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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.34 no.53 São Paulo dez. 2011

 

EM PAUTA

 

A luz não é para todos

 

The light is not for everyone

 

 

Martim Vasques da Cunha*

Doutorando em Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo
Editor da revista cultural Dicta & Contradicta

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este ensaio faz comparações entre as obras poéticas de Seamus Heaney e Dylan Thomas, relacionando-as aos temas da violência e ao modo como o poeta se reflete na sociedade onde vive.

Palavras-chave: Poeta, Poesia, Violência, Irlanda.


ABSTRACT

This essay draws comparisons between the poetical works of Seamus Heaney and Dylan Thomas, relating them to the themes of violence and to the way how the poet reflects himself in the society where he lives.

Keywords: Poet, Poetry, Violence, Ireland.


 

 

A cultura de uma civilização só pode ser analisada corretamente se for iluminada através da sua violência. Ambos os fenômenos são intrínsecos. Não há como negar o fato de que o ser humano é incapaz de controlar a violência interna que, por um desses paradoxos que ninguém explica, é a mesma que o faz construir suas casas, seus instrumentos de trabalho e, também, suas manifestações artísticas. E é aqui que a poesia, com a linguagem simbólica que capta os movimentos contraditórios da vida do espírito, ajuda-nos a ver, com um pouco de clareza, como se pode controlar a destruição que sustém a cultura humana, antes que entremos numa alucinante dança macabra.

Isso comprova-se nos exemplos de Seamus Heaney e Dylan Thomas, dois poetas aparentemente semelhantes em temática e estilo, mas completamente diferentes no modo como realizaram suas caçadas pela luz que nos perturba. Heaney, um irlandês católico nascido no povoado de Derry, na Irlanda do Norte, em 1939, foi o ganhador do prêmio Nobel de Literatura de 1995. Sua obra, porém, não foi descoberta graças à premiação, como se fosse uma ação do acaso ou do famoso "toma lá dá cá"; que o mundo literário adora realizar (e do qual o Nobel é uma das marcas registradas). Desde 1966, com a publicação de seu primeiro livro, o surpreendente Death of a naturalist (Morte de um naturalista), Heaney construiu uma preocupação constante de criar uma poesia capaz de dialogar com a tradição inglesa e irlandesa, que moldou mestres como Yeats, Joyce, Philip Larkin e Ted Hughes, além de ser uma reflexão sobre os assuntos cotidianos de sua época, como a perda da inocência, a relação do homem com a natureza devastada (e devastadora), e, claro, as intrigas políticas entre protestantes e católicos que, culminam nos atentados terroristas do IRA (Exército Republicano Irlandês).

Na verdade, como todo bom irlandês, Heaney é fascinado pela precariedade das coisas deste mundo. Para ele, o ato de criação é igual ao de cavar um solo coberto de batatas, como o próprio escreve em "Digging"; (Cavando), poema que abre Death of a naturalist. A figura do pai (e do avô) desenterrando raízes do solo, enquanto o jovem Heaney descobre que a única pá que lhe resta é a caneta no dedão, é o início de uma série de meditações sobre a passagem do tempo e a descoberta da morte contrastada com a possível perenidade da arte. O ato de cavar é uma descida na alma para, como diria em seu "Personal Helicon"; (Helicon pessoal), "to see myself, to set the darkness echoing"; ("para me ver, tornar as trevas ecoantes";, na tradução de José Antonio Arantes). Obviamente, o encontro com as trevas de sua alma implica também o encontro com as trevas de seu país, dividido em uma guerra civil absurda, onde as duas facções pertencem a uma religião que – e isso só pode ser mesmo irlandês – defende o perdão como a única via possível para acabar com a violência humana. Mas Heaney sabe que esse conflito pessoal e histórico não pode cair na esparrela ideológica. Afinal de contas, por mais absurda que a guerra seja, ela envolve pessoas concretas, seres humanos de carne e osso. E uma das poucas funções da arte é justamente recuperar o valor da pessoa humana, em especial a sua dignidade. Claro que o preço que se paga por essa recuperação é muito alto.

Nos seus livros seguintes, Door to the dark (Porta para a treva) (1969) e Wintering out (Sobreviver ao inverno) (1972), Heaney aperfeiçoa o ato de cavar até as últimas consequências. A palavra é igual a um fóssil, repleto de camadas de memórias que devem ser desenterradas para reencontrar o verdadeiro sentido do trágico. A violência em seus versos, quando aparece, é elíptica, mas ela nunca deixa de mostrar a sua marca, como se observa em "Limbo";:

Ontem de noite em Ballyshannon
pescadores pegaram na rede
uma criança com o salmão.
uma desova legítima.

