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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.34 no.53 São Paulo dez. 2011

 

EM PAUTA

 

Poemar1: reflexões sobre a transmissão das narrativas literárias entre gerações

 

"Poemar";- poeticize: reflections on the transmission of literary narratives between generations

 

 

Patrícia Bohrer Pereira Leite*

Instituto de Psicanálise de São Paulo
Centro de Estudos em Leitura, Literatura e Juventude

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esta reflexão parte do trabalho prático com a leitura literária, da palavra portadora de narrativas, de poéticas transmitidas através da literatura e da leitura. A literatura nos constitui, é criação nossa – humana e universal. Transformamos em linguagem a experiência para registrar, narrar, transmitir… As leituras compartilhadas entre gerações e grupos, a possibilidade de conhecer belos livros, músicas e narrativas faz falar, faz pensar, organiza o pensamento e a capacidade de expressar e traz a vontade de conhecer mais. Precisamos de poéticas, de histórias. É certo que esse tempo de sonho é fundamental para nossa saúde psíquica. Precisamos de articulação com as culturas; precisamos da construção de um mundo mental e isso nos permitirá humanizar-nos, nos relacionar, aprender, ler, aproveitar as leituras, trabalhar, criar. Enfim, é isso o que permite nossa sobrevivência.

Palavras-chave: Transmissão cultural, Poéticas, Literatura, Leitura, Linguagem, Pensamento.


ABSTRACT

This reflection comes from the practical work with literary reading, the word bearing narratives, the poetics transmitted through literature and reading. The literature constitutes ourselves, it is our creation – human and universal. We turn experience into language in order to record, tell, convey… The readings shared between generations and groups, the possibility of knowing wonderful books, songs, and narratives makes us speak and think, organizes thought and the ability of expressing, and awakes the will to know more. We are in need of poetics, stories. It is certain that this time of dreams is crucial to our psychic health. We need to articulate with other cultures; we need the construction of a mental world and this will allow us to humanize ourselves, to relate to each other, to learn, read, enjoy our readings, work, create. Ultimately, this is what grants our survival.

Keywords: Cultural transmission, Poetics, Literature, Reading, Language, Thought.


 

 

Nos sonhos (escreve Coleridge) as imagens figuram as impressões que pensamos que causam; não sentimos horror porque uma esfinge nos oprime, sonhamos uma esfinge para explicar o horror que sentimos. Se isso é assim, como poderia uma mera crônica de suas formas transmitir o estupor, a exaltação, os alarmes, a ameaça e o júbilo que teceram o sonho dessa noite? Ensaiarei esta crônica, no entanto; talvez o fato de que uma única cena tenha integrado aquele sonho apague ou atenue a dificuldade essencial.
(Jorge Luis Borges, 2005b, p. 203).

Criamos a esfinge no sonho, no mito, para explicar, elaborar algo que nos assusta e parece incontrolável, nos diz Borges, a partir do momento em que somos capazes de brincar no nosso pensamento, de brincar simplesmente, nos lançamos na criação ou na busca de representações, criamos ficções que possam nos abrigar, explicar, aquilo que sentimos; o mundo, o viver…

A literatura, portanto, nos constitui, é criação nossa – humana e universal – diante de uma necessidade de expressão, de elaboração, de construção de sentidos, enfim, invenção poderosa e necessária à nossa sobrevivência psíquica.

Em nossas conversas sobre as construções e funções das narrativas literárias2, Michèle Petit disse: "Nomeamos as estrelas e construímos constelações para podermos nos localizar diante do infinito, lidar com nossa angústia em face desse desconhecido";. Isso é imenso e lembra as ideias do filósofo russo Mikhail Bakhtin (1968) que Z. Bauman (2005) cita.

Evélio Cabrejo Para3 costuma dizer que os bebês são ouvintes poéticos.

A língua não se ensina, se transmite como a música e é importantíssima para a formação do sujeito humano. Quando um bebê escuta, demonstra que é um sujeito! Escutar é diferente de ouvir. Ele lê o rosto, ele lê a voz, as cores, os cheiros, o mundo que o cerca.

