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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.34 no.53 São Paulo dez. 2011

 

EM PAUTA

 

Resistência

 

Resistance

 

 

Luiz Meyer*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Após caracterizar a noção de conflito estético, conceito desenvolvido por Donald Meltzer, o autor descreve uma experiência pessoal que exemplifica a natureza e a dinâmica desse conflito. Ele narra os movimentos afetivos contrastantes e alternantes, característicos desse conflito, que surgiram quando, inspirado pelo poema "To a poor old woman";, de William Carlos Williams, ele se dispôs a escrever uma releitura deste, que revela o impacto emocional que o poema lhe provocara.

Palavras-chave: Conflito estético, Poesia, Ambivalência emocional.


ABSTRACT

After characterizing the notion of aesthetic conflict, a concept developed by Donald Meltzer, the author describes a personal experience that exemplifies the nature and the dynamics of this conflict. He narrates the alternating and contrasting affective movements, characterizing this conflict, which arose when, inspired by the poem "To a poor old woman";, by William Carlos Williams, he decided to write a re-reading of it, revealing the emotional impact that the poem provoked in him.

Keywords: Aesthetic conflict, Poetry, Emotional ambivalence.


 

 

É no seu livro A apreensão do belo (Meltzer & Williams, 1988; 1994) que Donald Meltzer desenvolve a noção de conflito estético. De maneira muito simplificada, ele pode ser descrito como o impacto produzido em ambos – mãe e bebê – pela beleza externa que um percebe no outro. Donald Meltzer expõe inicialmente a reação do bebê, seu alumbramento diante da figura da mãe (rosto, olhos, seios), que lhe parece maravilhosa. Entretanto, passado esse impacto inicial e no decurso do contato com a criança, a mãe vai se apresentar a ela de modo cambiante, incerto, inesperado e misterioso. A mãe torna-se enigmática, e, com isso, surge a desconfiança sobre sua confiabilidade, o que impulsiona o bebê à necessidade de conhecer e verificar a consistência de seu interior. A ambiguidade da mãe torna-se a ambiguidade da própria beleza. O conflito estético é, de certa maneira, a experiência de convivência com essa dúvida e a capacidade de tolerá-la. À procura de um significado oculto no/do objeto corresponde à criação de um espaço interno no sujeito, uma câmara protegida onde esse conflito encontra refúgio para ser experienciado de forma construtiva.

O conflito estético tem mão dupla, na medida em que o bebê é para a mãe essencialmente um objeto indutor de evocações infinitas ligadas ao seu potencial enigmático. Para a mãe, ele também é maravilha e mistério, expectativa e temor.

Esse impulso – ambivalente, como dissemos – para conhecer o interior do objeto e de nós mesmos se dá através de conjecturas imaginativas que são a expressão da face criativa do conflito. O objeto e o sujeito se (re)descobrem e se (re)criam. Entretanto, a dúvida inerente a esse conflito e a angústia dela decorrente pode não ser tolerada, o que faz com que a conjuntura imaginativa seja substituída pelo lugar comum, pela resposta automática, pelo comportamento padronizado ou, ainda, pela invasão possessiva do objeto.

O conflito estético é um modelo passível (como o da sublimação, descrito por Freud e o da reparação e/ou recuperação do objeto perdido-destruído, descrito por Melanie Klein) de ser generalizado visando à compreensão da dinâmica da produção artística.

Gostaria de trazer um exemplo pessoal onde, acredito, ele pode ser visto em ação. Há alguns anos, não sei quantos, provavelmente na década de 1980, li em algum suplemento literário, devidamente acompanhado de sua tradução, um poema de William Carlos Williams cujo título é "To a poor old woman";. Transcrevo a seguir o original (Williams, 1991, p. 383) e a versão para o português feita por José Paulo Paes (Williams, 1987, p. 113) (provavelmente aquela que foi publicada à época, no jornal).