Fihermen at Ballyshannon
netted an enfant last night
along with the salmon
an illegitimate spawning.

Um pequenino devolvido
às águas. Mas estou seguro,
no que ela se achava no baixio
a imergi-lo com ternura

A small one thrown back
to the waters. But I´m sure
as she stood in the shallows
ducking him tenderly

Até os gelados nós dos pulsos
ficarem mortos como o cascalho,
de que ele era um guaru com ganchos
que a dilaceravam.

Till the frozen knobs of her wrists
were dead as the gravel,
he was a minnow with hooks
tearing her open.

Ela avançou sob
o sinal de sua cruz.
Ele foi impelido com
Agora o limbo será

She waded in under
the sign of her cross.
He was hauled in with the fish.
Now limbo will be

um frio fulgor de almas
por zona longínqua e salobra.
Mesmo as palmas de Cristo, incuradas,
pungem e lá não podem pescar.

a cold glitter of souls
through some far briny zone.
Even Christ´s palms, unhealed,
smart and cannot fish there.

Tradução de José Antonio Arantes (Heaney, 1998, p. 76)

A mãe que abandona o seu filho na rede dos pescadores talvez não saiba, mas sua escolha provoca consequências duradouras no espírito da história de seu país. Heaney vê a Irlanda como uma nação em perpétuo sacrifício, uma nação que, se não fosse a mesma unidade cristã que a destrói, provavelmente já estaria nas mãos da Grã-Bretanha há muito mais tempo. O poeta reconhece que sua obrigação é lembrar o leitor não só do que a linguagem artística pode fazer, mas, também, lembrar que ela foi moldada graças aos espasmos violentos de uma história destituída de sentido. É um permanente enigma para Heaney que, apesar de todos os sinais indicando o contrário, o ser humano ainda não se autodestruiu e ainda consegue produzir algo duradouro. Sim, o homem é o lobo do homem, mas é o mesmo lobo que nos faz grandes empreendedores e magníficos artistas. Esse mistério é o eixo central de "North"; (Norte) (1975), possivelmente a obra-prima de Seamus Heaney. Inspirado pelo livro do arqueólogo dinamarquês P. V. Glob, The bog people: Iron Age man preserved (O povo do pântano: o homem preservado da Era de Ferro), em que documentava-se a descoberta de corpos enterrados e preservados nas turfeiras da Dinamarca e da Irlanda, possíveis vítimas sacrificiais oferecidas às divindades pagãs; o poeta irlandês descobriu um elo que ligava o passado obscuro de seu país ao presente sombrio, com os atentados do IRA e as represálias do Governo Britânico. No poema-título, Heaney revela a sua preocupação de como a poesia, com sua linguagem simbólica, pode reparar os erros de ambas as épocas:

Retornei a uma longa praia,
a curva batida de uma baía,
e só encontrei os seculares
poderes do trovão atlântico.

I returned to a long strand,
the hammered curve of a bay,
and found only the secular
powers of the Atlantic thundering.

Encarei os convites
não mágicos da Islândia,
as colônias patéticas
da Groelândia, e súbito

I faced the unmagical
invitations of Iceland,
the pathetic colonies
of Greenland, and suddenly

aqueles incursores fabulosos,
os que jazem em Orkney e Dublin,
mediram forças
com as longas espadas ferrugentas,

those fabulous raiders,
those lying in Orkney and Dublin
measured against
their long swords rusting,

aqueles na sólida
barriga de navios de pedra,
os talhados e cintilantes
nos calhaus dos veios em degelo

those in the solid
belly of stone ships,
those hacked and glinting
in the gravel of thawed streams

eram vozes que o oceano sufocou
prevenindo-me, erguidas de novo
em violência e epifania.
A língua nadadora da nau

were ocean-deafened voices
warning me, lifted again
in violence and epiphany.
The longship´s swimming tongue

flutuava em retrospecto –
disse que o martelo de Tor pendeu
para a geografia e o comércio,
obtusas ligações e vinganças,

was buoyant with hindsight –
it said Thor´s hammer swung
to geography and trade,
thick-witted couplings and revenges,

os ódios e os pelas costas
do Parlamento, mentiras e mulheres,
exaustões nomeadas paz,
memória incubando o sangue derramado.

the hatreds and behind-backs
of the althing, lies and women,
exhaustions nominatted peace,
memory incubatting the spitted blood.

