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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.34 no.53 São Paulo dez. 2011

 

HOMENAGEM

 

A Sonia, por ela mesma

 

 

Sonia Curvo de Azambuja

 

 

Em abril de 2008, Sonia Curvo de Azambuja foi convidada a falar sobre sua história e formação no âmbito do Projeto Memória Oral, da Biblioteca Mario de Andrade. Para além de sua relação com os livros e o espaço de formação que a biblioteca proporcionava, entramos em contato, nesta entrevista, com as ideias de Sonia, seu pensamento sobre a Psicanálise, e seu percurso na construção de uma clínica consistente, enraizada na cultura, referência para a formação de tantos analistas.

 

1. A chegada a São Paulo: o impacto da cidade

Eu vim para São Paulo em 1942, quando me mudei com minha família para cá. Ao chegar, fui tomada de uma emoção muito grande. Eu era muito pequena, tinha seis anos quando chegamos à Estação da Luz. Era uma tarde de fevereiro, devia estar se preparando uma chuva, então, as folhas estavam voando. Foi uma visão que eu tive, muito linda, da cidade. Era um bairro muito bonito: a Luz, os Campos Elíseos, era onde moravam realmente as famílias poderosas de São Paulo, do ciclo do café. E como São Paulo era muito cuidada, muito bonita – essa foi a primeira impressão que eu tive, quando estava no táxi com meu pai e minha mãe. Então, a visão foi essa: de uma cidade muito linda aos meus olhos de criança. Acho que eu só tive esse impacto quando cheguei a Paris, muitos anos depois.

Daí, ficamos morando alguns meses na casa da minha avó. Ela me ensinava a atravessar a rua, no tempo em que quase não havia carro em São Paulo, mas, assim mesmo, ela dizia como eu devia atravessar, que eu tinha de olhar de um lado e de outro. Ela já dava os sinais da cidade para mim. Isso eu acho muito interessante, porque uma cidade onde se vive pode ter esse sentido mesmo de morada, que vai se transfigurando, vão ocorrendo mudanças.

Eu acredito que muito cedo começou essa minha ligação afetiva com a cidade. O Gore Vidal tem um trabalho muito bonito num livro dele, A criação, em que diz que a cultura se faz pelas tribos que migram de um lugar para outro e param, às vezes, em alguns lugares, privilegiam algumas regiões. E penso que São Paulo é uma cidade, nesse sentido, muito própria. Da América Latina, é a cidade que mais tem essa possibilidade afetiva, de acolher e ter lugares para o desenvolvimento das pessoas. Para São Paulo vinham tanto pessoas de fora – os italianos, os espanhóis, os judeus, que, inclusive, vinham fugindo da Guerra – como vinham de outros estados brasileiros, porque aqui tinha trabalho, possibilidade de estudar, de se desenvolver; São Paulo já teve essa função. Com o correr dos anos, uma década depois, já estava outra, tão diferente! E eu, particularmente, também estava diferente, estava já no curso colegial, no clássico. Nesse período, eu tinha uma necessidade muito grande de ler. Mais do que as matérias mesmo da escola, eu precisava muito ler, lia poesia, lia literatura desde muito pequena.

Eu fiz o clássico no Roosevelt, escola estadual, considerada uma das melhores. Tive professores muito interessantes, como Décio de Almeida Prado, que era professor de filosofia. Eu adorava as aulas de filosofia. Eram professores, em geral, concursados, que davam aulas na USP e no curso colegial nas escolas do Estado. Então, as escolas do Estado eram muito boas, eram de primeira linha. Isso acabou com o golpe de Estado de 1964, quando todas as escolas públicas passaram a ter um nível muito ruim de ensino.