Uma velha pobre

Mascando ameixas pela
rua um saco de papel
cheio delas na mão

Elas lhe parecem saborosas
Elas lhe parecem
saborosas. Elas
lhe parecem saborosas

A gente pode ver isso
pelo jeito dela
se concentrar na fruta
meio chupada

Satisfeita
um gosto de ameixas maduras
como que enchendo o ar
Elas lhe parecem saborosas

To a poor old woman

Munching a plum on
the street a paper bag
of them in her hand

They taste good to her
They taste good
to her. They taste
good to her

You can see it by
the way she gives herself
to the one half
sucked out in her hand

Comforted
a solace of ripe plums
seeming to fill the air
They taste good to her

O poema ficou guardado – na verdade, adormecido – em minha memória por mais de vinte anos, quando, por razões sobre as quais talvez este texto lance alguma luz, ele despertou, surgiu como uma lembrança, de inicio vaga, e depois tomou a forma daquele sonho que nos acompanha continuadamente na vigília, após o despertar.

Aquele era um momento em que começava a tomar corpo o desejo de reunir alguns poemas meus para publicá-los. "A uma velha pobre"; começou a fazer sombra sobre esse projeto, a desviar a atenção do trabalho inicial de seleção, grudando-se a mim como um parasita... aprazível. Do convívio com essa experiência – de encantamento e aprisionamento – surgiu um poema que procurava dar conta tanto do impacto interno que aquela obra de W. C. Williams produzira, quanto da reflexão que ela havia induzido sobre minha maneira de conceber e escrever poesia. Transcrevo abaixo o fruto desse momento, inicialmente intitulado com o nome do autor que o inspirara.

Williams

Ao fim da tarde
o poeta levantou-se,
deixando a mesa de trabalho.
Olhou pela vidraça da janela
e viu, do outro lado, uma velha preta parada na calçada,
que de um jeito sereno e concentrado
comia ameixas já maduras.
Com uma mão as tirava do saco de papel
que a outra, espalmada, sustentava.
Mordia a polpa e mastigava
sorvendo com a língua
o sumo da fruta pressionada
(o que fazia, fazia dedicada)

Rendido à cena urbana,
à forma natural com que a mulher,
seus gestos comedidos, o sabor da fruta rósea,
o fim da tarde, o enquadramento da janela,
se uniam na imagem queda, silenciosa,
o poeta, que deixara a mesa de trabalho
e agora percebia o que lá fora se passava,
pressentiu que a intimidade que assim de longe lhe fora oferecida
só podia ser descrita com versos simples, despidos de retórica.

Um poeta assim, eu não sou.

William Carlos Williams, um dos maiores poetas do século passado, e particularmente um poeta americano, foi um personagem singular. Poeta, dramaturgo, ensaísta, contista, era igualmente médico – clínico geral – trabalhando em tempo integral no atendimento da população pobre e proletária de Rutheford, cidadezinha de New Jersey (não distante de Nova York), onde nascera e para a qual retornou após estudar Medicina e se especializar em Pediatria na Europa. Há uma coalescência entre sua vida pessoal e sua obra que integram de modo surpreendente uma extremada sofisticação intelectual no âmbito perceptivo e reflexivo a uma simplicidade expressiva desarmante. Por vezes, nesse aspecto, ele lembra o nosso Manuel Bandeira, o que pode ser visto comparando-se, por exemplo, seu poema "Nantucket"; (Williams, 1987, p. 91) com "Maçã";, de Manuel Bandeira (1966, p. 157).