Disse: "Deite-se
na lavra-palavra, escave
a espira e o brilho
do seu cérebro sulcado.

It said, "Lie down
in the word-hoard, burrow
the coil and gleam
of your furrowed brain.

Componha na treva.
Espere aurora boreal
na longa pilhagem
mas não cascata de luz.

Compose in darkness.
Expect aurora-borealis
in the long foray
but no cascade of light.

Conserve o olho claro
como a bolha do sincelo,
creia na sensação do tesouro nodoso
que suas mãos conheceram";.

Keep your eye clear
as the bleb of the icicle,
trust the feel of what nubbled treasure
your hands have known".

Tradução de José Antonio Arantes (Heaney, 1998, p. 99)

Em "North";, Heaney consegue uma dicção própria, mesclada com tons dignos do melhor de um Yeats e de um Eliot. Mas as múmias desenterradas pela sua poesia ainda não conseguem ver um rastro de luz – e é possível que o próprio poeta não tenha muitas chances de, algum dia, escapar da maldição da aurora boreal. Se nos quatro primeiros livros a poesia era uma forma de ecoar através das trevas, agora há uma caminhada com um propósito, com um norte justo, justamente para que alguma luz o faça ver que tipo de sacrifício prevalece nas pequenas e grandes histórias. Heaney sente um pesar pelas vítimas do passado e do presente e reconhece a sua completa impotência em ajudá-los a enfrentar tamanha humilhação. A poesia agora não é apenas um meio de reparação – é um caminho de penitência, como afirma nos longos poemas de Station Island (Ilha das estações) (1984). Dividido em doze partes – referência aos doze lugares de purificação pelo qual passou São Patrício, o padroeiro-mor da Irlanda –, "Station Island"; é um diálogo de Heaney não somente com Yeats e James Joyce (que faz uma participação especial na última parte), mas, também, com o São João da Cruz (2002) da "noche obscura del alma";. A tal "ilha da penitência"; é um lugar autossuficiente, fechado ao Divino, onde qualquer espécie de transcendência é bloqueada pelos fantasmas que rondam o poeta. Heaney escapa desses tormentos usando do silêncio, do exílio e da astúcia da arte, tomando a decisão de escrever apenas o que seu espírito ordena e sem seguir nenhuma polícia ideológica. Ele reconhece que nunca terá a visão de uma "cascade of light";, mas a espera pela aurora boreal o faz procurar por outros tipos de luz.

Mas a luz não seria única? Segundo Dylan Thomas, não. Poeta nascido no País de Gales, garoto-prodígio dos versos, Thomas foi o talento consumido pelo próprio gênio. A violência da condição humana perpassa suas meditações sobre o amor e a morte, em que versos canhestros se misturam a outros de precisão imagética inigualável, com ressonâncias musicais que deixam no ouvido do leitor a sensação de nostalgia de um lugar que jamais existiu. A luz que Dylan Thomas perseguia era a mesma que transforma a violência no único motor propulsor na construção de uma cultura. Sua atitude em relação a ela era a mesma que Jacó tinha com o Anjo de Yahveh: uma luta sem trégua. Ao mesmo tempo que a luz lhe era aguda demais para ser suportada, Dylan Thomas precisava dela como nunca. Essa ambivalência é retratada nestes versos:

Se brilhassem os faróis, o rosto sagrado,
Preso num octógono de insólita luz,
Murcharia, e todos os mancebos do amor
Pensariam duas vezes antes de cair em desgraça.

Should lanterns shine, the holy face,
Caught in an octagon of unaccostumed
[light,
Would wither up, and any boy of love
Look twice before he fell from grace.