Eu gostava mais de ler, mais do que tudo na escola. Eu lia muito, lia o tempo todo. Aí, eu descobri a Biblioteca Municipal. Foi nessa época, em 1953, que eu passei a frequentar a Biblioteca, que, para mim, foi uma revelação. A Biblioteca Municipal foi muito importante, porque havia ali uma formação educacional maravilhosa, no sentido em que eu entendo a Paideia, que se dá exatamente num lugar público, em que se estuda, mas em que se diverte também. Ali, no lobby, as pessoas se encontravam, era um ponto de encontro de amigos também. Eu conheci pessoas incríveis, notáveis, personagens meio lendários, como o Maurício Tragtenberg, que era um homem maravilhoso, um rapaz na época, que me iniciou nos autores socialistas. Ele não tinha podido estudar, então, estudava por conta dele, era um autodidata, era uma pessoa múltipla, enciclopédica mesmo.

Frequentava também a Biblioteca o Armando Ferrari, que depois se tornou um grande analista da Sociedade de Psicanálise. Ele fez uma tese sobre os anarquistas italianos em São Paulo. E com essa tese teve direito de fazer o vestibular para a USP, porque ele estava no tempo da guerra na Europa e não teve nem condições para estudar. Entrou na USP e se tornou professor de antropologia na mesma universidade. Fez trabalhos importantes junto aos índios no Brasil Central.

Então, eram personagens muito interessantes que frequentavam. Lá, eu conheci o Bento Prado – que depois se tornou um grande filósofo – com quem eu estudei filosofia muitas vezes. Conheci o Roberto Schwarz, que depois se tornou um grande teórico da literatura, ligado ao Machado de Assis.

Mas, além disso, as conversas eram intermináveis no lobby. Nós discutíamos de tudo, política, filosofia, era realmente uma Ágora, uma praça, onde encontrávamos os amigos.

E, daí, seguíamos para a Cinemateca, ali na Sete de Abril, onde ficavam os Diários Associados, para ver os filmes de vanguarda. Tinha o Paulo Emílio, que dava aulas sobre cinema, tínhamos grandes debates sobre os filmes. As conversas eram realmente intermináveis, eram muitos debates e eu achava essa vida muito boa. Hoje em dia, às vezes, converso com a minha neta, que tem 11 anos, e eu falo para ela como era a Biblioteca, como nós tínhamos amigos e como nós líamos e ela diz: "Como eu queria ter um lugar assim";.

Eu acho, inclusive, essa coisa da revitalização do centro de São Paulo muito interessante. Eu não sei muito até que ponto isso pode dar frutos, porque não é só prédio, são pessoas, é uma população, é uma necessidade, é uma demanda que a cidade tem de ir aos lugares. Eu, particularmente, adoro a Pinacoteca, gosto de ir às exposições da Pinacoteca e, aos sábados, aos concertos da Sala São Paulo. Acho muito interessante essa vida do coletivo, porque as pessoas só se desenvolvem no coletivo, no espaço público. Há muita necessidade de ir para o coletivo, para um desenvolvimento da praça, da Ágora, no sentido de fecundar as pessoas, de troca. Essa situação de transfiguração só mesmo no espaço público é possível.

Eu fiz, depois, a USP, na Maria Antonia, de onde a gente caminhava, estudava, ia à Biblioteca; andava pela cidade de lotação, de bonde, de ônibus. Nesse período, a Sociedade de Psicanálise ficava ali na Rua Araujo e os analistas, os fundadores da Sociedade, também. A minha primeira análise foi na Rua Barão de Itapetininga, com a Lígia Amaral.

Íamos para a Barão de Itapetininga, a vida da cidade estava ali.

Os fundadores, principalmente o Durval Marcondes, eram da Semana de 22, do Mário de Andrade. Veja que interessante, como as coisas se ligam culturalmente, historicamente, e como a própria cidade tem alguma coisa capilarizada, uma coisa ligada à outra. O Mário de Andrade era amigo do Durval Marcondes. A minha grande professora de Estética na Filosofia, Gilda de Mello, era prima do Mário de Andrade. Então, havia alguma coisa em São Paulo muito familiar, você podia dizer: é uma grande cidade, mas é uma aldeia, porque as pessoas todas, de alguma maneira, circulavam nos mesmos lugares. Em São Paulo, as pessoas se movimentavam pelo centro.

