdido, o atual era o seu tempo e a diversidade o seu espaço. A liberdade que usufruía se tornou o projeto de sua participação institucional: que todos tenham a possibilidade e a responsabilidade de revelar e desenvolver sua singularidade. Em Psicanálise, a repetição é a moléstia, e também na prática psicanalítica a repetição é antiética. Como pode um momento pulsional se repetir, como pode um artista repetir um quadro já pintado, principalmente por ele mesmo? Foi assim que Sonia batalhou em suas convicções éticas e nas propostas curriculares de livre escolha e de convívio institucional aberto. Somos herdeiros desses caminhos. Sempre serão insuficientes e exigirão que as novas gerações os continuem. Que possamos, seguindo seus passos, considerar que a política acolhe os rumos da ciência, e perceber, como Freud percebeu, que nosso conhecimento estará determinado pelos rumos que dermos à nossa Polis.

A mim, Sonia, amiga e companheira de tantos trabalhos, faz falta; sinto-me abandonado de sua força, de sua amizade, de sua companhia. Olho à minha volta e ela não está, isso se impõe, mas a sua luz encantada... fala sempre.

Que sua luz acompanhe sempre o Júlio, a Camila, a Miriam, suas netas, seu irmãozinho Deodato, seus amigos e a todos que tiveram o privilégio de ter sua companhia em análises, supervisões, cursos e encontros em nossa Sociedade Psicanalítica, que deve tanto a ela. Inclusive esta nossa revista.

 

Leopold Nosek – novembro de 2011