Tradução de Ivan Junqueira (Thomas, 2002, p.156)

Seu ritual de autossacrifício era a da dança do escorpião em direção ao fogo sedutor. Essa era sua luz, aquela que queima por dentro com tamanha intensidade que o poeta se torna o próprio imolado, quiçá a prova cabal de que a violência e a cultura humana estão intimamente ligadas. Thomas lutava com a luz que o perseguia porque queria a sua benção, e aqui não podemos deixar de citar a soberba passagem do Gênesis (32: 23-33), em que se narra a luta de Jacó e Deus:

Naquela mesma noite, ele se levantou, tomou suas duas mulheres, suas duas servas, seus onze filhos e passou o vau do Jaboc. Ele os tomou e os fez passar a torrente e fez passar também tudo o que possuía. E Jacó ficou só. E alguém lutou com ele até surgir a aurora. Vendo que não o dominava, tocou-lhe na articulação da coxa, e a coxa de Jacó se deslocou enquanto lutava com ele. Ele disse: "Deixa-me ir, pois já rompeu o dia";. Mas Jacó respondeu: "Eu não te deixarei se não me abençoares";. Ele lhe perguntou: "Qual é o teu nome?"; – "Jacó";, respondeu ele. Ele retomou: "Não te chamarás mais Jacó, mas Israel, porque foste forte contra Deus e contra os homens, e tu prevaleceste";. Jacó fez esta pergunta: "Revela-me teu nome, por favor";. Mas ele respondeu: "Por que perguntas pelo meu nome?";. E ali mesmo o abençoou. Jacó deu a este lugar o nome de Fanuel, "porque";, disse ele, "eu vi Deus face a face e a minha vida foi salva";. Nascendo o sol, ele tinha passado Fanuel e manquejava de uma coxa. Por isso os israelitas, até hoje, não comem o nervo ciático que está na articulação da coxa, porque ele feriu Jacó na articulação da coxa, no nervo ciático.

Como Jacó, Dylan Thomas abomina e adora a luz que caça em sua poesia. Para ele, não há apenas a aurora boreal ou a cascata de luzes dentro de uma composição de ecos nas trevas; é tudo uma unidade implacavelmente ambígua, em que morte e vida rimam graças à bizarra sonoridade de "womb"; e "tomb";. A luz se movimenta dentro das trevas e estas surgem do contraste com a própria luz. A benção que Dylan Thomas receberia em sua vida, através de sua poesia violenta, seria, na verdade, uma espécie de maldição, como confirmaria em seu testamento poético, o singelo "Do not go gentle into that good night";:

Não entres nessa noite acolhedora com doçura,
Pois a velhice deveria arder e delirar ao fim do dia;
Odeia, odeia a luz cujo esplendor já não fulgura.

Do not go gentle into that good night
Old age should burn and rave at close
[of day;
Rage, rage against the dying of the light.

Embora os sábios, ao morrer, saibam que a treva lhes perdura,
Porque suas palavras não garfaram a centelha esguia,
Eles não entram nessa noite acolhedora com doçura.

Though wise men at their end know
[dark is right,
Because their words had forked no
[lightning they
Do not go gentle into that good night.

Os bons que, após o último aceno, choram pela alvura
Com que seus frágeis atos bailariam numa verde baía
Odeiam, odeiam a luz cujo esplendor já não fulgura.

Good men, the last wave by, crying
[how bright
Their frail deeds might have danced in
[a green bay,
Rage, rage against the dying of the light.

Os loucos que abraçaram e louvaram o sol na etérea altura
E aprendem, tarde demais, como o afligiram em sua travessia
Não entram nessa noite acolhedora com doçura.

Wild men who caught and sang the
[sun in flight,
And learn, too late, they grieved it on
[its way,
Do not go gentle into that good night.

Os graves, em seu fim, ao ver com um olhar que os transfigura
Quanto a retina cega, qual fugaz meteoro, se alegraria,
Odeiam, odeiam a luz cujo esplendor já não fulgura.

Grave men, near death, who see with
[blinding sight
Blind eyes could blaze like meteors and
[be gay,
Rage, rage against the dying of the
[light.

E a ti, meu pai, te imploro agora, lá na cúpula obscura,
Que me abençoes e maldigas com a tua lágrima bravia.
Não entres nessa noite acolhedora com doçura,
Odeia, odeia a luz cujo esplendor já não fulgura.

And you, my father, there on the sad
[height,
Curse, bless, me now with your fierce
[tears I pray.
Do not go gentle into that good night.
Rage, rage against the dying of the light.