Eu não sei como pode voltar a ser um ponto de encontro. Porque era isso o que ela era, um ponto de encontro, um lugar onde as pessoas se encontravam, estudavam, conversavam, depois a gente ia até o Crémerie, que era junto à Galeria Metrópole, tomar café. E é um pouco triste ver que hoje as pessoas vão para os shoppings, que as crianças não têm para onde ir, não é? Não têm muito lugar para estar. Mas, ao mesmo tempo, eu não gosto de uma ideia de que a gente só possa ser como era antes. Eu acho que o ser humano tem uma necessidade muito grande de se renovar, de fazer novas perguntas, de prosseguir. A ideia que eu tenho, apesar de ser meio "Walter Benjamin"; é, nesse sentido, meio romântica – eu sou de uma geração romântica, de logo após a Guerra, tinha morrido muita gente e as pessoas estavam em luto e, ao mesmo tempo, querendo recomeçar alguma coisa boa, e tudo era possível. Então, eu acho que é sempre possível, não é? Que haja a possibilidade de renovar, não sei se nos moldes do que era, mas pode ser em outros.

Uma coisa que eu achava muito boa era a possibilidade de andar pela cidade. O jovem estava na cidade e andava pela cidade, e hoje eu acho que o jovem está recuado, dentro de casa, quando sai é de carro e já vai para um endereço e não se apropria mais da cidade onde vive, porque talvez ela não esteja tão acolhedora como estava antes. Esse é o depoimento que eu posso dar sobre as minhas lembranças dessa época.

Eu sou mais da ideia de que, na verdade, a cidade nasce da demanda das pessoas, da necessidade das pessoas. Inclusive, a gente sabe que uma das coisas que funda uma cidade é o cemitério, é onde vivem os mortos, onde são enterrados os nossos mortos. Uma das coisas que eu gostava de fazer quando era criança – nós mudamos para a Consolação – era ver o enterro passando na Consolação. A Consolação não era essa avenida enorme, era uma rua arborizada, estreita, eu já estava pensando, conjeturando sobre a vida, a morte, a nossa finitude, eu já estava pensando nisso tudo.

Eu acho que a cidade é misteriosa. Como que uma cidade é fundada? Ela é fundada, às vezes, pelas esquinas, pelas praças, por onde as pessoas vão se reunir, conversar, falar das suas coisas. Eu me lembro muito da época em que eu ia ao Bom Retiro, ao Brás. E o Bom Retiro era o lugar onde moravam os judeus, então, eu via os judeus aos sábados conversando nas calçadas, era uma coisa mítica, uma coisa linda, porque eles saíam para trocar situações familiares, de comércio, de vida, do que eles estavam fazendo. Era um bairro muito lindo e muito importante em São Paulo.

O Brás tinha os italianos, que eram muito humanos. São Paulo era quase uma cidade italiana, e eles ficavam nas calçadas, sentados, conversando, traziam cadeiras. Isso era São Paulo.

Às vezes, eu vejo São Paulo meio como um acampamento em que as pessoas ficam isoladas umas das outras e não há uma vida nos bairros, as crianças não vão mais para as calçadas brincar, não tem mais roda, não tem mais essa possibilidade. Eu acho uma perda muito grande no aprendizado que as crianças possam ter, que é a rua, que é o aprendizado da rua e da convivência entre os homens – isso que eu acho fundamental.

Eu suponho, apesar disso tudo, que São Paulo tem uma vocação cultural, é uma cidade que tem uma vocação nesse sentido. Clama alguma coisa que é de ordem cultural. Nesse sentido, é possível que as coisas se passem de modo diferente do que se passavam, mais pulverizadas, mais fragmentadas, mas continua havendo o desenvolvimento cultural, de outras maneiras.