Nantucket

Flores através da janela
roxo pálido e amarelo

alterados por cortinas brancas –
Cheiro de limpeza –

Sol de fim de tarde -
Na bandeja de vidro

uma jarra de água, o copo
de boca pra baixo, junto dele

uma chave – E o
imaculado leito branco

Flowers through the window
lavender and yellow

changed by white curtains –
Smell of cleanliness –

Sunshine of late afternoon –
On the glass tray

a glass pitcher, the tumbler
turned down, by which

a key is lying – And the
immaculate white bed

Maçã

Por um lado te vejo como um seio murcho
Pelo outro como um ventre de cujo umbigo pende
ainda o cordão placentário
És vermelha como o amor divino

Dentro de ti em pequenas pevides
Palpita a vida prodigiosa
Infinitamente

E quedas tão simples
Ao lado de um talher
Num quarto pobre de hotel

A releitura de meus poemas, para torná-los públicos, que se efetuava agora tendo como horizonte "To a poor old woman";, deixou patente para mim o hiato existente entre a naturalidade da escrita de William Carlos Williams e a presença do que eu chamaria, no meu modo de escrever, de um certo "empenho poético";, espécie de maneirismo sempre na iminência de infiltrar meus versos, com o risco de tornar sua dicção forçada. Escrever um poema, instigado pela leitura de Williams foi o modo encontrado para exprimir não só a percepção dessa conjuntura, mas, também, o impasse por ela criado.

Penso que a melhor forma de mostrar como todo esse processo se desenvolveu é apresentar aqui partes do rascunho do poema (serão cinco ao todo escolhidas entre as muitas folhas que registram sua feitura) e comentá-las em paralelo. Escrevo sempre com caneta tinteiro (vide Figura 1) fazendo anotações à margem do papel, cortando e remanejando trechos e passagens, retomando-os mais adiante para eventualmente abandoná-los, deixando "em reserva"; palavras e expressões, consultando o dicionário, seguindo um percurso sem linearidade, guiado pela necessidade de formular algo que só se torna explicito – quando se torna – quando a tarefa chega ao fim. A cada passo o trecho manuscrito é digitado e sobre o texto, agora impresso, o trabalho recomeça, da mesma forma, sempre com a caneta à mão, por vezes me valendo de cores variadas.

 

Figura 1.
Página manuscrita do poema.

 

Parte I

O poeta americano
olhando
postado à janela de seu quarto
encostado
O poeta americano foi até a janela de
foi até a janela de seu quarto
olhou pela vidraça
e através das folhas outonais
que já caiam ao cair deixara deixaram os galhos secos nus
os galhos do plátano
e viu na calçada coberta de folhas de outro belo
coberta de folhas de carvalho
que o outono avermelhado
viu uma senhora negra
que tirava ameixas de um
saco de papel e as mordia serenamente
e as comia
que tinha às mãos
um saco de papel
do qual tirava ameixas
que tirava ameixa de
um saco de papel
Tirava cada uma do saco de papel
que a mão esquerda
espalmada equilibrava
tirava uma por vez
mordendo a polpa
que segurava na mão espalmada
um saco de papel
cheio de ameixas e serena
as comia
e concentradas as comia com um
ar sereno e concentrado

A escrita do poema revela a presença de identificações superpostas e, como veremos, conflitantes. Além do autor do poema há também um narrador que, por sua vez, observa e descreve a movimentação de um poeta e simultaneamente se projeta no seu olhar. A poesia de W. C. Willians, como já apontei, flagra a trivialidade e faz emergir sua essência, aquela incrustada na banalidade do cotidiano. Ele certamente não escreveria versos que aludissem a "calçadas cobertas de folha";, "galhos secos";, "outono vermelho";. Os cortes efetuados, eliminando esses versos, (como se pode ver no rascunho) indicam que a projeção acima aludida (no olhar do poeta) não é só empática, mas possui também um aspecto intrusivo, já que o narrador está procurando atribuir à percepção do poeta aspectos que são seus. Uma vez reconhecidos, eles precisam ser retirados do poema. Na verdade várias alterações realizadas ao longo da elaboração do poema provêm desse reconhecimento da invasão do olhar do poeta pelo narrador, que não consegue manter suas construções apenas no nível intuitivo identificatório. Dito de outro modo: espera-se do narrador a elaboração de conjunturas imaginativas destinados a explorar a estrutura do olhar do poeta. Mas, frequentemente, ao invés dessa exploração ocorre um escape, que abre caminho para a intrusão possessiva impositiva sobre esse olhar. Sob esse ângulo, os rascunhos, lidos como um continuum, são a expressão da ambivalência do narrador diante da criatividade do objeto interno: por vezes ele ouve sua palavra e dela pode fazer uso dialogando com ela; em outras, inconformado com essa dependência, ela a obstrui superpondo sua fala à escuta.