É importante dar-lhe o direito de escutar com liberdade, deixar que desenvolva a sua maneira, seu próprio processo de construção de significados.

A mãe, ao cantar cantigas de ninar, introduz o bebê no drama do mundo e ensina, ao mesmo tempo, a música das palavras.

Paradoxalmente, e por essa mesma natureza, os encontros com a maior parte das expressões artísticas são capazes de nos abrigar, enquanto nos lançam em um trabalho de transformação, de elaboração de nossas inquietudes, em uma nova dimensão de desenvolvimento – deslocam-nos de um lugar conhecido, o que pode também, por vezes, ser gerador de angústia.

Criar narrativas é necessidade do humano: buscar representações do vivido, sentido para prosseguir. Transformar em linguagem a experiência, registrar, compartilhar, narrar; desde o tempo das cavernas. É o próprio trabalho da busca de sentido do viver e da expressão das percepções dos indivíduos ou grupos que é o gerador da cultura – tão necessária para não sucumbirmos à barbárie. Uma artista plástica4, dizia: "Penso que nós artistas somos radares – sentimos antes, não sabemos nomear e para sobreviver precisamos nos expressar, buscar alguma forma de dizer o que sentimos, buscar alguma representação do que sentimos";.

"Existem povos que dançam mais, outros que pintam mais, outros, ainda, que têm mais teatro, mas não tem nenhum povo que não tenha uma lírica, nenhum povo viveu e cresceu sem uma poética"; (Leopold Nosek)5.

Essa reflexão parte do trabalho prático com a leitura literária6, da palavra portadora de narrativas, de poéticas transmitidas através da literatura e da leitura. Além dessas, temos outras ferramentas de aquisição de sentido, tais como a imagem e a música, que são formas articuladas de linguagem. E estas costumam estar presentes quando tratamos de literatura juvenil ou quando lemos histórias em voz alta, em nossos exercícios de aplicação dessas ações. Escolhemos a literatura porque sabemos que estar inserido nesse universo é determinante para que possamos nos desenvolver plenamente e aprender com maior facilidade.

Os ogros e as crises existem indissociáveis dos homens.

Vivemos tempos desconcertantes e difíceis, pois, aparentemente, os limites, as fronteiras, estão muito permeáveis, borradas, instáveis. Mas também vivemos tempos férteis e ricos. Talvez justamente em contraponto a essa sociedade "meio instantânea";, a essa aceleração, a esse excesso de informações, essa rapidez, essa agitação. É como se vivêssemos nessa velocidade, nesse nível de competição, de deslocamentos de espaço, de tempo e de cultura, uma necessidade cada vez maior de relatos, de histórias, de sonhos, de literatura, de música e de nos encontrar para conversar. Talvez, também, essa aceleração nas comunicações venha, de alguma forma, para nos ajudar a ampliar as ações e movimentos em prol da leitura literária e da transmissão da cultura.

Precisamos de poéticas, de histórias para nossa saúde. Precisamos de articulação com as culturas; precisamos da construção de um mundo mental e isso nos permitirá humanizar-nos, nos relacionar, aprender, ler, aproveitar as leituras, trabalhar, criar. Enfim, é isso o que permite nossa sobrevivência.

O acervo dessas imagens – esfinges que possam representar nossas angústias – encontramos na cultura, quero dizer, cada um que nasce herda o acervo cultural das gerações anteriores e este é transmitido através da educação, laços familiares e afetivos, costumes, muitas histórias. Essa herança é fundamental e constitui um enorme acervo que cada um irá articular ao longo de sua vida, à sua maneira. Serve como baliza e borda e é, ao mesmo tempo, fundamental e insuficiente, pois a vida que cada criança viverá é nova, em um mundo novo e a experiência prévia servirá apenas parcialmente.

Quando lemos um texto, ouvimos uma poesia, uma música, uma história, fazemos uma articulação absolutamente pessoal. Cada um faz uma conexão propícia a si mesmo, àquele momento. Precisamos desse começo, porque é esse patrimônio que usaremos para nos articular à vida. Por isso é catastrófico quando, por alguma razão, essas redes de transmissão da cultura entre as gerações, entre os diversos grupos, encontram-se empobrecidas, inexistentes ou inoperantes. Quando, por alguma razão, esquecemos de "com versar"; com nossas crianças.