 

2. Entrando na Psicanálise

Nessa época, arrumei um emprego na Secretaria de Educação e Cultura, porque eu precisava trabalhar e estudar – classe média. Eu já estava fazendo vestibular e entrei na Filosofia. Na Filosofia você estudava Psicologia, Estética, Lógica, História da Filosofia, tinha muita Psicologia. Então, eu fui para o setor de Psicologia.

Nós atendíamos crianças de parque de diversão e estudávamos os testes. Aí começou meu interesse pela Psicologia, pela Psicanálise. Eu ficava lá atendendo aquelas crianças e ficava pensando: "Tudo bem, elas são problemáticas, mas o que se faz depois de ver o problema? Qual é o trabalho que você pode fazer com essas crianças?";. Um dia, eu peguei um livro da Melanie Klein, Psicanálise da criança, e comecei a ler. Essas coisas minhas são sempre muito imediatas. Eu reconheço... Acho que a história de ter sorte na vida é você reconhecer imediatamente que ali tem alguma coisa importante para você.

Imediatamente, eu reconheci que aquela mulher estava respondendo perguntas que eu estava fazendo sobre aquelas crianças. Havia ali um trabalho pesado, ela não entrava de leve na vida das crianças, na mente das crianças. Não é a toa que ela fez muito sucesso em Londres, porque os ingleses adoram pensar nas crianças não como inocentes, mas como diabos mesmo, como demônios. E tem uma coisa demoníaca na Psicanálise dela. E comecei a pensar em me tornar analista. Comecei a me interessar pelo Freud quando eu ainda estava na Filosofia. Eu trabalhava no setor de Psicologia e estava na Filosofia, pensando no Freud, então, fui fazer a pós-graduação em Psicologia. Minha vida tem coincidências muito felizes, porque os professores da USP que davam aula na pós e que só davam Psicanálise eram todos fundadores da Sociedade de Psicanálise. Eu tive professores como a Virgínia Bicudo, a Lígia Amaral, Durval Marcondes, Judith Andreucci. E, saindo da pós, eu dei aula dois anos na Filosofia; mas, imediatamente, eu quis ser psicanalista mesmo, fui trabalhar com a higiene mental, ter consultório e já entrei na Sociedade de Psicanálise, onde estou até hoje.

São interessantes essas ligações que vão se fazendo, quando você reconhece qual é a sua estrada, qual é o percurso a fazer. Isso é que eu chamo de sorte. É você reconhecer onde tem de estar, como você vai se apropriando de si mesmo, criando a sua identidade, a pessoa que você é, a sua vocação.

 

3. Fundação da Revista ide

Entrei na Sociedade em 1970. Quando eu estou terminando, em 1976, a formação, sou convidada a fazer parte da fundação desta revista, pelo meu irmão Deodato, que é a pessoa que estava querendo fazer essa revista. Foi uma turma boa: o Deodato, eu, a Myrna, o Tenório, o Paulo Duarte, tinha o Chain, que era mais velho que nós. E fundamos esta Revista ide. A ideia da ide era tanto o id como instância psíquica, que traz o novo e que ao mesmo tempo traz o originário, como também é ide, vá, porque a gente tinha mesmo a ideia de ir para a cultura, ter uma interface com a cultura e um diálogo, porque havia pouco diálogo entre nós. Todo aquele diálogo na Maria Antonia, na Biblioteca, na Sociedade, havia pouco. Eram só os casos clínicos, os estudos, os cursos que, por sinal, eram muito bem dados. A gente estudava, mas havia certo fechamento. Eu acho que é quase inevitável que houvesse naquele período.

 

4. A Psicanalise, a clínica e a cultura

A clínica não está numa torre de marfim, o cliente já vem com a cultura, a cultura perpassa a clínica. Então, não é uma coisa que separa, a clínica está implicada na cultura.