Um outro elemento central do poema, que vai permanecer constante, e que está presente na parte inicial de todas as versões, é a necessidade de o poeta sair – mais do que isso –, libertar-se do lugar alienante em que se encontra. Nesse trecho, sua iniciativa primeira é de ir até a janela e olhar através da vidraça.

 

 

Nesse segundo momento fica claro que a mesa de trabalho, situada no quarto, é a geografia que o enclausura. Ele precisa não só afastar-se dela e olhar através da vidraça: esse olhar precisa também dirigir-se para o outro lado, para fora de si. Ao fazê-lo ele se universaliza: deixa de ser poeta americano para tornar-se apenas poeta.

 

 

Já nos primeiros versos é enfatizado o empenho do poeta em afastar-se de sua mesa: ele se levanta, caminha, olha para fora. Sai, portanto, de uma situação narcísica para se relacionar com o mundo objetal; a atmosfera claustrofóbica e árida do interior em que reside vai dar lugar a um mundo habitado, a um espaço aberto. A "senhora negra"; torna-se "preta velha";, situando, assim, com maior precisão o objeto percebido na sua classe social e delineando sua aparência com contornos mais nítidos: "preta velha"; aponta para uma gestalt evocativa, entre outros aspectos, de uma mulher um tanto quanto alquebrada, coroada por uma carapinha branca, andando com passos lentos. Mas não são esses possíveis atributos que mesmerizam o poeta. Os versos dão a entender que ele se mantivera até então distante da contemplação (e da participação) de relações (como a da preta com a ameixa) marcadas pela experiência de intimidade e pelo prazer e crescimento que esta proporciona a quem para ela se abre. Mas, agora, ao vislumbrar a cena na calçada – que se tornara visível porque saíra de sua mesa e olhava para fora – ele conseguia intuir a presença de um prazer despido de artifícios que lhe permitia pressupor a existência de um entendimento essencial entre a mulher e a fruta. Através da descrição, o leitor sente que narrador e poeta compartilham da experiência sensorial da preta velha.

Parte IV

Rendido à cena urbana,
à forma natural com que a mulher,
seus gestos comedidos, o sabor da fruta rósea
o fim da tarde, o enquadramento da janela
o deleite sossegado
se uniam na imagem queda silenciosa
Separou-se um pouco da
Deixou Separou-se um pouco de lado da lembrança
do bonde perdido com a esperança
da faca, relógio, ou bala,
do beco. Onde o aguardava a indesejada das gentes que fora
rua de mulheres
do burguês níquel, do seringueiro no escuro da floresta
dos paraquedista, flores estreladas no céu,
e para acompanhar na reserva, de dentro, interior de seu quarto
a mulher negra que, na calçada em frente
queem sossego sossegada e recolhida comia as ameixas
comia sossegada as ameixas que carregava
num saco de papel
o poeta que agora deixara a mesa de trabalho
e agora olhava para fora
de dentro de seu quarto
amainou a sua fala
despojou-a de retórica

Nesse ponto, o poeta parece ter perdido seu anterior constrangimento e uma receptividade até então reclusa começa a emergir. Sua sensibilidade é tocada pela presença de um mundo corpóreo, luminoso, urbano, cujas qualidades formais e afetivas contrastam intensamente com a opacidade do quarto, que ele havia incorporado.

