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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.34 no.53 São Paulo dez. 2011

 

EM PAUTA

 

Poéticas periféricas: outras centralidades?

 

Suburban poetics: other centralities?

 

 

Gisele Poletto Porto*

Núcleo de Cultura e Juventude e Ponto de Cultura Escola da Rua, da Associação Cidade Escola Aprendiz
Associação Novolhar

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo descreve o surgimento e a expansão dos saraus de poesia que vêm ocorrendo em bares da periferia paulistana ao longo da última década. O artigo relaciona-os a outros movimentos culturais, como o hip-hop, e apresenta a transformação das pessoas que se envolvem nesse processo de criação poética.

Palavras-chave: Poesia, Periferia, Hip–hop, Cultura, Sarau de poesia.


ABSTRACT

This paper describes the emergence and expansion of the poetry reading sessions that have been held in the suburb of Sao Paulo throughout the last decade. They are related to other cultural movements, such as hip-hop, and this paper presents the transformation of the people who are involved in this process of poetic creation.

Keywords: Poetry, Suburb, Hip-hop, Culture, Poetry reading session.


 

 

A poesia ecoa pela periferia paulistana desde a chegada do samba, forjado sob a influência do samba rural, este trazido, há mais de um século, pelos negros libertos das lavouras cafeeiras que, mesmo não sendo compositores, cantavam suas histórias, sofrimentos e tradições. O samba atravessou o século, com blocos, cordões carnavalescos e escolas e, embora apreciado por todos, residia na periferia da cidade.

Há aproximadamente três décadas, a poesia diversificou o ritmo e passou a ser cantada em festas e eventos juvenis, também na periferia, através do rap1 (rhythm and poetry), dessa vez descrevendo um cenário estritamente urbano acrescido da violência armada, tráfico de drogas e crime organizado.

Música declamada, com histórias longas, fala fluente, salpicada de gírias e eventuais palavrões, o rap tornou-se uma expressão artística recheada de denúncia, crítica social e protestos associados ao ritmo e à poesia.

Suas letras provocativas revelaram a alma do hip-hop, forte movimento cultural de resistência. Inicialmente visto com estranhamento e depois fascínio, trouxe uma nova estética, reproduzida pela juventude de todas as classes sociais, e garantiu um espaço para a poesia no dia a dia das minas, manos, playboys e até patricinhas, que decoravam suas extensas construções rimadas.

Na paisagem da periferia de múltiplas violências, propagou-se em enorme escala, mesmo evitando as mídias de massa.

Na última década contribuiu, junto às ações da sociedade organizada, para o surgimento de outra onda de produção cultural: os saraus de poesia da periferia.

Movimento marginal? Movimento das periferias? Ou movimento de outras centralidades?

Movimento cultural, os saraus de poesia declamada em bares, conjugados à produção independente de livros, CDs e audiovisuais, ao cinema, teatro de rua, música, à economia criativa e solidária, tomou lajes, garagens, praças, ruas, escolas e outros espaços públicos. Da periferia chegou ao centro, protagonizou debates e mostras em instituições culturais e acadêmicas.

Nesse levante cultural, a poesia revelou poetas e uma população indubitavelmente interessada por essa forma de composição literária. Vem sendo declamada pelo "poeta-cidadão"; em saraus nos botecos das "quebradas"; e escutada com atenção por todos. Tornou-se arte compartilhada e contextualizada que marca posicionamentos políticos, expressa opiniões, revela biografias, promove transformações subjetivas e sociais, integrada à paisagem urbana, em busca de uma estética própria, com qualidade.

Estudos, debates e pesquisas têm sido realizados pelos escritores protagonistas dos saraus, na busca de conceituar e qualificar as produções.

Segundo Márcio Vidal Marinho2, educador social e poeta, alguns autores chamam tal poesia de "suburbana, outros de marginal ou periférica";, sendo este o termo que Márcio prefere e justifica:

[...] não por ser da periferia, mas por ter uma ideologia, a marginal já foi criada nos anos 70 e a poesia da periferia é contemporânea... posso estar em qualquer lugar e sempre representar a periferia... pode-se falar da lua sem tocar em periferia, mas continua sendo periférica porque o autor sabe da intencionalidade da poesia, é ideológico não sendo necessariamente explícito.