O patrimônio que constituímos não é guardado como histórias das quais lembramos como um conto ou uma poesia decorada. Ele é guardado como histórias que esquecemos, mas que em alguns momentos retomamos, relembramos de outra perspectiva, como nos sonhos. Esquecemos a história para lembrá-la de outra maneira, posteriormente, e nos desenvolvemos no exercício de sonhar, de lembrar, de brincar, de inventar novas histórias e associações de ideias.

Oscilamos, portanto, entre esses dois campos: um de abertura para o novo, que necessita de novos relatos e de novos leitores, de novas crianças que escutem; e outro de busca do que já foi, do ultrapassado, do que já é seguro, numa tentativa de dar, ao nosso campo, um sentido possível.

Essa experiência de buscar novas teceduras de redes para transmissão de saberes, para o exercício poético é um desafio composto por momentos abrigados pelo encontro de pares, com ideias compartilhadas, com encantamentos na descoberta de experiências novas e desconhecidas.

Ler ou escutar ler serve para criar novos espaços essenciais para a expansão de si mesmo – e o esquecimento de si mesmo – isso de forma ainda mais intensa para aqueles que não possuem nenhum "lugar";, nenhum território pessoal. Nos contextos violentos, uma parte escapa assim à lei do lugar, surge dessa forma uma margem de manobra. O que eles descrevem quando evocam suas saídas da realidade ordinária provocada por um texto, não é uma fuga, como se costuma falar de forma depreciativa, é, principalmente, uma passagem a um outro lugar, onde a "rêverie";, o pensamento, a lembrança, a imaginação de um futuro, tornam-se possíveis.7

Estar em contato com poesias, ler ou ouvir literatura– mergulhados em um livro, envoltos, capturados por uma história, filme ou uma música – possibilita a instalação de um tempo particular, uma composição, um estado outro no qual deixamos de lado a agitação do cotidiano e nossas inquietações, reestruturando-nos nessa trilha poética. Constituímos uma proteção para o "excessivo"; e, como diz Michèle Petit, criamos uma pequena cabana para nos abrigar e nos recompor.

Um jovem observou sua mãe deitada lendo um livro. Saiu, voltou, e a mãe continuava ali e o livro chegava ao fim. Comentou, então:

Mãe você já está acabando o livro? Como você consegue? A sua geração desenvolveu uma capacidade que nós atualmente não temos ou temos de outra maneira. Estamos sempre sendo solicitados a fazer várias coisas ao mesmo tempo. Exercitamos pouco essa possibilidade de ficar assim, concentrados tanto tempo. Perdemos algo que fica difícil, por vezes, até de entender.

Ainda não podemos ter a dimensão exata dessa mudança, mas é importante ouvir os jovens – são bons radares de seu tempo. É certo que esse tempo de sonho, perambulação, divagação, é fundamental para pensar, ser criativo e, portanto, é fundamental para a saúde psíquica. Conviver com nossos pares ensina outra linguagem, que é aquela dos afetos, das emoções!

Antes, as pessoas se inquietavam quando as crianças ficavam muito tempo lendo – pois estavam "fazendo nada";, mergulhados em um mundo secreto e inacessível de sua subjetividade. Hoje, há uma preocupação em relação às crianças se apresentarem hiperativas e turbulentas.

Seriam essas diferenças expressões de um desencontro ou mudanças sobre as quais ainda não possuímos distanciamento suficiente para pensar?

Esse outro tempo dentro do tempo, esse tempo secreto, relaxado de pretensões, de performances, sem horários, sem agenda, mergulhados na história do outro, seja em uma intriga policial, amorosa, em uma história de ficção científica, ou aquelas que se pode inventar – onde podemos ser diferentes personagens –, é fundamental para o bem-estar, para aprender, para a produção intelectual.