Mas, como os versos constantes do rascunho mostram, essa experiência de elevação não se sustenta: o poeta, atemorizado pela beleza que contemplava, sente a necessidade de separar-se de certas lembranças (uma sequência de versos) o que, na verdade, configura uma forma de evocá-las. Assim presentificadas, elas tamponam a experiência inédita que o estava envolvendo, substituindo-a pela memória saturada. Trocando em miúdos: o narrador, àquela altura, havia alcançado uma estreita congruência com o olhar do poeta e parecia ter realmente atingido a capacidade de identificar-se introjetivamente com ele. Essa experiência é potencialmente um ganho, um movimento de crescimento, uma experiência catastrófica remodeladora. Entretanto, sua contraface, que emerge paralela e simultaneamente, é carregada de persecutoriedade pois aponta para a perda do estabelecido, do familiar, do lastro incorporado: é flagrante que as lembranças das quais o poeta quer se separar, isto é, os diferentes versos de que se lembra, pertencem todas à herança literária do narrador; são estranhas ao momento atual, contemplativo, e banalizam o esforço de simbolização em curso1.

O narrador, suspenso ao encanto de uma beleza que até então desconhecera, confundiu-se, tomando como sedução o fascínio que sentia. Temendo perder a identidade agarrou-se, num movimento de recuo, ao mastro seguro da repetição.

Parte V

Se unia naquela imagem quieta, silenciosa
o poeta [que agora olhava para fora]
provou de umum sossego
até então para ele insuspeito
que jamais a poesia que seu interior jamais sentira que nunca vivesse
Pensou em escrever um poema que o que ali sabia
O poeta provou de um sossego que agora olhava para fora
Provou de um sossego
que seu interior jamais sentira
e escreveu, voltando à mesa de trabalho
e pressentiu que se voltasse à mesa de trabalho
teria que invertes seus versos empregar uma fala despojada
Este poeta de não sou
E pressentiu que só uma fala escrita muito despojada
Daria a ver aquele instante
Amainou a fala, despojou-se de retórica
pressentiu que a intimidade
que assim de longe lhe fora oferecida
só poderia ser aproximada descrita
com versos simples despidos de retórica
Este poeta, eu não sou

O narrador nos diz que o poeta está apaziguado e que seu interior havia sido tomado por um sossego inédito. É uma mudança que o leva a perceber que só uma escrita despojada, sem ornamentos gratuitos seria capaz de descrever tanto esse novo estado d´alma quanto a contemplação da cena que o provocara. Ela não deve exprimir-se como um enunciado, uma imposição externa, a modo de um cânone, de uma teoria de Escola, aposta ao poema. Precisa partir do seu interior, estar inscrita na sua forma expressiva, ser legível nas entrelinhas e estar presente na sua linguagem.

O último verso – "este poeta, eu não sou"; (que na versão final se tornará "um poeta assim, eu não sou";) é quase um coup de thêatre: o narrador se separa bruscamente do objeto de sua narrativa e se apresenta ao leitor como sendo, ele também, poeta. O faz através de uma negativa, que é o reconhecimento da diferença das alteridades poéticas, reconhecimento que é, na verdade, a síntese do processo criativo. Este fora induzido pela intensa emoção provocada pela beleza do poema de William Carlos Williams, acompanhada também da admiração profunda pela sua maestria em representar os objetos e as relações do cotidiano de um modo depurado, aliando simplicidade a precisão formal. Esses sentimentos vão se desdobrar num movimento variado, oscilante, complexo, contraditório que irá compor o conflito estético. Nele estão presentes o desejo do narrador de apoderar-se da capacidade criativa do poeta (do que resulta uma imitação caricata) e o de impor-lhe sua voz (o que produz distorção de estilo). Mas também faz parte desse conflito estético o desejo de explorar o interior do poeta, percorrê-lo como um visitante que, adentrando terra ignota, abandona a veleidade de colonizá-la, reconhecendo sua ignorância e sua carência. Os rascunhos vão mostrando essa caminhada em linha quebrada.