O autor dessa poesia vive na periferia, onde a população, em sua maioria, apresenta baixa escolaridade, frequenta escolas públicas com má qualidade de ensino e, frequentemente, não conclui o ensino médio.

De acordo com o Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas, em pesquisa realizada no ano de 2009, um em cada cinco alunos entre 15 e 17 anos sai da escola na região da Grande São Paulo.

À revelia dos baixos índices de desempenho escolar, os poetas dessas comunidades enfrentaram as dificuldades de leitura, escrita e interpretação de texto, tornaram-se escritores e impulsionaram um significativo, embora ainda pouco visível, movimento literário. Pessoas que, encorajadas pela transformação de bares em espaços de cultura, arriscam-se a escrever, decorar e declamar textos próprios nos saraus que se proliferam pela periferia.

 

1. A linguagem e a paisagem urbana

A linguagem não é apenas e não é em primeiro lugar uma expressão oral e escrita do que importa comunicar. Não transporta apenas em palavras e frases o patente e o latente visado como tal, mas a linguagem é o que primeiro traz ao aberto o ente enquanto ente. (Heidegger, 1990, p. 59)

Nascemos num mundo povoado pelas palavras, aprendemos, desde bebês, que, moduladas pelo volume e timbre, acompanham gestos impregnados de intenções e sentimentos. Antes de conhecermos seus significados, soam como melodias carregadas de cores emocionais. É um rico universo a ser desvendado e somos estimulados ou, de fato, convocados a reproduzir tais sons que nos dão acesso ao mundo e ao outro.

Para Vygotsky (1993, p. 5), "o sentido de uma palavra é a soma de todos os eventos psicológicos que a palavra desperta em nossa consciência";. Nos primeiros anos de vida, a fala desenvolve-se e a linguagem simbólica constitui-se nos constituindo. Segundo Márcio Pereira (2011)3:

A linguagem simbólica implica um sistema de signos e símbolos, de significantes e significados capazes de designar características, ações, relações e propriedades aos objetos... No homem, é graças à presença da imagem mental que se torna possível, a partir de uma certa fase, a substituição do objeto pelo seu representante num sistema simbólico de linguagem.

Nossa relação com o mundo é determinada pelo desenvolvimento da linguagem. Essa linguagem é criação particular que responde à necessidade de inventarmos uma forma própria de compreensão do mundo. Segundo Freud (1976, p 140):

A ocupação favorita e mais intensa da criança é o brinquedo ou os jogos. Acaso não poderíamos dizer que ao brincar toda criança se comporta como um poeta, pois cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta os elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade?... Ao mesmo tempo, a criança cria sua linguagem, desenvolve-se psiquicamente e desenvolve sua capacidade imaginativa.

A linguagem desenvolve-se sob a influência da cultura, das relações interpessoais, da educação... e a poesia também.

As crianças, em cidades como São Paulo, são precocemente confinadas, sentadas em frente a telas de televisão e computador, ou em salas de aula, com poucos espaços de convivência efetiva, liberdade e brincadeira, crescem submetidas aos hábitos urbanos4, sem estímulo para o desenvolvimento da linguagem criativa ou poética, sendo o contato com a poesia na escola, em geral, enquanto produção hermética que carece de tradução do professor.

Entretanto, a riqueza da canção popular trouxe a poesia para o cotidiano dos brasileiros, o cordel recitado por "cantadores"; nordestinos influenciou os "repentistas"; do hip-hop, rappers que encantaram a juventude, que descobriram, nestas últimas décadas, poder usar a palavra para "dar seu recado"; ao mundo. A "escola informal"; ensinou mais que a formal e a poesia proliferou.

Nos últimos trinta anos, o rap pavimentou a larga avenida pela qual vêm desfilando histórias e ideologias, cortejo orquestrado por hip-hoppers, artistas, líderes ativistas e militantes da periferia.