É necessário o silêncio, o abrigo das narrativas que se passam, em um lugar distante – às vezes quanto mais distante, melhor – mesmo quando se está em meio ao "tiroteio da vida";. Precisamos desse abrigo e companhia para viver e nos superar.

Uma jovem mulher me contava sobre uma viagem que fizera sozinha, para um país estrangeiro, algo que para ela era uma grande aventura, pois tem muito medo de sentir medo em situações novas e de se desorganizar quando está só – resquícios de uma situação difícil, vivida quando bem jovem –, medo de sentir o que sentiu num período de crise e não suportar. Estava muito feliz, pois tinha se saído bem e a viagem foi muito boa para ela. Comentou:

[...] levei um livro e, quando eu queria sair, o levava comigo, passeava, me sentava nos lugares, lia e ele – o personagem em questão – me fazia companhia. Aliás, foi ele quem mais me fez companhia nessa viagem. Foi ótimo, e eu não me sentia só. Em um momento, em um café, pensei: "agora preciso conversar";. Queria falar com alguém, já me sentia forte para me lançar e aceitar encontrar outras pessoas.

Estranho diálogo, estranha conversa, nós temos através ou com as poéticas, as poesias e as narrativas. Muitas vezes é possível encontrar uma força, uma intensidade que produz calma lá onde nada parecia conseguir – algo que talvez corresponda à dimensão de nossa angústia. É muito sutil e talvez indizível.

Trata-se desta leitura que nos leva para o desconhecido (apesar de servir de refúgio), que nos possibilita aprender, mas que implica no desmanchar do já conhecido, na suspensão do tempo. Que permite o encontro conosco apesar de nos perdermos em uma história maior, cheia de emoções intensas. Histórias fantásticas e imaginárias nos situam na história do mundo, da humanidade. Fora do tempo elas nos possibilitam o resgate da consistência do tempo, onde presente, passado e futuro estão articulados. (Pereira Leite & Wada, 2005).

Refiro-me a algo próprio ao humano, tanto às inquietudes como às tentativas de procurar fora de si alguma forma de se acalmar. Isso pertence a todos nós.

Quando me sinto assim, gosto de ir sozinha a um museu, ver uma exposição. Vou aos poucos me acalmando e – quase sempre – aquela restrição da tristeza, aquele véu de inquietudes perde sua força.

São os momentos de crise pessoal aqueles em que nascem os monstros e ficamos dominados ou atrapalhados por fantasmas. Podem ser simplesmente momentos de crescer, ou momentos em que se está mais perceptivo, sensível aos próprios movimentos e aos do mundo. Podem também ser momentos de dor; em geral, estamos lidando com estados inomináveis.

Esses "lugares"; – a literatura, a exposição de arte, no meu caso –, por vezes, propiciam uma situação em que podemos nos sentir abrigados, possibilita um diálogo intenso com nossa própria inquietude e, por isso, talvez possa abarcá-la. Essa palavra, abarcar, traz barca dentro dela e faz pensar no movimento do balançar da barca e do ninar, das cantigas de ninar (com seus monstros e seu aconchego). Abarcar, portanto, essa inquietude tão inominável quanto essa surpreendente, desconcertante e estimulante exposição (por exemplo: a retrospectiva da obra de Leonilson8 – com tanta poesia, tanta intensidade e tanta urgência).

É uma vivência que vai para além do gostar ou não gostar, algo da ordem do pertencer, de lá me encontrar na minha atrapalhação, na minha poética e, ao mesmo tempo, nos dois casos, algo que é enorme como uma possibilidade de escapada, de saída inventiva para expressar esse inominável; conecta-me com minha curiosidade, minhas sensações mais primárias – beleza, horror, nojo… até aquelas mais brutas e menos lapidadas, ativando minhas capacidades narrativas. Começa, sem que eu me dê conta, uma grande conversa com aquele autor ou autores (artistas, narradores), com aqueles universos.