O livro reunindo meus poemas foi finalmente publicado (Meyer, 2010). Nele, o título do poema aqui analisado sofreu uma mudança: realmente não cabia chamá-lo de "Williams";, já que não se tratava de um retrato do poeta, mas, sim, de uma tentativa de comunicar o efeito da leitura de um de seus poemas. Por isso, passou a chamar-se "Sobre um poema de William Carlos Williams";.

Sobre um poema de William Carlos Williams

Ao fim da tarde
o poeta levantou-se,
deixando a mesa de trabalho.
Olhou pela vidraça da janela
e viu, do outro lado, uma velha preta parada na calçada,
que de um jeito sereno e concentrado
[comia ameixas já maduras.
Com uma mão as tirava do saco de papel
que a outra, espalmada, sustentava.
Mordia a polpa e mastigava
sorvendo com a língua
o sumo da fruta pressionada
meio chupada (o que fazia, fazia dedicada)

Rendido à cena urbana,
como que enchendo o ar à forma natural com que a mulher,
seus gestos comedidos, o sabor da fruta rósea,
o fim da tarde, o enquadramento da janela,
se uniam na imagem queda, silenciosa,
o poeta, que deixara a mesa de trabalho,
e agora percebia o que lá fora se passava,
pressentiu que a intimidade que assim de longe lhe fora oferecida
só podia ser descrita com versos simples, despidos de retórica.
Um poeta assim, eu não sou.

Uma velha pobre

Mascando ameixas pela
rua um saco de papel
cheio delas na mão

Elas lhe parecem saborosas
Elas lhe parecem
saborosas. Elas
lhe parecem saborosas

A gente pode ver isso
pelo jeito dela
se concentrar na fruta
meio chupada

Satisfeita
um gosto de ameixas maduras
como que enchendo o ar
Elas lhe parecem saborosas

 

Referências

Bandeira, M. (1966). Lira dos cinquent´anos. In M. Bandeira. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olímpio.         [ Links ]

Meltzer, D. & Williams, M. H. (1988). The apprehension of beauty. Perthshire: Clunie Press.         [ Links ]

______. (1994). A apreensão do belo: o papel do conflito estético no desenvolvimento, na violência e na arte. (Paulo Cesar Sandler, trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Série Analytica).         [ Links ]

Meyer, Luiz. (2010). Réu confesso. Poemas reunidos (1968-2010). São Paulo: Ateliê         [ Links ].

Williams, William Carlos. (1991). The collected poems of William Carlos Williams: 1904-1930 (Vol. 1). New York: New Directions.         [ Links ]

______. (1987). Poemas. (José Paulo Paes, seleção, tradução e estudo crítico). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Luiz Meyer
Rua Santa Cristina, 217
01443-020 – São Paulo – SP
tel.: 11 3062-6298
E-mail: luimeyer@uol.com.br

Recebido: 19/10/2011
Aceito: 28/10/2011

 

 

* Luiz Meyer é membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autor dos livros: Família: dinâmica e terapia (uma abordagem psicanalítica) (Casa do Psicólogo, 1983, obra em sua 3a edição); Rumor na escuta: ensaios de psicanálise (Ed. 34, 2008); Réu confesso: poemas reunidos (Ateliê, 2010).
1 O "bonde perdido com a esperança"; refere-se ao poema de Carlos Drummond de Andrade ";Soneto da perdida esperança";; "faca, relógio ou bala"; ao poema "Uma faca só lâmina"; de João Cabral de Melo Neto; "que fora rua de mulheres"; ao poema "Última canção do beco"; de Manuel Bandeira; "paraquedistas, rosas brancas no céu"; ao poema "Os paraquedistas"; de Cassiano Ricardo; "burguês níquel"; e "seringueiro no escuro da floresta"; aos poemas de Mario de Andrade "Ode ao burguês"; e "Dois poemas acrianos";.