Tradução de Ivan Junqueira (Thomas, 2002, pg 315)

A fúria pelo desaparecimento da luz, a fúria pela brevidade da vida, provocada pela violência de nossas emoções leva o poeta a relembrar sempre que a função de sua arte é muito parecida com a de uma pira sacrificial. A caçada pela luz torna-se um ritual de exorcismo, algo que a grande poesia nunca deixou de ser, pois a arte é justamente uma síntese de paradoxos, de contradições em que uma luz escurece (e esclarece) a outra, numa mescla de muralhas que somente um enigma pode demolir. E o que seria esse enigma? Estaria relacionado ao problema da luz – ou melhor, da representação da luz? Sim, é claro. Tanto Seamus Heaney como Dylan Thomas perseguiam diferentes níveis de luz – e cada um deles teve consequências diferentes. Mas para entendermos isso claramente, devemos iluminar os vários aspectos da luz com a brutal certeza da violência interior.

Chamamos de "violência interior"; o que os Evangelhos chamam de Satanás ou Diabo. Apelidado de "príncipe deste mundo";, Satanás não é apenas uma entidade maléfica: ele é o ordenador e o desestabilizador do cosmos. "Desde o princípio o Diabo foi um homicida";, declara Cristo no Evangelho de João. E foi mesmo: a civilização humana é baseada no desejo mimético, para usarmos a expressão brilhante de René Girard (2004), a revolta luciferina geradora de um ciclo de violência que tende a crescer até o momento em que um terceiro elemento torna-se o bode expiatório que, com seu assassinato, pacifica a sociedade e reordena as forças deste mundo. O que torna uma cultura realmente duradoura não são apenas os gênios ou os bons intelectuais; é o sacrifício moral, espiritual e físico que eles se impõem para realizar suas obras. É aquilo que chamaríamos, na nossa mentalidade moderna, de loucura – e a loucura só pode ser devidamente compreendida se for corretamente iluminada pela violência que a consome ou, no caso, a controla. A arte é a síntese de símbolos que exprimem a tensão entre permanência e destruição, entre vida e morte, entre loucura e sanidade. Por isso, sua luz não é única: existem vários matizes que, se não forem equilibrados, podem cegar ou guiar o poeta em sua caçada pela reparação das vítimas ou pela recuperação da inocência em um mundo dominado pela crueldade humana.

Seamus Heaney cai na armadilha de uma luz conceitual, a luz que empalidece os seus versos a partir do momento que sua poesia de bem-aventurança transforma-se, nos livros mais recentes, numa poesia de excessivo bom-mocismo. É como se o prêmio Nobel fosse a marca de boi que o tornou uma espécie de porta-voz artístico da ONU e da Unesco. Seus versos perdem a força expressiva da violência interior que corrói seu país e ele escolhe um estilo etéreo, uma emulação de luz clara que, na verdade, esconde as sombras que ecoavam em seus melhores trabalhos. A prova disso está no
curto poema "The dissapearing island"; (A ilha evanescente):

Mal presumimos ter-nos encontrado para sempre
Entre as colinas azuis e essas praias sem areia
Onde passamos nossa noite esvairada em prece e vígilia,

Once we presumed to found ouselves
[for good
Between its blue hills and those sandless
[shoes
Where we spent our desperate night in
[prayer and vigil,

Mal colhemos madeira flutuante, fizemos lar
E penduramos nosso caldeirão qual firmamento,
A ilha quebrou-se debaixo de nós qual uma onda.

Once we had gathered driftwood,
[made a hearth
And hung our cauldron like a firmament
The island broke beneath us like a wave

O solo a nos suster parecia manter-se firme
Somente quando o abraçávamos in extremis.
Tudo o que creio lá ter ocorrido foi uma visão.

The land sustaining us seemed to hold
firm
Only when we embraced it in extremis.
All I believe that happened there was
[a vision.

Tradução de José Antonio Arantes (Heaney, 1998, p. 320)

Heaney quer acreditar que a instabilidade da existência – e, por sua vez, a instabilidade da própria poesia – não passa de uma visão onírica, de um sonho ruim que, num piscar de olhos, terminará imediatamente. É como se o poeta não conseguisse unir as duas pontas do solo cavado na infância e da luz do céu que ofusca sua visão madura. Há uma perda de intensidade que leva a crer numa perda de ousadia, algo fundamental para um poeta que queira compreender o mundo violento onde vive. Já Dylan Thomas, por sua vez, completamente consciente do risco que envolve a arte, não conseguiu controlar o relâmpago do verbo em sua carne e entrou na sinuca da luz sufocante, a luz que enlouquece os homens porque provém daquele que é o "príncipe deste mundo";. Morreu aos 39 anos de idade, com sua obra incompleta, após anos de alcoolismo e temperamento instável. O Diabo, o verdadeiro acusador, depois do sacrifício consciente de Cristo, vive no seu reino em perpétuo desconsolo, ainda que engane alguns agraciados com as luzes pálidas das seduções da língua. O poeta que abraça essa luz precisa ser exorcizado, como na passagem de Mateus (8: 28-33):