A linguagem poética ultrapassou o suposto limite de seu pertencimento a livros pertencentes ao universo da elite intelectual e tomou a cidade.

Jovens, inspirados pelo movimento nascido nos guetos jamaicanos, ocuparam um novo espaço na sociedade, através da poesia cantada. A produção cultural se alastrou e revelou o fato de que na periferia existe memória, identidade, mensagem a ser transmitida e riqueza poética.

O rap atravessou as fronteiras da mídia e as pontes que separam a periferia do centro de São Paulo, avançou com o hip-hop e seus quatro elementos – rap, DJ, breakdance e o grafite –, voltou-se para as escolas, intrigou e alimentou a academia. No processo, o quinto elemento foi agregado: o conhecimento, em relação direta com os escritores periféricos.

O hip-hop hoje dialoga, influencia e se alimenta de outros movimentos, motiva o desenvolvimento de produtoras, selos musicais independentes, grifes próprias de moda e projetos sociais locais.

Nesse contexto, os jovens pobres identificam uma perspectiva de pertencimento alternativa ao consumo de bens e marcas e ao crime para obtê-los. Essa juventude apropria-se de um novo discurso e valores e utiliza vários meios de comunicação para propagá-los: blogs, jornais locais, rádios comunitárias, fanzines e os próprios saraus. Abriram o caminho e são seguidos pelo resto da população.

A representação e produção simbólicas estabelecem-se como alternativas à violência armada, ao tráfico e ao entorpecimento das drogas. Dessa forma, surge um novo tipo de tráfico, tráfico do conhecimento cujas produções resgatam e reescrevem a história da perspectiva do oprimido, do negro, nortista, nordestino e imigrante, onde a arma é a palavra. Seus "traficantes"; são críticos sociais propositivos que tramam os discursos subjacentes às mudanças invisíveis, nos guetos da pobreza paulistana, onde vivem, os quais transformam. Atores sociais que se apropriam também da linguagem culta e dos autores clássicos como forma de enfrentamento à precariedade de acesso e produção cultural, imposta à periferia.

A linguagem, instrumento de comunicação e relacionamento, virou instrumento de resistência, afirmação de minorias, transformação política, revolução de costumes e resgate de significados comunitários. Além disso, uma nova literatura é desenhada e as manifestações poéticas, concentradas nos saraus, são como as pontas de muitos compassos, riscando outras centralidades.

 

2. Espaços abertos para a expressão poética

A Periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. Dos becos e vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune.
Eis que surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado.
A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros.
A favor de um subúrbio que clama por arte e cultura, e universidade para a diversidade.

(Sérgio Vaz)5

Nesse caldeirão brotou o impressionante fenômeno da mescla entre poesia-denúncia e expressão poética da vida, o casamento da ética e estética.

A poesia ecoa versos por microfones e embala o rico discurso na paisagem da miséria. Despida da necessidade da cadência e falas "agressivas"; do rap, alastra-se por todas as faixas etárias, abandona a vestimenta estereotipada de origem afro-americana e inventa estilos. Fala da subjetividade, do amor e do horror. Poesia que emerge do cotidiano de sobrevivência, reflete, sente, critica, analisa, cria beleza e emociona.

Forjada na guerrilha naturalizada, na luta pelo trabalho, transporte, luz, água encanada, direito do olhar e da escuta, transcende o real e torna-se expressão de quem está reaprendendo a falar de dentro de sua essência. Poesia da condição humana, pressão destampada.

A relação com o mundo muda, o cotidiano automatizado dá lugar a individualidades e a linguagem torna-se veículo da manifestação do ser, da criação íntima, única, exclusiva de cada poeta.

"A própria linguagem é Poesia em seu sentido essencial"; (Heidegger, 1990, p. 58) e vem tornando-se um poderoso instrumento de transformação da periferia e de seus indivíduos. Carregada das mensagens de resistência à cultura hegemônica, não é um grito para ser escutado à distância, não mais uma reivindicação de igualdade de direitos, mas, sim, a forma legítima pela qual as comunidades "fora do centro"; manifestam suas identidades. São vozes que se escutam entre si. Não esperam, fazem sua hora e seu lugar.