Novamente, está desperta a capacidade e a necessidade de perceber-se narrador da própria história, autor de sua trajetória, ativo, portador de palavra, capaz, assim, de escolhas, de criações poéticas, sujeito da Polis9, com direito à voz, pertencente a um grupo que chamamos de humano, portanto, e imediatamente identificado com algo imenso em que cabem muitas formas de ser e de estar e que faz com que me sinta menos "gauche";, melhor "dans ma peau"; e, sem dúvida, menos só com minha angústia.

A aplicação desses projetos10, ao longo de 27 anos, mostra que a transmissão de narrativas literárias e/ou a aplicação dessas ações contribuem para que todos possam estar inseridos nesse universo leitor e adquiram ferramentas que permitam a participação ativa na realidade. Isso tudo tem me ensinado que talvez não se consiga aprender ou apreender tudo o que essas ações, no âmbito da cultura, da transmissão de conhecimentos e de patrimônios humanos, possibilitam. Com certeza, resultam em algo maior que os movimentos desencadeados por esta ou aquela leitura de um livro. Poderíamos dizer que elas se assentam, se fortificam, através de uma leitura/narrativa maior, na qual estão inseridos o gesto, a companhia do leitor, do próprio autor (artista) da narrativa e de ambos ao mesmo tempo. Toda essa Narrativa se cria em torno dessas redes e situações de leituras poéticas, acompanhadas, compartilhadas, pela história de cada um nesse processo, dos envolvidos e da humanidade.

Essa leitura transmite, ensina e, por vezes, faz lembrar o gesto, o olhar, e nos recorda a atitude diante do outro, a riqueza de experiências que temos produzido, através dos séculos. Isso é transmissão de conhecimento, repertório do viver. Possibilita sentir o pertencimento a um grupo diverso, que se chama humano. Isso é fundante e é fundamental.

A leitura literária relança nossos pensamentos. A literatura e as narrativas escritas são excelentes suportes para muitas emoções e questionamentos, possibilitando aproximações entre grupos, entre os membros de um grupo, e culturas diferentes. A aplicação dessas ações abriga transformações e novas articulações. Elas relançam as narrativas, as conversas sobre a vida e apoiam, assim, a tomada da palavra.

Navegando no estrangeiro, no diverso, nos é possível encontrar uma identificação naquilo que, por ser humano, se evidencia na diferença. Há um encontro em nossa própria capacidade de narrar, e de imaginar, ambas despertas de imediato, a partir do encontro com a literatura. O que traz companhia, sentimento de pertinência, exercício abstrato, aparentemente invisível, mas palpável. Esse leitor inscreve-se, assim, dentro de uma linha histórica do homem, na história da sua geração ou do seu grupo.

Em uma experiência na zona rural de Minas Gerais, o trabalho intenso com a leitura foi despertando todo o repertório local de narrativas, de práticas populares, de receitas esquecidas, de festas que não mais aconteciam. Ao mesmo tempo, promoveu e possibilitou que as várias gerações, de forma quase inevitável, passassem a se encontrar e a compartilhar seus conhecimentos, sejam os mais antigos, parte da cultura e do patrimônio, ou alguns novos, modernos. Esse saber, dito "letrado";, intercambia-se com esse outro saber, popular: de transmissão oral, inscrito no gesto, no corpo e na memória das pessoas.

Refiro-me ao encontro de "pares"; com os quais é possível compartilhar uma paixão, uma inquietude, ativando uma rede de referências de uma forma de pensar. De todas essas malhas delicadas e sutis, essas que fazem os poetas escrever coisas também leves e fortes identificáveis na alma – para todos – como este verso de Claudel ou este outro de Quintana:

On croit que tout est fini, mais alors il y a toujours un rouge-gorge qui se met à chanter.
(Paul Claudel)11

Poeminha do contra
Vocês que aí estão
A atravancar o caminho
Vocês passarão
E eu passarinho.
(Mario Quintana)

E aqui, nesses poemas, o que é muito lindo é que este "rouge-gorge";– pintassilgo – ou esse "passarinho"; pode ter formas infinitas, pode ser simplesmente uma impressão estética qualquer que encanta naquele instante, ou em algum outro tempo – diante de um raio de luz, de uma cor, uma flor, uma pintura, alguma beleza ou surpresa, emoção poética. Pode ser uma experiência sensitiva da escuta da poesia, da música, ou, então, um encontro com um texto literário, com a escrita e o imaginário do outro. Uma coisa é certa: é algo que nos desperta, nos instiga, que pode nos retirar de um estado de paralisia, capaz de nos retirar do tédio, da apatia.