Ao chegar ao outro lado, ao país dos gadarenos, vieram ao seu encontro dois endemoninhados, saindo dos túmulos. Eram tão ferozes que ninguém podia passar por aquele caminho. E eis que puseram-se a gritar: "Que queres de nós, Filho de Deus? Vieste aqui para nos atormentar antes do tempo? Ora, a certa distância deles, havia uma manada de porcos que pastavam. Os demônios lhe imploravam, dizendo: "Se nos expulsas, manda-nos para a manada de porcos";. Jesus lhes disse: "Ide";. Eles, saindo, foram para os porcos e logo a manada se precipitou no mar, do alto de um precipício, e pereceu nas águas.

Até mesmo os demônios que vivem na alma do homem, os mesmos demônios que criam a violência interior que constrói a nossa cultura, querem um pouco de descanso. Eles perecem nas profundezas das águas onde a luz é opaca o suficiente para que saibam a loucura onde estavam. Mas essa loucura é também absolutamente necessária para a criação poética. Se o poeta se lembra da violência que gerou seu instrumento de trabalho, a língua dominada depois de anos de luta com o anjo de Yahveh, ele também deve se lembrar que seus demônios não durarão muito tempo, que sua loucura, se não for equilibrada e consequente, será apenas uma loucura postiça, a mesma que guia os burocratas e os genocidas. A arte – e mais especificamente o mistério que envolve a poesia – exige uma nova espécie de loucura, assim como uma nova representação da luz, mais próxima da verdade, mais próxima do Divino. Somente a abertura da alma à realidade transcendente possibilita que a linguagem simbólica da arte entre em sintonia com as manifestações mais profundas e, por isso mesmo, mais paradoxais da nossa existência. O poeta vive em permanente incerteza, na mais periclitante das instabilidades. Sua caçada pela luz deve ser igualmente um amor pelas sombras, pela fragilidade que revela a sua força e seu triunfo quando o sacrifício adquire o máximo de seu sentido – e isso ocorre somente com a morte. Ainda assim, ela não é o ponto final – e aqui reside a loucura completa, a loucura que deixou Seamus Heaney e Dylan Thomas no meio do caminho. Ambos são grandes poetas, ambos estão abertos ao transcendente, mas falharam por recusarem a loucura da fé, aquela que faz os homens enfrentarem toda e qualquer violência dos homens porque sabem que, no final, o triunfo é de quem admitir a fragilidade de sua podridão. É essa loucura que define e acaba com a violência humana e cria uma nova cultura, purificada de todos os demônios. Mas, para agarrar a luz que ilumina realmente tal fato inexplicável, o poeta deve saber dominar as forças demoníacas em sua alma, além de impedir que as boas intenções não sufoquem o demonismo inerente no ato de criação. Trata-se de uma situação difícil e que poucos conseguem suportar. Enquanto isso, a loucura da fé fica à espreita, como se estivesse numa tocaia, pronta para atacar qualquer um que a deseja sinceramente. Até lá, na triste certeza de que a luz não é para todos, mesmo para grandes poetas como Seamus Heaney e Dylan Thomas, qualquer sacrifício que não ilumine o mistério da iniquidade e da violência apenas prolongará, por um bom tempo, esse ponto de interrogação chamado poesia.

 

Referências

Bíblia de Jerusalém. (2003). São Paulo: Paulus.         [ Links ]

Cruz, S. J. da. (2002). Obras completas. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Girard, R. (2004). Eu vi Satanás cair do céu como um raio. Lisboa: Instituto Piaget.         [ Links ]

Heaney, S. (1998). Poemas. (José Antonio Arantes, trad.). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Thomas, D. (2002). Poemas reunidos. (Ivan Junqueira, trad.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Martim Vasques da Cunha
Rua Romilda Margarida Gabriel, 69/34
04530-090 – São Paulo – SP
tel.: 19 298-6113
E-mail: martim.vasques@gmail.com

Recebido: 10/08/2011
Aceito: 28/10/2011

 

 

* Martim Vasques da Cunha é doutorando em Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo, mestre em Filosofia da Religião pela PUC-SP e editor da revista cultural Dicta & Contradicta.