Talvez por isso, curiosamente, embora estampada em várias capas de revistas e jornais importantes, a literatura periférica é ainda desconhecida, surpreende e causa desconfiança. Ainda continuamos incapazes, enquanto sociedade, de reconhecer no pobre a condição da igualdade em meio a tantas desigualdades impostas pela própria sociedade? Ainda negamos sua existência subjetiva?

Ferréz6, no texto intitulado "Terrorismo literário";, escancara:

Cala a boca, negro e pobre aqui não tem vez! Cala a boca! Cala a boca uma porra, agora agente fala, agora agente canta, e na moral, agora agente escreve... Literatura de rua com sentido sim, com um principio sim, e com um ideal sim, trazer melhoras para o povo que constrói esse país, mas não recebe sua parte... Somos mais, somos aquele que faz a cultura, falem que não somos marginais, nos tirem o pouco que sobrou, até o nome, já não escolhemos, o sobrenome deixamos para os donos da casa-grande escolherem por nós, deixamos eles marcarem nossas peles, porque teríamos espaço para um movimento literário?... Sua negação não é novidade, você não entendeu?... Estamos na rua "loko";, estamos na favela, no campo, no bar, nos viadutos, e somos marginais, mas antes somos literatura, e isso vocês podem negar, podem fechar os olhos, virarem as costas, mas como já disse, continuaremos aqui, assim como o muro social invisível que divide esse país. (Ferréz, 2005, p. 12)

É fato que hoje a periferia faz poesia. À noite, nos botecos, comparecem a terceira idade, os adolescentes, jovens, algumas crianças, mulheres, homens, de várias formações e ocupações que leem, declamam, são escutados em silêncio respeitoso e aplaudidos. Voltam na semana seguinte e na outra. Estudam, escrevem, publicam livros. Em dez anos surgiram tantos saraus de poesia que um "Mapa dos pontos de poesia";7 foi criado.

A publicação Agenda da periferia8 da organização Ação Educativa9 traz em suas 49 edições (até setembro de 2011), na sessão literatura, continuamente, informações dos saraus do Elo da Corrente, do Binho, da Cooperifa, da Ademar, dos Mosqueteiros, Vila Fundão, Perifatividade, Beco dos Poetas, Palmarino, entre outros.

Seus idealizadores convocaram a população, e esta, talvez motivada pela força poética do inconsciente, transformou os botecos em praças, teatros e centros culturais. Lugar de chacina virou lugar de poema.

Os rappers famosos perambulam para admirar e "dar uma força";, são homenageados, aprendem. O fato é que os saraus que "já pegaram"; estão sempre lotados, agregam movimentos sociais, atraem universitários, continuam motivando inúmeras matérias e entrevistas, em muitos jornais e programas.

Seus frequentadores voltam a estudar, tornam-se escritores independentes. Vários, encorajados pelo movimento, desistiram de esperar pelas editoras e resgataram a prática da literatura marginal, imprimindo e vendendo seus próprios livros.

A qualidade das produções é variável, sem deixar de alcançar o excelente. De forma geral, os envolvidos estão aprendendo e entendendo o valor da leitura, todo o processo é chamado de "A primavera de Praga da periferia";, nas palavras de Sérgio Vaz, organizador do sarau pioneiro: Cooperifa – Cooperativa Cultural da Periferia";, em 200110.

 

3. O fenômeno, no contexto e cenário

"O silêncio é uma prece";, na faixa da parede. Chapéu, microfone na mão, "Periferia"; estampado na camiseta diante de mesas apertadas e repletas, no Zé Batidão, cerveja e gente das quebradas prestigiando, Sérgio Vaz recepciona e agradece ao amigo Gog, por trazer seu prestígio e mensagem.