A doença física, por exemplo, gera um mal-estar físico e mental, traz à tona o medo do que virá. Ativada a presença da finitude, nos recolhemos, mas o ser humano tem capacidades maravilhosas; pode, e às vezes necessita, ir ao fundo de sua tristeza, de seu recolhimento, para depois voltar. Quando está bem, pode se envolver longamente em uma leitura que lhe interessa e imaginar uma porção de coisas que quer fazer; inventar novas poéticas. Estamos falando da capacidade humana de aprender, de se renovar, mas que pode estar bloqueada por situações de crise – desnutrição concreta ou simbólica. E pelo isolamento que essas situações desencadeiam, é importante exercitar esse gesto humano que nos distingue das outras espécies animais – compartilhar nossa possibilidade poética!

Voltando a Borges, sem nenhuma pretensão conclusiva, mais como uma brincadeira; pensei que talvez uma crônica precise de um leitor que sonhe com ela para ter a dimensão de um sonho, e um leitor precisa, enquanto leitor, permitir que o ouvinte sonhe com o que vê, lê e vive nessa situação de mediação, transmissão de cultura, e aproprie-se do texto ou do ato de ler, mas, principalmente, do exercício de brincar com esse repertório dentro de si (seja ele a língua escrita, o conhecimento, as formas de linguagem, a postura diante do saber, do livro, dos outros).

Tornar-se um leitor estaria então inscrito em um movimento de criar e transmitir narrativas – como em uma ciranda, para, compartilhando, viver, ver novamente, ressignificar, reescrever sua história, para estar acompanhado naquilo que o instiga, encanta, inquieta.

Ocorre-me outro escrito de Borges (2005a, p. 13), dos tempos de seus inícios (1923…):

A quem ler
Se as páginas deste livro consentem algum verso feliz,
perdoe-me o leitor a descortesia de tê-lo usurpado
eu, previamente. Nossos nadas pouco diferem;
é trivial e fortuita a circunstância de que sejas tu o
leitor destes exercícios, e eu o seu redator.

Mas o fato é que, apesar de ser bem a propósito o que Borges escreve, cada um de nós tem seu talento e também sua vocação, seu ofício, mesmo que não os tenha descoberto ou nunca os descubra. E um talento não basta tê-lo, é preciso poder capturá-lo, investi-lo, dedicar-se a ele. O mesmo para a vocação e o ofício. É esse exercício e dedicação que provavelmente fez de Borges um grande escritor.

As crianças crescem também porque acreditamos que elas serão capazes de crescer. Quando temos um bebê nos braços temos certeza de que ele irá falar, andar, sorrir, sonhamos com ele crescendo, interpretamos seus gestos e movimentos, o ajudamos, o estimulamos.

Quando definimos como alvo atingir a virtude, o "ilustrismo";, o espírito crítico nessa transmissão, pode ser justamente aí que os perdemos. As leituras compartilhadas, a possibilidade de conhecer belos livros, músicas e narrativas faz falar, pensar, organiza o pensamento e a capacidade de expressar e traz a vontade de mais, de conhecer mais... aos diferentes leitores.

As narrativas fazem sempre associar e pensar, quando propostas na sua diversidade, com liberdade, espaço para o suspiro, o respiro, o silêncio e os passeios próprios da alma. Mediar a leitura implica de maneira igualmente importante ser capaz de acolher, em algum lugar, nem que somente como ouvinte ou leitor, a nova narrativa coletiva ou individual que se cria na cena. É possível vê-la como uma arte, diz Michèle Petit (um ofício de artesão, eu diria, é uma prática que melhora com o exercício, o aprimoramento do olhar, o estudo, não necessariamente o acadêmico).