Em um livro importantíssimo do Freud, como Totem e tabu, você percebe que quando ele fala do complexo de Édipo, o Édipo já se cria no momento em que há o assassinato do pai, na horda primitiva. E é diante do assassinato do pai que nasce a civilização, a cultura e a vida mental. A mente já nasce com a cultura, é engendrada na cultura. Você é o produto da cultura na qual você nasceu.

A mãe é um porta-voz da cultura. Como ela cuida da criança, ela já o faz como porta-voz da cultura, ela interpreta as necessidades da criança, criando desejos, como uma intérprete da cultura. Então, não há como não falar da cultura, a cultura somos nós, a mente é criada no mesmo momento em que é criada a civilização, a civilização no sentido das relações sociais.

Há um livro da Melanie Klein muito interessante, Relato de um caso clínico, que trata do que ela faz com um garoto judeu refugiado de guerra e que está numa província da Inglaterra porque teve de fugir de Londres, que está sendo bombardeada. E ela também está refugiada nessa província e tem um consultório ali, onde atende esse menino. Nesse livro, você percebe que ela tenta focar a interioridade desse menino, cheio de bombardeios, de tanques de guerra, navios, cidades que são bombardeadas, os nazistas, e tudo mais. E ela procura ver isso no cenário na vida interior dele. Então, ela leva muito a análise para o lado edípico da relação dele com os pais e do quanto ele sente que estavam bombardeando os pais com a sua rivalidade, com o seu ciúme. É muito interessante, porque ela era judia, fazia parte do esforço de guerra e, ao mesmo tempo, como analista, tenta focar a vida interior do menino sem se referir à guerra, sem se referir àquilo que ela própria estava passando.

Veja como o social entra pela porta do consultório. Durante o regime militar, eu tinha um paciente, um menino. Um dia ele me conta que o pai dele era um financiador dos órgãos de repressão, dos órgãos de tortura. O menino estava muito mal e, ao mesmo tempo, tinha toda uma violência muito grande. Ele era muito interessante, cheio de ideias, mas estava mal porque tinha aquilo dentro dele, ele sabia daquela situação familiar. Então, são coisas que entram dentro do seu consultório, não entravam só os que são torturados, entravam os torturadores também, os filhos dos torturadores, tudo. Isso é inevitável, a ditadura estava aqui e perpassava a Sociedade de Psicanálise também.

E como levar essas questões para uma cena de interioridade? Como no caso desse menino que eu analisei, como isso ficava para esse menino? E o medo que ele tinha da repressão e como ele temia que aquilo que estava sendo reprimido voltasse, o retorno do reprimido. Ele era um menino que tinha muito medo, era muito apavorado. Se caía um lápis, ele se assustava. Esse garoto não estava mais aguentando esse pai violento que ele tinha. Depois, foi estabelecendo uma relação muito boa comigo. Eu tinha um consultório que dava fundo para uma sinagoga e, uma vez, ele chegou, olhou os fundos do meu consultório e perguntou: "O que é aquilo?";. Eu disse: "É uma sinagoga";. Ele perguntou novamente: "E o que é uma sinagoga?";. Eu expliquei: "É a igreja dos judeus";. Ele olhou para mim e perguntou: "E você é judeu?";. Eu perguntei: "O que você acha?";. Ele respondeu: "Eu acho que você é cigana, judeu, corintiana";. Ele queria dizer que eu era da pá virada, que devia ter alguma coisa muito livre em mim e foi mais ou menos isso o que nós trabalhamos. Esse trabalho é muito interessante, veja como é possível ir pelas filigranas. Não é fazer militância com o seu paciente, mas existe isso, a forma de interpretar, o jeito que se interpreta que, de alguma maneira, amplia no seu paciente um universo.