A prece começa no silêncio do bar, transformado em plateia; o poeta declama sua letra musical11:

A rima tem urgência, o caso é complicado
Tem que ser certeira, não pode errar o alvo
A rima denuncia e sacrifica,
O que a lei do homem não entende e santifica
Ora rica, ora pobre, ora vibra, ora sofre
E a rima é muito mais que a tinta e o pergaminho
Errou quem comparou seu teor ao do vinho
Pra quem sente frio é cobertor
É alívio na hora da dor
A rima não se silencia nos lamentos, nos desgostos
É eterna, seu autor nunca está morto
Muita gente subiu e atraiu, consolada por ela
quando caiu
A rima transforma o homem por inteiro
Cela fechada, mente aberta, descrevendo o cativeiro
Joia rara, ouro da simplicidade,
Jazidas encontradas na humanidade
... A rima é a palavra no maior significado
Adversária da frieza de um dicionário
Não tem fãs, tem seguidores,
Impostores gravam cenas como atores
A rima sofre com a censura, foi caluniada
Por quem ri do verbo e não crê na força da palavra.

Em meio aos aplausos, Genival Oliveira Gonçalves transmite sua versão da verdade.

Pioneiro no rap, em Brasília, no fim dos anos 1980, com nove álbuns gravados, um DVD e um livro lançado em 2010, ganhador do prêmio Hutúz – principal premiação do hip-hop brasileiro, é ativista, líder, referência, mestre e tem clareza da potência de transformação do Movimento hip-hop associado aos movimentos sociais.

Mas sua presença é exceção, pois ali, desde 10 de fevereiro de 2001, quando o projeto da Cooperativa foi lançado, o que predomina é o poeta anônimo.

Segundo Sérgio Vaz, não só o jogador de futebol é referência nas quebradas, mas o poeta da periferia também. Para ele, "a bússola da arte aponta para a periferia";, do outro lado da ponte.

Prova disso, é a quarta edição da Mostra Cultural da Cooperifa, em outubro de 2011, que comemora uma década de atuação, com poetas, atores, músicos, dançarinos e ativistas de várias regiões, reunidos ocupando escolas e espaços culturais da Zona Sul com atividades de literatura – debates, distribuição de livros infantis, feira literária e saraus; dança, teatro adulto e infantil, cinema, shows musicais e apresentação de orquestra.

A própria concepção de acesso à cultura está sendo rompida. O museu precisa ser visitado, mas a cultura é inventada todos os dias, por uma multidão.

 

4. No sarau do Binho, uma história real

Binho, dono de bar, anos atrás colava poemas em poste, para dar "mais luz"; à cidade, às segundas-feiras acendia velas no bar e tocava o "lado B"; dos discos de vinil, garantindo um clima propício para os poetas fazerem sua performance.

Segundo ele, conseguiu inventar momentos que, aos poucos, viraram saraus. As pessoas começaram a escrever e hoje 90% dos textos são próprios. Textos para serem lidos onde se "reparte a palavra como se reparte o pão";, segundo Wesley Nóog, cantor e compositor, participante.

Os frequentadores contam que passaram a ler, e autores como Cecília Meireles, Olavo Bilac, Paulo Leminsky, Drummond, Augusto dos Anjos estão na boca do povo. Povo que gera seus Patativas de Assaré.

É mais um lugar onde "qualquer um"; pode tomar a palavra. E autorizado pelo ambiente, um rapaz de gorro escondendo os olhos e timidez controlada, diante do bar cheio e silencioso, revela sua história:

Certo dia, madame me deu de esmola
a guarda real britânica formada de miniaturas,
criaturas sem pernas nem braços,
que o pequeno engenheiro, seu filho, enjoou.

Conta que levou o exército para enfrentar sua tribo de índios, na verdade um jogo de caixas de fósforo, várias estampadas com caciques de cocares. Por mais que a guarda fosse grande, os índios venciam, como ele naquele instante, contava:

Pequeno, eu era gigante na minha imaginação,
não creio que o fabricante mais astuto,
pudesse pensar que o seu produto,
fosse além de acender cigarro ou fogão.

Sua história se desenrola, enfim, lembra e relaciona o sentinela, de quando estivera preso na Fundação Casa (antiga Febem), aos pequenos soldados:

É engraçado,
não fosse pelo andar desengonçado,
pela deselegância,
diria que aquele homem se parece com os soldados
de chumbo,
que ganhei na minha infância.