Quando falamos sobre a leitura na primeira infância estamos conversando sobre a leitura, a transmissão do humano, no humano – lá, onde tudo se inicia e, a partir dessa matriz, desses registros, para se desenvolver pela vida afora.

É algo delicado, difícil de definir, sutil. Vem-me à memória uma lembrança remota da infância; uma situação de aconchego, de transmissão de conhecimento e da significação de meu lugar dentro de meu grupo familiar – um momento de aprendizagem com os mais velhos, um momento que tinha seriedade e era divertido, livre e possuía os "ingredientes"; para poetar. Sempre gostei de escolher feijões, lentilhas, grãos. É uma atividade que ficou inscrita em mim, nessa linha complexa da transmissão da cultura como aprendizagem, como impressão estética, vivência prazerosa – conversas com mulheres mais velhas, mais sábias, com tempo, conhecimentos e afetos. Escolher feijões está ligado, para mim, à manhã, à calma, a ouvir minha avó ou dona Lígia /ou falando comigo ou entre si, contando e supervisionando meu trabalho: "deves fazer assim, este grão é bom, este não é...";, a experiência estética de olhar as sutis diferenças dos grãos, enquanto meu ouvido e atenção passeavam entre o que elas me diziam e as minhas próprias fantasias – muitas sem aparentes conexões com feijões. De qualquer forma, um momento de restauro, de acolhimento e de curiosidade. Qualquer formação, em qualquer contexto, passa – antes de tudo – pelo despertar, estimular "da capacidade de ler o mundo, a vida e a si mesmo";, vamos chamar assim. O bom leitor, "o passeur"; mediador – que transmite uma narrativa é aquele que é apaixonado pelas narrativas, que tem prazer em ouvi-las e em adentrá-las, mesmo sem ainda entendê-las totalmente, ou mesmo sem ser, foneticamente, um bom leitor, mas aquele que é convicto da importância da transmissão dessa experiência e que tem ativada sua capacidade de se encantar pela poética e pela musicalidade da língua, pela curiosidade da vida.

Desde pequeno o bebê faz "como o outro e permanece ele mesmo";.
Ao mesmo tempo em que leio para uma criança ou um jovem eu leio para a criança que eu fui e isto me assegura em minha continuidade psíquica. As histórias nos permitem organizar o mundo e visitar infinitos mundos invisíveis.
É isto que a literatura possibilita; nesta convenção simbólica chamada literatura a humanidade guarda tudo "o que anda por aí";– diz Yolanda Reis.12

Elliot, um grande poeta inglês, falava que "a poesia comunica mesmo sem ser compreendida, e por isso nem deveríamos traduzi-la, deveríamos escutá-la e nos deixar levar, embalar, penetrar nela...";. O bebê que ouve e, enquanto sujeito, brinca com a língua, constrói significados, balbucia utilizando os acordes que ouve à sua volta; brinca e utiliza a literatura que existe na língua. Como o poeta?

Como nas propostas de intervenções, ou nos sonhos sobre intervenções com leitura e educação, estamos na dimensão da vivência, daquilo que é encarnado e complexo, a interação de nossas possibilidades humanas associadas e confrontadas a uma realidade cultural, social. Uma proposta nesse território é sempre orgânica, sempre viva e em transformação, se a queremos atuante e fértil.

 

Referências

Arendt, H. (2004) O que é política (5a ed.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.         [ Links ]

Bakhtin, M. (1968). Rabelais and his world. Cambridge: The MIT Press.         [ Links ]

Bauman, Z. (2005). Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Borges, J. L. (2005a). Fervor de Buenos Aires. In J. L. Borges. Obras completas (Vol. 1). São Paulo: Globo.         [ Links ]

______. (2005b). O fazedor – Ragnarök. In J. L. Borges. Obras completas (Vol. 2). São Paulo: Globo.

Cabrejo-Para, E. (2004). Langage et organisation psychique de l'enfant. In Langages et activités psychique de l'enfant. Montreuil: Editions du Papyrus.         [ Links ]

Nosek, L. (2008). "Literatura Zero";- Apresentação "Encontro Internacional de Literatura e Ação Cultural"; – Sesc Pinheiros São Paulo