Hoje, eu acho que a Sociedade de Psicanálise é um polo da cultura importante em São Paulo. Com as reuniões realizadas, a Sociedade está fazendo o seu papel de ser um polo de difusão cultural e de abertura para a cultura, ela dá o seu recado. E não há mais essa situação de medo. Se bem que há pessoas que acham que talvez nós estejamos exagerando muito, que se perde muito da própria Psicanálise nas conversas mais clínicas. Mas eu acho muito louvável, eu acho que esse caminho é muito interessante, essa abertura, porque é uma energia que a Sociedade tem mesmo e oferece para a comunidade.

 

5. A importância de Freud

Para mim, é muito forte essa ligação com a formação de novos analistas, de dar aulas, de dar seminários, de ter essa abertura para pensar a Psicanálise.

E, nesse sentido, é importante lembrar que, antes, o Freud era pouco lido na Sociedade, na formação do analista. Houve, então, um movimento muito grande, do qual fiz parte, em favor da volta à leitura de Freud, que, para mim, foi fundamental. Houve uma volta a Freud porque ele é sempre uma luz. Quando se está meio perdidão, ir ao Freud é sempre salutar, ele é impressionante, é de uma inspiração enorme para a Psicanálise.

O Freud, para mim, faz parte do meu sangue, não é um livro que eu vou lá consultar. Ele é eu, faz parte de mim como todas essas leituras. Então, é natural o que se passa entre eu e... Natural em parte, não é natural de natureza, é natural no sentido de não ser artificial. Não é falso, mas ao mesmo tempo é um artifício que eu pude desenvolver. É sempre um artifício. Você tem um artifício, que são todas essas leituras, e você também tem um lugar, que, de certa maneira, faz parte da ética, e é um lugar um pouco estranho.

 

6. A ética na Psicanálise

A ética na Psicanálise é o eixo para o analista. É preciso ser ético, verdadeiro, porque é a busca da verdade do analisando e a da sua própria verdade. O analista é o seu instrumento de trabalho. Pode ter muita leitura, muito estudo, mas ele é o seu instrumento de trabalho, trabalha com a sua mente. Se não está bem, não trabalha bem, perde a função analítica, perde a ética da Psicanálise.

Então, esses estudos sobre ética que eu tenho feito e compartilhado com colegas meus que estão nesta comissão tem sido muito interessantes para mim. É já um lugar mais retirado, porque os jovens agora é que estão tratando das questões, por exemplo, da comunidade e cultura. É quase que um lugar de conselheiro.

E na própria Revista ide, onde trabalhei tantos anos, também fiquei no lugar de conselheiro, eu estou em um lugar, assim, que as pessoas às vezes vêm e eu falo assim: "Puxa vida! Eu sou uma verdadeira conselheira dessa revista";. Porque as pessoas vêm debater às vezes com você: "Vamos fazer tal matéria, vamos pensar em tal tema...";.

 

7. A estranha conversa psicanalítica

O paciente chega e eu não estou interessada em colocar um esquema para ele. Tem um trabalho técnico do Freud muito bonito, ele tem muitos trabalhos técnicos, mas dessa analogia que ele faz eu gosto muito: ele diz que o analista é como um escultor, mais do que como um pintor. O pintor põe as coisas na tela, põe o que é dele na tela; o escultor vai esculpindo a pedra e deixa a figura sair, deixa a pedra se revelar no que ela tem de expressiva. E o Freud acreditava que o analista era mais um escultor do que um pintor. Ele precisa esculpir para que o paciente saia com o que é dele.

Isso é uma liberdade que eu tenho. Eu não tenho nada pré-formado para ninguém. Chegam ao meu consultório e ao dar toques interpretativos, vamos dizer assim, a própria pessoa vai surgindo. Mas para que eu possa dar esses toques, para que eu possa ter essa liberdade, eu preciso ter um referencial forte. Quer dizer, eu não sustento essa liberdade levianamente. Eu sustento porque eu estudei muito na vida, eu li muito, eu me dediquei muito; então, é quase como se fizesse parte do meu metabolismo.