Refere-se, por fim, à esperança da mãe de que um dia ele fosse engenheiro, como o filho da outra. Esperança semelhante à que alimenta, sobre o filho que conhecera no dia seguinte ao da criação do poema:

Amanhã é dia de visita, e o meu filho, a criança mais bonita,
virá me conhecer.
Vou rezar até amanhã,
para que a vida também não o torne um bandido,
para que seja talvez,
como minha mãe sonhou,
o profissional bem-sucedido.
E se acaso eu perceber que ainda existe uma infinita
distância,
entre desejo e realidade,
maior terá de ser meu pensamento,
mais forte há de ser minha vontade.12

Sob aplausos, o jovem agradece e nesse momento estabelece-se, na magia do sarau, uma compreensão inédita da humanidade do depoimento. Ele não é mais criminoso, mas pai e poeta.

 

5. Poesia que alimenta

Inspirada pelo poeta negro e expoente da resistência negra, surge, agregada à ocupação da periferia pela cultura, a Agência Popular Solano Trindade. Exemplo de economia solidária13, é

[...] um empreendimento cultural que vem sendo
construído por jovens que possuem ações culturais na Zona Sul de São Paulo e têm como proposta o fomento e o fortalecimento da economia e da cultura criativa, através do incentivo à produção e difusão da cultura popular, criando formas de organização que possibilitem a sustentabilidade e autoprodução das ações culturais";.14

O gosto da criação deu fome de mais! Diante da dificuldade de acessar as grandes fontes de incentivo cultural, um circuito alternativo de sustentabilidade para o movimento, com a mesma coerência e agilidade invisíveis dos saraus, está sendo desenvolvido.

Além da participação voluntária, a moeda Solano, criada pela agência, circula nas quebradas. É uma nova economia "das bordas";, uma estratégia de fomento local, "um implante socialista"; 15, num mundo neoliberal excludente. Nesse cosmos, a cultura está andando de mãos dadas com o desenvolvimento local e o combate à pobreza.

Os saraus viraram espaços de difusão dessa alternativa. As trocas solidárias se multiplicam.

Se os poetas periféricos têm discursos que se confundem com o discurso panfletário, militante e de resistência ao estabelecido, o fazem por um contexto histórico e social já denunciado por Solano Trindade:

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuuuu.16

Mas a dita"gente com fome"; não precisa nem quer receber o que comer, pois produz seu próprio alimento e muito menos vai se calar!

Pois essa "gente com fome";, quem sabe, é quem dá de comer à faminta alma contemporânea.

 

Referências

Affini, M. Valores e potencialidades de um terço dos brasileiros. Edição Especial "Crianças e Adolescentes"; da Revista Meio e Mensagem. São Paulo, 13 de setembro de 2004.         [ Links ]

Ferréz. (2005). Terrorismo literário. In Ferréz (Org.). Literatura marginal: talentos da escrita periférica. Disponível em: http://editoraliteraturamarginal.blogspot.com/2006/12/manifesto-de-abertura-do-livro.html. Acesso em: 9 de jul. 2011.         [ Links ]

Freud, S. (1976). Escritores criativos e devaneios. In S. Freud Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 9). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Heidegger, M. (1990). A origem da obra de arte. Lisboa: Edições 70.         [ Links ]

Vygotsky, L. S. (1993). Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Pereira, M. O desenvolvimento da linguagem infantil. Disponível em: http://www.divinopolis.uemg.br/revista/revista-eletronica2/artigo5-5.htm. Acesso em: jun. 2011.         [ Links ]

Pereira Júnior, L. (2002) A vida com a TV – o poder da televisão no cotidiano. São Paulo: Editora SENAC, 2002.