Pereira Leite, B. P. & Wada, M.M. (2005). As narrativas literárias. Comunicação compartilhada criando a possibilidade de um espaço de expressão. In Leda Maria Codeço Barone (Coord.). A psicanálise e a clínica extensa. III Encontro da Teoria dos Campos por Escrito (pp. 427-446). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Petit, M. (2009). A arte de ler, ou como resistir à adversidade. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Patrícia Bohrer Pereira Leite
Rua Nazaré Paulista, 309
05448-000 – São Paulo – SP
tel.: 11 3873-3967 / 11 3801-3871
E-mail: patricia@acordaletra.com.br
patriciacordaletra@gmail.com

Recebido: 19/10/2011
Aceito: 28/10/2011

 

 

* Psicóloga clínica e Psicanalista. Membro do Instituto de Psicanálise de São Paulo. Mestre em Psicologia Clínica e Psicopatologia pela Universidade de Paris V e Especialista em Técnicas de Saúde Mental pela Universidade de Paris VII. Coordenadora e assessora de projetos sociais e educacionais em A Cor da Letra – Centro de Estudos em Leitura, Literatura e Juventude (www.acordaletra.com.br) – em diferentes contextos da realidade brasileira.
1 Este trabalho é originário de uma apresentação realizada em julho de 2011 no seminário de leitura Conversas ao Pé da Página em Diálogo com a Antropóloga Michèle Petit sobre a Importância da Leitura Literária em Situações de Crise (www.conversapepagina.com.br).
2 Para sua pesquisa que a levou a escrever o livro a Arte de ler – ou como sobreviver à adversidade – e para a realização do seminário "Conversas ao Pé da Página";.
3 Evélio Cabrejo Para, linguista e psicanalista. Diretor adjunto do Departamento de Linguística da Universidade Paris VII – onde exerce as funções de professor e pesquisador no campo da linguística e da psicolinguística e é também o Vice-presidente da associação ACCES– Ações Culturais Contra as Exclusões e Segregações (www.acces-lirabebe.fr).
4 Zita Roncaglio.
5 Apresentação Encontro Internacional de Literatura e Ação Cultural – Sesc Pinheiros, 2008.
6 Ações Culturais (www.acordaletra.com.br; http://www.acces-lirabebe.fr/).
7 Trecho da apresentação de Michèle Petit no Seminário de Leitura Conversas ao Pé da Página – julho 2011; tradução livre da autora. Trecho original, em francês: "Lire, ou écouter lire, cela sert déjà à créer ces autres espaces essentiels à l'expansion de soi – et à l'oubli de soi –, plus encore pour ceux qui ne disposent d'aucun lieu, aucun territoire personnel. Dans des contextes violents, une part d'eux échappe alorsà la loi du lieu, une marge de manoeuvre est ouverte. Car ce qu'ils décrivent quand ils évoquent cette sortie hors de leur réalité ordinaire provoquée par un texte, ce n'est pas tant une fuite, comme on dit souvent de façon dépréciative, c'est plutôt un saut dans un autre lieu, un ailleurs où la rêverie, la pensée, le souvenir, l'imagination d'un futur, deviennent possibles";.
8 Retrospectiva da obra de Leonilson– Sem Poupar Coração – primeiro semestre de 2011 – Itaú Cultural.
9 Tal definição é de Hanna Arendt (2004).
10 Projetos de Ação Cultural de Acesso à Leitura e Literatura (www.acordaletra.com.br).
11 "Achamos que tudo acabou e então tem sempre um pintassilgo que começa a cantar!";.
12 Yolanda Reis é escritora e educadora, com especialização em Literatura e mestre em Língua e Literatura Espanhola pelo Instituto de Cooperação Ibero-Americano de Madrid. É fundadora e diretora do Instituto Espantapájaros, em Bogotá, um projeto cultural de formação de leitores, dirigido não apenas às crianças, mas, também, a mediadores e adultos. Especialista em fomento a leitura, é consultora em várias instituições, como o Cerlalc e o governo colombiano (http://www.espantapajaros.com/).