A conversa analítica é meio estranha, não é uma conversa que se tem num bar. É uma conversa muito livre, mas muito estranha, porque se passa num nível que não é denotativo, mas conotativo. O analista está conversando com o analisando, mas está escutando o que está nas entrelinhas do que ele está falando, o que há de latente. E ali é que o analista vai responder. De certa maneira, nós conversamos por entre as frestas do muro das palavras. É uma conversa muito peculiar, muito estranha... outra vez entra a questão do estranho.

Uma coisa que se percebe muito na análise é a mudança de linguagem. Às vezes, você pega uma pessoa e vê que ela tem uma linguagem muito concreta, muito assertiva, muito pobre de fantasias, de movimentos. E, conforme se trabalha, a pessoa vai mudando de linguagem, começa a fazer considerações, a ter pensamentos que são oníricos. Então, ela começa a sonhar, a falar de uma forma muito diferente de quando chegou. E daí vai se criando toda uma relação com o analista, que às vezes é de amor, às vezes de ódio, às vezes de competição. Mas é uma relação densa, é aquela parceria que vai se fazendo.

O Fabio Herrmann, que era um colega meu, que morreu, infelizmente, há pouco tempo atrás, foi um grande intelectual da Psicanálise, dizia que a cura é como o queijo curado. Alguma coisa tem o queijo curado que vai se fazendo no próprio queijo. Eu acredito que é isso o que acontece na cura. Há alguma coisa que o paciente vai fazendo que é uma elaboração, uma apropriação da vida dele, e da própria mente, vai se curando, e se elaborando e, cada vez mais, ele não vai repetindo atuações que o levam a situações desastrosas. Ele lembra, associa, sonha e vai se curando porque ele vai lembrando. Eu acho que é isso o que acontece na análise.

 

8. A morte das utopias

Eu acho que uma pena muito grande é essa morte das utopias. Porque as utopias são matérias fundamentais para o nosso espírito; porque a esperança é justamente a esperança do novo, a esperança de horizontes cada vez maiores, é a busca.

É realmente terrível que possa haver essas coisas muito voltadas para o comércio, para o sucesso, para o dinheiro. Por exemplo, quando eu fui fazer Filosofia, se você pensar bem: o que eu ia fazer com Filosofia? E todo mundo perguntava: com o que você vai trabalhar? Eu pensava em dar aula, mas logo que eu comecei, veio o golpe militar e acabaram com a matéria de filosofia no colegial. Eu nunca pensei que eu fosse fazer uma carreira, era uma coisa que eu gostava de estudar porque eu teria um ganho. Eu fui fazer o que gostava, e, por acaso, eu ganhei a vida. Eu ganho a vida trabalhando no que eu trabalho, mas não foi a prioridade.

Eu acho que tem uma coisa utópica nisso, de fazer aquilo que se gosta, acredita, é a sua vocação, algo que é significativo para a sua vida. Isso é uma coisa que eu sempre fiz e prezo, eu e muitos amigos meus lá da Sociedade que prezam esse tipo de coisa, e temos relações bastante fraternas.

Existe na Sociedade, entre nós, uma situação de amizade que é uma coisa maravilhosa. O Aristóteles, na Ética, diz que a amizade é maior que o amor, porque no amor e, principalmente, na paixão, às vezes, não se consegue considerar o outro, o outro precisa ser uma extensão de si próprio. Já a amizade é aquilo que discrimina e você pode ser você e o outro, pode ser o outro propiciando uma troca. A amizade é uma relação de muita qualidade, e isso eu encontrei na Sociedade de Psicanálise.