 

 

Endereço para correspondência
Gisele Poletto Porto
Rua Carlos Weber, 1596/72
05303-000 – São Paulo – SP
tel.: 11 7391-9144
E-mail: giseleporto.social@gmail.com

Recebido: 10/07/2011
Aceito: 28/10/2011

 

 

* Psicóloga social, especialista em gestão no terceiro setor. Gerente do Núcleo de Cultura e Juventude e Ponto de Cultura Escola da Rua, da Associação Cidade Escola Aprendiz. Fundadora e conselheira da Associação Novolhar.
1 Acrônimo de "ritmo e poesia";, a palavra rap também remete a uma "fala rápida"; e pode significar "bater";. É usada no inglês britânico significando "say"; ("dizer";, ou "falar";, "contar o conto";). Fazia parte do inglês afro-americano nos anos 1960, significando "conversar";, para logo depois passar ao seu uso atual, denotando o estilo musical.
2 Poeta periférico, participante da Cooperifa, morador do M´Boi Mirim, Zona Sul da São Paulo, e pesquisador de pós-graduação em Letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, com um projeto de estudo comparativo entre a poesia de Carlos Drummond de Andrade e Sérgio Vaz, autor do livro de poesia Receitas Para Amar no Século XXI.
3 Educador, pesquisador da poesia periférica, poeta participante dos saraus da Cooperifa e morador da periferia da Zona Sul de São Paulo.
4 "Segundo pesquisa financiada pela Organização Educacional, Científica e Cultural das Nações Unidas (Unesco), realizada pela empresa de consultoria
Retrato em 1997, através de 2 mil entrevistas realizadas em todo o Brasil, as crianças passam 3,9 horas diárias
em frente à televisão"; (Pereira Júnior, 2002). Trocando em miúdos, isso significa que os brasileiros com até catorze anos passam 28 horas semanais com a TV contra 23 horas em que estão na escola. Affini (2004) relata outra pesquisa da Unesco e afirma que "crianças e adolescentes de vários países passam pelo menos 50% mais tempo em frenteà TV do que realizando qualquer outra atividade fora da escola, incluindo estar com os amigos, realizar deveres de casa ou desfrutar do convívio familiar";. (http://www.novomilenio.br/comunicacoes/1/artigo/13_luciana.pdf).
5 Segundo seu perfil no Facebook:"Vira-lata da literatura, Poeta das ruas, agitador cultural, Cooperifa até os ossos, vagabundo nato";.
6 Ferréz, nome literário de Reginaldo Ferreira da Silva, é um híbrido de Virgulino Ferreira (Ferre) e Zumbi dos Palmares (Z), uma homenagem a heróis populares brasileiros. Romancista, contista e poeta. Em 1997, lançou o livro de poemas Fortaleza da desilusão. Ligado ao movimento hip-hop, escreve letras de rap e canta em grupos locais. Estreou na prosa de ficção em 2000 com o romance Capão pecado. De 2001 a 2010, atuou como cronista na revista Caros Amigos e publicou, em 2009, Cronista de um tempo ruim. No mesmo ano, lançou o documentário Literatura e resistência, que conta os últimos 11 anos da sua história.
7 http://pontosdepoesia.blogspot.com/.
8 //www.acaoeducativa.org.br/agendadaperiferia/.
9 A Ação Educativa é uma organização fundada em 1994, com a missão de promover os direitos educativos e da juventude, tendo em vista a justiça social, a democracia participativa e o desenvolvimento sustentável no Brasil.
10 A Cooperifa é um movimento que transformou o Bar do Zé Batidão, na periferia de São Paulo, em um centro cultural.promoveu lançamento de livros, encontro de leitores e escritores e divulgou a poesia nas escolas. Improvisou uma sala de cinema na laje do boteco e abriu espaço para a produção cinematográfica alternativa e das quebradas.
11 Música "Rima denuncia"; de Genival Oliveira Gonçalves.
12 Serginho Poeta no Sarau do Binho – http://www.youtube.com/watch?v=KJNrUGmi3WY. Acesso em junho de 2011.
13 Para obter mais informações sobre a economia solidária, acesse: //www.mte.gov.br/ecosolidaria/ecosolidaria_oque.asp.
14 http://itcpfgv.org.br/noticias/368/.
15 Termo usado por Paul Singer (Secretário Nacional de Economia Solidária), em palestra na Casa da Cidade, São Paulo, 13 de outubro de 2011, referindo-se às moedas solidárias.
16 Tem gente com fome – Poema de Solano Trindade.