 

9. A leitura

Há um livro muito interessante do Graciliano Ramos que se chama Infância. Eu gosto muito desse livro e de uma parte em que ele faz uma analogia que me faz pensar sempre em mim. Ele faz uma analogia entre o avô dele, que fazia cestas, e diz assim: eu tomei isso do meu avô, de fazer coisas inúteis. Eu acho isso de uma beleza...

Então, a coisa da leitura para mim é como o brincar das crianças. Se você olhar uma criança brincando, com os olhos de um adulto utilitário, ela está fazendo uma coisa inútil. E, no entanto, a coisa mais séria que existe é o brincar das crianças. Elas estão pensando, estão lidando com angústias, brincam por brincar, mas estão fazendo uma coisa muito séria.

A leitura, para mim, tem uma conotação assim, do brincar – uma coisa extremamente prazerosa, séria e que pode ser vista como uma coisa inútil. E, na verdade, foi através das leituras que eu me constituí como ser humano, desde as leituras infantis em casa – era minha grande brincadeira – como depois, também. E se você vê, é uma coisa inútil. No entanto, eu acho, realmente, que é a mais civilizada das atividades. Eu adoro ler.

Tenho lido muita literatura ultimamente, esses novíssimos. Agora, o que eu revisito sempre, que é uma coisa minha, que eu adoro, é o Freud. Eu acho que ele é muito inspirador para mim – eu sou uma freudiana. Eu volto sempre a ler e a estudar, porque muitas vezes eu dou cursos e você precisa preparar as aulas. Eu leio muito sobre Psicanálise, leio muito os relatórios dos novos psicanalistas, que fazem supervisão comigo e depois entram na Sociedade. São essas as leituras que eu faço.

 

10. Sobre cartas

Em A interpretação dos sonhos (1900), Freud, citando a Eneida, de Virgílio, coloca: "Se não posso dobrar os poderes supremos, comoverei o Aqueronte das regiões infernais";.

Vemos, aí, como, na sua base, a Psicanálise faz emergir aquilo que sempre foi considerado para a história da consciência uma categoria negativa.

Nessa comoção dos deuses demoníacos, com seu sonho da "Injeção de Irma";, sonho tido por ele como paradigmático, o que seria a excelência do sonhar, dos pensamentos oníricos, que nos levariam ao insondável, ao umbigo, por assim dizer, que é o seu ponto de contato com o desconhecido. Aí pulsa o que move o sonhar: o desejo inconsciente.

Nesse sonho há algo que paira, que é o escrito em negrito: a fórmula química da trimetilalina, que é uma referência à sexualidade como básica nas pulsões que nos habitam.

Contudo, essa fórmula química é, também, uma inscrição simbólica e ela se dirige a nós: seus leitores. É como se Freud lançasse uma garrafa ao mar. Quem pegar, pegou. Quem puder lê-lo verá que seu maior desejo inconsciente nesse sonho é que possamos aceitar a lógica do inconsciente.

O destinatário desse sonho inaugural de Freud é a posteridade. O que move o sujeito para o inconsciente é a sexualidade e o que se encontra nele é o simbólico, que se dirige sempre ao outro. Como diz Ferenczi: "Eu durmo para mim e sonho para você";.

Essa necessidade profunda de formação de parceria, de encontrar um receptor, é o que nos faz sonhar e também é o que nos faz criar pensamentos e produzir tudo que produzimos.

A carta talvez seja o gênero literário que mais se aproxime desse desejo. Numa carta que escrevi para os jovens analistas tomei como mote Rilke, em suas Cartas a um jovem poeta, livro amado por mim na juventude e que, como num sonho, fisgou-me na minha vocação de analista: porque o analista, como o poeta, percebe que o homem é um ser passional. Como um barquinho, ele é tocado por paixões: amor, ódio, medo, ciúme, inveja, ternura, sedução.

 

***

 

A transcrição na íntegra da entrevista com Sonia Curvo de Azambuja está disponível em: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/upload/Depoimento_Sonia_Azambuja_1257363127.pdf